segunda-feira, outubro 12, 2020

O enrascanço


A palestra matinal, em Évora, a convite de uma determinada entidade, fora algo cansativa. Ou era eu quem estava muito cansado.

Por esses tempos, andava num vai-e-vem entre o país e o estrangeiro, com saídas todas as semanas, com os meus sonos ao deus-dará. Acordava, sobressaltado, em hoteis ignotos, caía como uma pedra nos assentos dos aviões, fazia refeições incaraterísticas.

Ir a Évora, essa bela capital gastronómica do Alentejo, e ir almoçar em bando, numa determinada instituição, com os integrantes do colóquio, era uma ideia que me parecia menos simpática. Inventei, assim, um pretexto qualquer, a ter lugar de seguida em Lisboa, e consegui libertar-me. 

Mas esse expediente tinha um inconveniente: não podia correr o risco de ser visto “desenfiado” no Fialho, na Tasquinha do Oliveira, no Luar de Janeiro ou no Cozinha de Santo Humberto, ou mesmo, na muralha, no Moínho do Cu Torto. (E ainda não existiam, à época, o Dom Joaquim, o Origens ou o Degust’Ar). Havia que sair da cidade. As opções eram só duas: o Chico, em São Mansos, ou o Manuel Azinheirinha, em Santiago do Escoural.

Com o meu motorista, Alberto Delgado, comparsa para a refeição, zarpámos para o Azinheirinha. Estava cheio, mas arranjou dois lugares para nós. Comeu-se bem, com o Alberto a poupar-se nos álcoóis, porque tinha de conduzir. Depois da ameixa da sericaia, que imagino tenha deglutido com acompanhamento de JB, com que, à época, ainda me dava o luxo de terminar os repastos, preparei-me para pagar e avançar para Lisboa, sonhando com uma hora de sesta, no carro.

Veio a conta, abri a carteira e saíram-me notas de francos belgas, que era então a minha segunda moeda, depois do escudo, patrioticamente ainda em vigor. Saquei do meu cartão de crédito e o Manuel Azinheirinha, com cara impassível, disse-me que não tinha cartões. O Alberto Delgado não tinha levado dinheiro consigo. Não há azar, vou ali ao banco levantar dinheiro, pensei e disse. “Não há Multibanco, cá no Escoural”, ouvi. Ó diabo!

Da mesa ao lado, onde presidia a um divertido grupo, o meu amigo António Franco, que cruzáramos à entrada e que podia ajudar-me, já tinha abalado, há muito. E abalado, ou melhor, enrascado, estava eu a começar a ficar, pela situação em que me colocara. 

O Manuel Azinheirinha não me conhecia de parte alguma e, por um momento, tive a sensação de que dizer-lhe que era membro do governo podia não ser, necessariamente, um fator credibilizante. Ter de pedir-lhe para nos “fiar” o almoço era algo que não me apetecia nada, mas foi o que tive de fazer, à falta de melhor solução. E ele, sem problema aparente, aceitou. A alternativa seria “chamar a Guarda”, mas eu teria, provavelmente, cara de quem o não iria enganar. 

E, claro, não enganei. No dia seguinte, lá foi um cheque meu para Santiago do Escoural. 

A história tem, porém, um não-evento embaraçante. No mesmo dia do almoço, passei por um Multibanco em Lisboa, para levantar dinheiro. O meu cartão de crédito estava caducado... 

Voltei ao Manuel Azinheirinha algumas vezes, nos anos seguintes. Nos últimos tempos, por várias razões, tenho ido menos. Uma nota do José-Paulo Fafe, no seu portal do Facebook, hoje lembrou-me este amável “dissidente” do Fialho. Que confiou em mim.

7 comentários:

Anónimo disse...

Fui lá almoçar ontem e continua a ser uma referência na restauração Alentejana.

João Cabral disse...

"Enrascanço", "vaivém", "hotéis", "Moinho", "álcoois". De nada, senhor embaixador.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

É sempre um prazer ler belas histórias de quem as tem para contar.

PS: O João Cabral à falta de bálsamo para a dor de cotovelo arma-se em corretor ortográfico.

Cícero Catilinária disse...

O sr. Embaixador,tem que passar a submeter os seus textos, antes de os publicar, à "censura" prévia de alguns artistas que por aqui resolveram aterrar, tipo o sr. Cabral e quejandos.
Talvez assim deixemos de assistir aos "raspanetes" com que essas "inteligências" o vão vergastando diariamente.
Qualquer dia estão a recomendar-lhe uma ida a Fátima, para pedir perdão pelo que aqui publica.
Ele há mesmo gente que não se enxerga, caramba.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Cícero Catilinária. Eu revejo todos os textos e acho graça a alguns autoretratos...

João Cabral disse...

"Autorretratos", senhor embaixador.
Quanto a Cícero Catilinária, aproveite para aprender alguma coisa, em vez de surgir não se sabe de onde para resmungar tanto e insultar os outros.

zpf disse...

Agora, nos tempos que correm, passando a igreja, um bocadinho além p'ra quem vai na direção de Alcáçovas, à direita tem a Caixa Agrícola. Ali tem uma dessas caixinhas que dan dinhêro. Parece é que c'o cartão caducado, as maganas nã funcionam...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...