domingo, outubro 04, 2020

Há 25 anos

Tinha regressado da embaixada em Londres, um ano antes. No Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde era subdiretor-geral, coordenava, entre outras coisas, as questões institucionais da União Europeia, a caminho da revisão do Tratado de Maastricht. Esse era então um dos dossiês mais delicados da nossa ação europeia.

Um dia, creio que de maio ou junho, desse ano de 1995, o meu colega João Lima Pimentel, que eu sabia muito próximo do líder socialista, António Guterres, disse-me que este gostaria de ter uma conversa comigo. Eu não o conhecia.

Não tinha, aliás, qualquer proximidade com o Partido Socialista. Nem sequer tivera curiosidade de assistir aos Estados Gerais, um exercício de abertura que acolhera muitos independentes, preparando o partido para as eleições legislativas de outubro desse ano, onde tudo indicava que poderia vir a obter um bom resultado. 

Era patente, pelo país, um cansaço da solução política que consagrara uma década de governação de Cavaco Silva. E a imagem de António Guterres surgia cada vez mais prestigiada e eleitoralmente apelativa, sugerindo-se como alternativa possível para a chefia do governo.

Numa tarde de sábado, encontrámo-nos em casa de José Lamego, figura de relevo do PS para a área externa, pessoa que eu também não conhecia. Na conversa, constatei que, tal como o João Lima Pimentel, Guterres tinha, sobre a Europa, uma ideia federalizante que se afastava substancialmente da minha. 

Começou por me dizer algo que me agradou bastante: “A mim não me interessam nada papéis do MNE, quero apenas saber as suas ideias”. Não creio ter-lhe dito logo tudo o que pensava sobre o “sonho federal” europeu que ele acalentava. À época, eu achava aquelas ideias muito perigosas...

Semanas depois, o João pediu que ajudasse a colocar, por escrito, algumas propostas sobre as relações internacionais de Portugal, para serem tidas em conta no programa eleitoral socialista. Lembro-me de, com dois amigos, ter preparado, durante um longo fim de semana de trabalho, um texto bastante completo, cobrindo toda área externa. Foi, aliás, muito fácil de construir: a política externa e europeia não era, como em geral continua a não ser, uma área politicamente muito divisiva. E também recordo o desagrado com que, logo que foi publicado o programa, vim a constatar que não havia por ali uma linha sequer daquilo que nos tinha levado essas horas de trabalho. Tomei nota, mas não pensei mais no assunto.

No dia 1 de outubro de 1995, votei no PS, claro. Era a opção de que me sentia mais próximo.

Os socialistas ganharam as eleições, embora apenas com maioria relativa. Recordo-me que essa foi uma noite em que me senti particularmente feliz. Quase tanto como na noite mais bela da minha vivência democrática: a vitória de Soares sobre Freitas do Amaral, cerca de uma década antes. Em ambas, senti um imenso alívio. 

Ao final dessa noite, três casais fomos a Sintra dar um abraço a Ernesto Melo Antunes. Sentíamos que tínhamos de partilhar com aquele amigo essa hora de boa disposição. E de esperança.

Entretanto, a vida continuava, lá pelo MNE. Entre as eleições e a posse do governo mediaram 27 dias. Havia uma compreensível curiosidade sobre quem seria o ministro. Ajudei a preparar os dossiês para serem entregues ao futuro governo. 

Com o passar dos dias, começaram a chegar-me rumores de que o meu nome estaria a ser considerado para os Assuntos Europeus. Mas também corriam outros nomes, bem mais “pesados” do que o meu.

Comecei por não levar esses boatos muito a sério: eu não era militante do PS, tinha ideias um pouco “recuadas” na questão europeia, além de algumas outras, menos relevantes, divergências doutrinárias. Contudo, o conhecimento que tinha dos temas europeus não me conduzia à “modéstia’ de pensar não ser capaz de exercer essas funções. Achei que podia mesmo achar graça ao desafio. Mas deixei-me ficar no meu lugar, sem “mexer uma palha”, sem falar com ninguém. O que fosse, soaria!

Uma noite, quando jantava num restaurante na Pontinha, com a minha mulher e uma amiga, o João Pimentel avisou-me, pelo telefone: “O ministro vai ser o Jaime Gama. Amanhã, vais ser convidado para o governo!”. 

Falei, ainda nessa noite, com três grandes amigos, nenhum deles ligado ao PS, dois deles conservadores, perguntando o que achavam da ideia: todos foram unânimes em dizer-me que devia aceitar. A minha mulher, contudo, era muito refratária à ideia. Cada um desses amigos teve de falar com ela, convencendo-a a deixar-me aceitar o lugar, se acaso viesse a confirmar-se o convite. Se a não tivessem feito mudar de ideias, eu não teria entrado para o governo, claro.

No dia seguinte, ao fim da tarde, Jaime Gama telefonou a convidar-me. Aceitei. 

Logo se seguida, pedi para ver o secretário de Estado cessante, Vitor Martins, que tinha sido meu chefe até esse momento e com quem tinha uma muito boa relação. Recebeu-me no seu gabinete, surpreendido pelo inesperado da minha visita tardia. Disse-lhe que não queria que soubesse da minha nomeação pela imprensa. Recordo-me que foi com prazer que o ouvi dizer: “Fico muito satisfeito por ser você a substituir-me”. Viríamos a fazer uma transição exemplar. 

Por ali fiquei cinco anos e meio, tendo pedido para sair em 2001, em momento acordado meses antes e sem o menor drama, e apenas porque queria regressar à minha carreira profissional. Em perspetiva, acho que foi uma bela aventura política, embora talvez um pouco longa demais. Mas nunca me arrependi da opção que tomei nesse mês de outubro de 1995.

3 comentários:

Anónimo disse...

Só lamento que, decorridos 46 anos depois do 25 de Abril, nos encontremos a caminho de seremos o país mais atrasado da União Europeia, a par da Bulgária ou atrás ela. Ou seja, tenho dúvidas de que o 25 de Abril e todo o percurso que fizémos desde aí tenha valido a pena. E a dúvida é tanto maior quanto sabemos que, à data do 25 de Abril, Portugal tinha atravessado uma década de crescimento económico que não teve comparação com qualquer outra no século XX, quer antes quer depois do 25 de Abril. Chegados aqui a 2020, na situação miserável em que nos encontramos, governados por alguns incompetentes ou partidocratas, sem perspectivas de um futuro risonho, pergunto: valeu a pena toda esta atribulada caminhada, apesar das pipas de massa que recebemos?

Anónimo disse...

Mais uma vez, FSC diz-nos quem manda lá em casa. E parece que se sente contente com isso.

Maria Isabel disse...

Senhor anónimo das 12,50
Que disparate, o senhor não tem mais nada para dizer?
Conte até 10.
Maria Isabel

Agostinho Jardim Gonçalves

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