Ontem à noite, um programa televisivo elaborou sobre a tragédia de uma senhora, viúva de um antigo embaixador de Portugal em Brasilia, ao que parece vítima de uma burla que arruinou toda a sua vida.
Lembrei-me de como conheci aquela senhora.
Naquele tempo, antes de Schengen, chegados a Lisboa de avião, tínhamos de preencher aqueles irritantes papelinhos de entrada, com identificação pessoal e número do passaporte. Eu vivia ainda no encantamento "maçarico" de ter um passaporte diplomático (azul, de carneira, com os dados insertos à mão, com a letra magnífica de uma senhora do Protocolo).
Antes da aterragem na Portela, comecei a preencher a ficha. O cavalheiro e a senhora que estavam sentados ao meu lado, com quem viajara desde Genebra, que notei acompanhado de um imensa família, nessa véspera de Natal de 1977 (eu regressava de uma visita de trabalho à Líbia), dedicava-se à mesma tarefa e tinha um passaporte idêntico.
Olhámos um para o outro e demo-nos a conhecer: ele era o embaixador Adriano de Carvalho, nosso representante permanente junto das Organizações Internacionais, em Genebra. Apresentou-me a senhora, uma mulher bastante bonita, creio que muito mais nova do que ele.
Adriano de Carvalho era um nome consagrado na carreira. Especialista em questões económicas e multilaterais, tinha um historial de grande negociador. Três anos depois, voltaria a encontrá-lo em Oslo, quando por ali foi por questões da EFTA, a acompanhar o ministro português do Comércio. Tinha uma figura avantajada, um ar impositivo mas cordial, um à-vontade e uma autoridade profissional com que dominava claramente a delegação portuguesa. Ao que às vezes recordo, por uma imagem que guardo da ocasião, tinha o vício da fotografia.
Uns anos mais tarde, estava eu colocado em Lisboa, Adriano de Carvalho, ia acabar a sua missão no Brasil. Creio que estávamos em 1988. Solicitou ao ministério que lhe fosse concedido o estatuto de “disponibilidade em serviço”, financeiramente um pouco mais vantajoso, que tinha de ser decidido pelo “Conselho do Ministério”, um órgão onde eu era um representante eleito da minha categoria. O secretário-geral de então informou-nos que o ministro de serviço, que tinha tido um dissídio com o embaixador, desejava que lhe não atribuíssemos esse estatuto. Achei aquilo um escândalo, atendendo à qualidade do diplomata em causa, comparativamente com outras propostas que tínhamos de discutir.
Com o apoio de outros colegas, que concitei, informei o secretário-geral de que não podia contar com o nosso voto positivo para nenhuma outra proposta idêntica enquanto o caso de Adriano de Carvalho (que, aliás, eu nunca mais vira, desde o encontro no avião e da visita a Oslo) não fosse decidido. O assunto foi polémico, mas levámo-lo de vencida. Recebi mais tarde uma nota simpática de Adriano de Carvalho, agradecendo o meu empenhamento. Nunca o voltei a encontrar.
Passaram-se muitos anos. Cheguei a Brasília em 2005. Adriano de Carvalho saíra do cargo de embaixador no Brasil quase 20 anos antes. E, no entanto, não obstante muitos qualificados colegas que lhe sucederam e me haviam antecedido nesse posto, ele era, de longe, aquele de que mais pessoas ainda falavam, que havia deixado uma marca de qualidade e prestígio associado ao nome de Portugal. Fora, aliás, o primeiro do escasso número de portugueses a quem a Universidade de Brasília tinha atribuído um doutoramento "honoris causa".
Em 2008, quando saí do Brasil para França, de passagem por Lisboa, com ele já bastante doente e impedido de receber visitas, tive um grande gosto em ir entregar em sua casa um livro que aí publiquei, sobre os meus quatro anos no Brasil, que depois me agradeceu com uma carta muito amável. Soube que morreu em 2014.
Ontem, ao ver a reportagem na televisão, constatei que o embaixador ainda era vivo quando parte da tragédia que se abateu sobre a sua mulher se desenrolava.
Este mundo é pequeno. E cruel.
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