quinta-feira, novembro 07, 2019

O meu trauma ferroviário


Ontem, no final chuvoso e já frio da tarde do Porto, ao aguardar em Campanhã o comboio que me havia de trazer de volta a Lisboa, surgiu-me à memória o tempo da infância em que as estações de caminho de ferro constituiam, para mim, um fator de ansiedade e alguma angústia.

As viagens em família faziam-se a partir de Vila Real, onde vivíamos. Íamos ao Porto, frequentemente a Viana do Castelo e, apenas raramente, a Lisboa. Os meus pais, durante anos, não tinham automóvel, pelo que se viajava quase sempre de comboio: de Vila Real à Régua, na velha linha do Corgo, dali até ao Porto, de onde se derivava para os restantes destinos. Ao todo, na vida, o meu Portugal ferroviário, salvo duas idas no Sud a caminho de Paris, um salto, numa tarde, a Cascais e umas viagens na linha de Sintra, esgota-se praticamente aí.

O meu pai era funcionário público, nesse tempo dos anos 50 em que a profissão não admitia o menor laxismo ou “balda”. Viajávamos nos fins de semana ou “queimando” um dia das férias do meu pai, que as contava ciosamente, para poder estar o máximo possível de tempo possível com a minha velha avó, que vivia em Viana. 

Era muita a gente que também viajava nesses dias. O meu pai fazia questão de nos comprar “primeira classe”, mas, mesmo assim, as carruagens iam quase sempre apinhadas e os lugares sentados escasseavam. 

Conseguir a proeza de não perder a ligação dos diversos comboios devia complicado, nesses períodos confusos e de enchentes de Natal, Páscoa ou “férias grandes”. Às vezes, ficava-se bastante tempo nas estações da Régua ou do Porto, num mundo de barulho e apitos, com o fumo e o vapor das máquinas a encher o ambiente, sem lugares nas salas de espera, sentados nas malas que eram então de uma útil dureza, a ver passar gente em correrias. 

Esse ambiente agitado e de pressa contida, sempre com o cuidado com as bagagens, tinha duas faces contrastantes: por um lado, o sentido, quase cosmopolita, do “glamour” de uma viagem (particularmente para quem, como eu, vinha de Vila Real); por outro, a noção, algo inquietante, de que não se conhecia ninguém à nossa volta, o receio face ao que era estranho. 

Absorvido pela tensão que me rodeava, fazia minhas o que achava serem as preocupações maiores do meu pai, que via a mirar constantemente o relógio e uns horários artesanais em papel quadriculado, que sempre elaborava de véspera, e que trazia cuidadosamente dactilografados (partidas a vermelho, chegadas a azul, lembro bem), tentando perceber se o acesso à linha do Minho se faria na estação de origem ou se já só íamos a tempo de “apanhar a ligação em Ermesinde”. 

Por muito tempo, posso hoje confessar, a própria palavra Ermesinde fazia soar em mim uma ideia de correria, de risco de perder um comboio, da angústia de poder ficar em terra. Há meia dúzia de anos anos, acreditem, parei uma tarde o carro em frente à estação de Ermesinde e passeei-me por ali com calma, como que a tentar esconjurar esses demónios de infância.

De outra vez, fiz exatamente o mesmo na estação do Tamel. Onde é o Tamel? É uma estação recôndita, perto de Barcelos, na linha do Minho, que tem, logo ao lado, um túnel. Ora eu, desde miúdo, odeio túneis ferroviários. Nada causava maior temor à criança que eu era do que entrar naqueles buracos negros, numa época em que o fumo das máquinas a carvão se entranhava no ar que se respirava nas carruagens, onde, durante a travessia, só sobrevivia uma escassíssima luz lúgubre, que me deixava em imenso sobressalto. 

Mas porquê o Tamel, em particular? Porque um dia, era eu um pirralho já não sei com que idade, o comboio em que íamos para Viana estacou, sabe-se lá porquê, no meio do túnel do Tamel. E por ali ficou uns minutos que me terão parecido horas, com a minha mãe a colocar-me um lenço para eu poder respirar melhor. Várias vezes ouvi os meus pais evocarem esse episódio, com uma estranha naturalidade, sem, pelos vistos, terem medido o efeito que em mim isso provocou. 

Os comboios nunca me sossegaram! Nem os TGV europeus nem os Amtrak americanos me fizeram reconciliar com aquelas memórias algo traumáticas de infância - embora o leitor já deva ter notado que anda por aqui, por este texto, muito exagero de estilo, para dar alguma cor à banalidade da vida. Mas uma estação de caminho de ferro continua a ser, para mim, o início de uma viagem algo angustiada, que não deixa de ser irónica para comigo mesmo, àquele meu passado. Não há nada a fazer! Ou melhor, há: é ir de automóvel!

7 comentários:

Maria Isabel disse...

Senhor Embaixador
Tal como um comentador do Facebook, também todos os dias venho visitar estás maravilhosas histórias. Por favor não as perca. Deviam ficar guardadas num livro para me deliciar de vez em quando. Pense nisso.
Maria Isabel

Anónimo disse...

"O meu pai era funcionário público, nesse tempo dos anos 50 em que a profissão não admitia o menor laxismo ou “balda”"...

e porque e que hoje admite? nao se muda? o pessoal so aceita trabalhar como deve de ser se tiver um alemao ao lado rosnar? falha demasiado grave da democracia portuguesa (e nao so) que leva muitos a fazer loas ao doutor botas, que muitos males que tivesse (e tinha!) parece ter conseguido acabar com certo laxismo em portugal, ao menos durante uns tempos

sem alemaes e sem botas, nao ha exigencia nem respeito?

Anónimo disse...

Para mim nos dias de hoje é muito pior viajar de avião : aeroporto abarrotado , passageiros de havaianas , aviões atrasados e muitas vezes cancelados ...

Luís Lavoura disse...

“queimando” um dia das férias do meu pai, que as contava ciosamente, para poder estar o máximo possível de tempo possível com a minha velha avó, que vivia em Viana

Isto faz-me recordar o meu pai que, durante a minha infância, também utilizou todos os seus dias de férias para poder estar na sua amada aldeia, a 230 quilómetros de Lisboa, ao pé dos pais dele.

Com grande prejuízo para a minha mãe, que teria preferido mil vezes ir passear por outros sítios, inclusivé no estrangeiro.

Anónimo disse...

É engraçado, as viagens de comboio feitas em África, feitas em comboio internacional, que seguia depois para a Rodésia, evocam-me aventura, mistério, noites em claro, a olhar para o escuro da noite africana, excitação, devido à companhia das meninas dos colégios internos que regressavam às vilas do mato para passar férias junto dos pais, excitação pelas férias que me esperavam junto dos meus primos, latas de caramelos que se podiam comprar no comboio, a leitura de livros excitantes, etc. Ou seja: um mundo maravilhoso, relaxado e feliz!

Portugalredecouvertes disse...

até gosto de comboios! e até já chegam e partem a horas, salvo seja as excepções :)
gostaria de os ver mais limpinhos e com carruagens bem pintadas de maneira civilizada
gostei de ver aquelas carruagens cobertas com animais!!!

Luís Lavoura disse...

Vejam só o que Portugalredecouvertes foi dizer: que os comboios atualmente chegam e partem a horas!!! Mas isso é precisamente o oposto daquilo que dizem os PSDs: que todos os serviços públicos, incluindo os comboios, estão horrivelmente maus devido às cativações do Centeno!
Oh Portugalredecouvertes, isso não se diz!

Falando seriamente: eu, que há dezenas de anos que ando em comboios, concordo com Portugalredecouvertes - os comboios portugueses são atualmente muito mais pontuais do que alguma vez foram no passado. Dá gosto ver o grande número de comboios que atualmente passam ao minuto certinho, nem mais um nem menos um. Com cativações ou sem elas.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...