sexta-feira, novembro 15, 2019

Da gravidade


Cruzei-me ontem com ele, na FNAC do Chiado. Falámos uns instantes. Está bastante mais velho (estamos todos) mas, essencialmente, está muito mais “grave”. Era, no passado, um companheirão, um pacholas, sempre com uma graça na ponta da língua, um sorriso aberto à vida e aos amigos que encontrava. Ontem, quando o vi à distância, quase o não reconheci, pareceu-me outro: sério, “cara de caso”, ar patibular, como se lhe tivesse morrido alguém. Na conversa breve, abriu-se um pouco, mas foi sorriso de pouca dura. Logo depois da despedida, lá o vi, de novo, façanhudo. Parecia “importante”! E foi-se, com o mesmo ar de quem ia “contra o vento”. Será isto natural?

Será a idade que torna as pessoas mais fechadas de cara? Há uns anos, comentei isto com uma amiga, em Vila Real, ambos sentados na esplanada da Gomes, vendo passar pessoas da terra, quase todos com esse fácies cerrado, com uma espécie de “gravitas” adotada como estilo. Ela dizia-me: “Os homens de Vila Real, para “crescerem” no seu estatuto perante os outros, parece que têm necessidade de ter “ar de maus”, para serem levados a sério. Repara que quando eles abrem o guarda-vento para entrarem na Gomes, enfrentando aquela plateia de olhares que sobre eles converge, é um pouco o estatuto que pretendem afirmar que transparece do modo como afivelam o rosto”.

Estivesse por ali o Steinbroken, o diplomata finlandês de “Os Maias”, do Eça, e diria, aplicando a um desses “cromos” de Vila Real o que dizia sobre os eventos do mundo: “C’est grave, excessivement grave!” E acrescentaria, como toda a razão: “Et pourtant, où va-t-il?” E na realidade, o mais longe que esse tipo de homem vai, lá por Vila Real, é ao Cabo da Bila (com “b”, claro)...

Testei isto com outra pessoa e a explicação foi outra: “É quase sempre apenas timidez. O “carão” é uma simples defesa. O estatuto de “homem na cidade” (como o disco de Carlos do Carmo), em especial na província e ainda mais nas pequenas localidades, implica uma coreografia própria no esgar. Um ar de brincalhão, mesmo um leve sorriso, fragilizá-lo-ia, abriria caminho a não ser tomado a sério, daria ideias aos outros para o abordarem com comentários leves e jocosos, lidos como excesso ou exploração de confiança”.

Um velho embaixador que em tempos conheci, e que era obsessivamente preocupado com a exegese dos sinais que regulam os registos de comportamento mútuo, tinha uma tese bizarra (e, para mim, ridícula): temos de estar sempre “acima” do nosso interlocutor. Porquê? Porque as relações sociais são, por regra, desequilibradas. Assim, ele passava o tempo a usar uma expressão anglo-saxónica que traduzia essa sua ideia: “if you are not one point up, you are one point down”. A cara de mauzão fará parte desse estilo?

As coisas com que algumas pessoas se preocupam!

5 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Nem mais.
Felizes de quando nos contentamos apenas em existir e deixar existir os outros., para que possamos coexistir na boa relação e singelamente contribuir para o progresso da humanidade.

Joaquim de Freitas disse...

Muito bom texto, Senhor Embaixador. No qual também deixa algo de seu...

Talvez porque a vida numa pequena cidade, sentado à mesa dum café, no ponto nevrálgico onde um dia nos conhecemos todos, ou quase, é mais difícil escapar à constatação que ao longo do tempo tudo muda e que aqueles que nos são importantes ou não também. São marcas indeléveis da usura do tempo.

Nada estranhamos à medida que fomos crescendo e acumulando mais experiência. Por mais dolorosos que sejam certos acontecimentos, eles sempre nos ensinaram algo e nunca em vão.

Por vezes custa muito aceitarmos a realidade da vida. Por exemplo, quando regresso à minha “Bila” de Guimarães, não conheço mais ninguém. Todos os rostos me são desconhecidos. E quando um ainda aparece no Toural, já não é aquele que conheci. O tempo fez a sua obra. E é nesse momento que penso que é exactamente assim que me vêm…aqueles que ainda me conhecem. Mas o que me choca mais é de ver a minha “Bila” vazia…

Por aqui, na terra onde vivo, essa convivência quotidiana dos cafés, não existe. Somos mais “caseiros” ou mais individualistas… Escapamos melhor à medida do tempo…Ninguém nos conhece e não conhecemos ninguém…

Lúcio Ferro disse...

Não deixa de ser interessante aquela que me parece ser a questão de fundo, pelo menos para mim, que acabei por me autotransplantar quase aos 50 anos de vida passada essencialmente em cidades mais ou menos cosmopolitas para um cu de judas provinciano e analfabruto (ainda que belo e onde a natureza se sente com os ouvidos), que só no verão, com a chegada em massa dos imigrantes e dos turistas, parece de algum modo rejuvenescer desse arquétipo social que refere. Entenda, em meios muito pequenos, a face conta, e conta muito. Há ainda muito arreigada uma noção de respeitinho, que passa por isso mesmo e eu, claro, não posso destoar, não é que afivele o “carão” mas não me misturo, afinal, neste meio muito pequeno, eu ainda sou o filho do médico que operou uma palete desta gente e agora até sou o senhor engenheiro, que tem trazido emprego prosperidade à terra. Não sei se me faço entender, é um equilíbrio difícil, eduquei-me essencialmente no Reino Unido, onde as formalidades são muito diferentes, mas na verdade a malta do interior rural é desconfiada por natureza, obedecem a outros códigos e, volto a dizer, o respeito é uma noção que aqui está intimamente relacionada com a gravitas que se aparenta, ainda que se leve a mulher do vizinho para a cama, ou tal se resolve a tiro ou ninguém saberá nunca, ninguém perdendo a face. Enfim, desculpe pela divagação, olhe, com um sorriso, senhor embaixador, foi para o que este seu post me deu. ��

João Cabral disse...

Também sempre o vi com um ar grave na TV, senhor embaixador. Mas também ninguém sabe a história de vida e o íntimo de cada um. Depressões, problemas de saúde, morte de entes queridos, crises existenciais, angústias de tempos a tempos, etc. Melhor não julgar, senhor embaixador, se não se sabe exactamente o motivo.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Meu rico Oeste, que como em todo o lado tem tem de tudo, mas sociológicamente certo tipo de "manias" não servem mais que para chacota dos respetivos "manientos".

Um bom fim-de-semana com um belo sorriso e muito humor.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...