terça-feira, novembro 12, 2019

O chefe


O Miranda (chamemos-lhe assim) era um "velho primeiro-secretário". Na carreira diplomática, este conceito "de corredor", por esses anos 70, abrangia quantos se eternizavam na categoria que antecedia a ascensão a conselheiro. O concurso público para ser conselheiro de embaixada era complexo, o que criara uma multidão de "velhos primeiros-secretários".

O nosso Miranda tinha vindo da América Latina, por onde andara em mais do que um posto e agora fora parar à nossa Repartição.

A Repartição tinha um chefe e, abaixo dele, não havia qualquer hierarquia formal, exceto a antiguidade. E nesta, por razão óbvia, o Miranda imperava sobre nós, funcionários que nunca tinham sido colocados no estrangeiro. Por isso, partindo o chefe de férias, o Miranda assumia a direção da Repartição. E assim aconteceu, num certo dia.

Na manhã seguinte, ao chegar à minha secretária, dou de caras com uma pilha de documentos "para dar andamento", muito superior à média habitual. Fui ver e dei-me conta que parte substancial da papelada era do pelouro do Miranda. Procurei-o na sua sala, que partilhava com uma leitora regular destes textos, mas não estava. Lembrei-me então de ir ao gabinete do chefe da Repartição.

E lá estava o Miranda, com os pés sobre a mesa, regalado a ler o "Diário de Notícias" a que função dava direito. Perguntei-lhe por que diabo tinha canalizado todos os papéis do seu pelouro para mim. A sua resposta, marcada pela chocada surpresa, foi cristalina: "Ó homem! Eu agora estou a chefiar!"

4 comentários:

Anónimo disse...

Senhor Embaixador , como é que uma pessoa tão polida e brilhante como o Senhor pode ter um chefe com este ar de bacôco que se adivinha aqui no retrato? Eu, se fosse ao Senhor, nem sequer aceitava um barrascana destes como chefe. Até nos parece mal a nós!
Ele há cada uma...

Francisco Seixas da Costa disse...

Os chefes não se escolhem e, se leu bem, foi “por empréstimo”...

Anónimo disse...

Mas o nosso anónimo das 20:04 estava a “ gozar “ ... não se vê logo ?

Francisco Seixas da Costa disse...

O anónimo das 21:42 acha que não percebi? Eu sou masoquista...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...