sábado, novembro 02, 2019

A chamada


Há dias, tirei esta fotografia. É a entrada para uma loja de roupa para senhoras. E, no entanto, ali, à direita, atrás daquela porta, em tempos houve uma bela tabacaria, com muita imprensa internacional. Precisamente por onde caminha aquela figura feminina, havia mesas, numa das quais, em muitos fins de tarde, por lá vi Abelaira, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira. Tanta Lisboa que por ali passou!

Ali era o Montecarlo, um café-restaurante de culto, que desapareceu, creio que nos anos 80. Vivi lá centenas de horas da minha vida, em conversas e imensas discussões, na leitura de jornais e livros, em noites que acabavam com as luzes a apagarem e acenderem, sinal de que o café estava prestes a fechar, já depois da uma da manhã. Muitas vezes, mudávamo-nos, de seguida, para o Monumental, que tinha horários mais boémios, ligados ao ritmo do teatro. E onde já era difícil encontrar lugar, se bem me lembro.

O Montecarlo ficava a dois passos do Saldanha. Hoje é uma Zara. 

A historieta que vou contar passou-se no início dos anos 70. Nos cafés portugueses de então, havia uma velha prática, que os telemóveis entretanto tornaram sem sentido, de permitir aos clientes atenderem chamadas feitas para os telefones fixos (só havia fixos...) dos próprios estabelecimentos. Assim, era muito vulgar ouvir-se, em voz bem alta: "Chamam ao telefone o sr. ....".

No Montecarlo, com uma sala de considerável dimensão, distribuída por ambientes diversos muito ruidosos, havia mesmo um altifalante, de cor dourado baço, para tornar as mensagens mais audíveis.

Uma noite, com o café cheio, alguém se lembrou de utilizar o telefone metálico que existia à entrada para a zona dos bilhares, meteu uma moeda, ligou para o número do próprio café e solicitou: "Podia fazer o favor de chamar ao telefone o sr. general Humberto Delgado?". No balcão, estava um miúdo para quem esse era um nome como qualquer outro, pelo que logo anunciou, pelo altifalante: "Chamam ao telefone o sr. general Humberto Delgado".

Grande parte da sala entrou em divertido alvoroço e comentários. Viu-se um empregado mais maduro ir repreender o rapazote, ensinando-lhe quem era o "general sem medo", talvez lembrando que os cavalos da repressão haviam entrado pelo café dentro, em 1958, aquando da manifestação em favor do candidato presidencial oposicionista, em frente ao vizinho Liceu Camões.

Dias mais tarde, a cena repetiu-se com o nome de Álvaro Cunhal. A gestão do café percebeu o risco e uma figura mais madura passou a atender ao telefone, para que ninguém se aproveitasse da fragilidade em matéria de cultura política do rapazote do balcão.

Mas essa "vigilância" não podia continuar sempre e, se bem me lembro, ainda foram chamados ao telefone, nas semanas ou meses seguintes, Henrique Galvão, Palma Inácio e Norton de Matos, sempre com galhofa pública garantida.

Aparentemente, nunca ninguém se lembrou de olhar para a cabine telefónica do próprio café...

8 comentários:

Lúcio Ferro disse...

Se ninguém se lembrou de olhar para a cabine do café, como poderia o senhor embaixador saber que as chamadas provinham daí? A não ser que...
Texto delicioso e uma ótima maneira de começar o meu dia, obrigado. :-)

aamgvieira disse...

"Divertiam-se" com pouco.....

Anónimo disse...

Incapaz de perder um minuto sequer num café ou esplanada...

Anónimo disse...

Se me lembro do Monte Carlo! Por ali passava algumas noites no final da década de 60, até 1971 quando então a minha vida se modificou e me levou para bem longe. Saudades!

Anónimo disse...

“ vivi lá centenas de horas da minha vida “ ... esta frase tem um sentido figurado , claro ... Digo isto porque nessa altura o Sr. Embaixador teria que idade ? Centenas de horas quer dizer que não trabalhava , passava o dia e também dormia lá . E mesmo assim para atingir as tais centenas de horas só se o Montecarlo não tivesse desaparecido ... E não me diga que não tenho sentido de humor , tivesse dito dezenas de horas e já teria a sua graça !

Francisco Seixas da Costa disse...

O Anónimo das 10:03 é picuínhas de nascença ou isso deu-lhe com a idade?

Anónimo disse...

Os bébés nascem picuinhas ? Não sabia ... já o sentido de humor adquire-se muito cedo . Pensava que o Sr. Embaixador também o tinha , logo teria percebido a “ gracinha “!

Anónimo disse...

Os bébés nascem selvagens.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...