segunda-feira, novembro 11, 2019

A era Morales


Foi agora conhecida uma nota de desagrado do recém-libertado Lula face ao golpe palaciano que, “manu militari”, afastou Evo Morales do poder, na Bolívia. Não é de estranhar, atento o facto de, cada vez mais, voltar a haver “duas Américas Latinas” e o maniqueísmo crescente da região tender a forçar a opção por uma delas. Recordaria que foi também por virtude desta deriva favorável ao mundo “bolivariano” que o PT brasileiro nunca conseguiu ser minimamente crítico da Venezuela de Nicolas Maduro, com o peso que isso acabou por ter no ambiente que ajudou a eleger Bolsonaro.

Quando fui embaixador no Brasil, e não obstante o “namoro” que o Brasil então fazia à generalidade dos países da América do Sul (exceção feita à Colômbia e, em parte, ao Chile), para reforço da sua influência na Unasul, as relações com a Bolívia de Morales chegaram a atravessar um momento particularmente difícil. As atividades da Petrobras no país sofreram forte pressão e houve mesmo um momento de alguma tensão entre Lula e Morales. 

Uma noite, numa conversa a anteceder um jantar na nossa embaixada, vi Lula exasperado com a atitude do governo boliviano, que por esses dias tinha feito algum agravo ao Brasil. Depois, com o tempo e alguma inteligente transigência da diplomacia do Brasil, que sabia distinguir o que era acessório daquilo que era essencial, as coisas compuseram-se. Mas o relacionamento entre La Paz e Brasília foi sempre uma gestão complexa.

Lula tinha, no seu gabinete, um “expert” para as questões latino-americanas, Marco Aurélio Garcia, uma figura que morreu há dois anos e com quem eu tinha construído uma boa relação pessoal. Repito agora um episódio que já por aqui contei. 

Um dia, Marco Aurélio foi à Bolívia encontrar-se com o recém-nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros de Morales. Pouco após o seu regresso, coincidiu ter ido almoçar comigo à residência e, naturalmente, tentei “confessá-lo” sobre as suas impressões da visita. Contou-me então a conversa "surreal" que havia tido, em La Paz, com o chefe da diplomacia do país, que já tinha entretanto feito umas declarações públicas um tanto bizarras, numa linguagem cheia de metáforas e de difícil descriptagem, que a imprensa brasileira reportara de forma divertida. 

Marco Aurélio descreveu-mo como uma figura estranha, com um mantra "filosófico" de quem "tinha os pés bem assentes no ar", num discurso errático e alegórico, quase incompreensível. E comentava, no meio de gargalhadas: "Você conhece-me, Francisco! Imagina que, quando quero, sou capaz de rivalizar em efabulações e imagens ligadas ao universo onírico, mas o homem batia-nos a todos! Saí de lá sem perceber quase nada e com medo de me ter enganado naquilo em que julguei tê-lo percebido..."

Era também assim a Bolívia de Morales.

5 comentários:

Anónimo disse...

O mundo ficou mais I Morales
Fernando Neves

Anónimo disse...

Hahaha ...

Augie Cardoso, Plymouth, Conn. disse...

Que grande analise do brasileiro!
Mas porque sera que OS socialistas Nunca querem largar o OSSOF?!?!

Augie Cardoso, Plymouth, Conn. disse...

O mesmo acontece com Xi de Peking e OS camaradas de HongKong.

Anónimo disse...


"(…)Era também assim a Bolívia de Morales."

Está, portanto, justificado o golpe ???!!!

A verdade, verdadinha, é que o Sr. Embaixador não se insurge contra o golpe !

João Pedro

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...