Há questões que o caso da Catalunha suscita, que vão para além da coreografia política de quem se revê nas posições dos senhores Puigdemont e Rajoy.
O direito à autodeterminação (livre decisão sobre o futuro de uma comunidade) e à independência (constituição de um Estado) estão vulgarmente ligados, no imaginário político internacional, a antigas colónias ou territórios não autónomos, numa lógica de “libertação”. É assim, aliás, que o tema é tratado nas Nações Unidas, onde esses direitos são institucionalmente protegidos. Mas há outros exemplos: novos países que emergiram da implosão de Estados, quase sempre numa afirmação democrática contrastante com um modelo autoritário que prevalecia no antecedente.
O caso da Catalunha traz à nossa atenção um fenómeno novo, que só encontra similitudes com o exemplo da Escócia. Trata-se da circunstância de uma comunidade inserida num Estado plenamente democrático, que aí usufrui de uma plenitude e igualdade de direitos, mas onde a ordem constitucional não prevê um qualquer modelo de secessão territorial, pretender, um dia, organizar-se num Estado autónomo. (Não importa aqui discutir a validade da recente consulta organizada na Catalunha). Não estamos perante comunidades oprimidas, sujeitas a um jugo anti-democrático. É apenas a circunstância de uma parte da população de um Estado, reivindicando-se de uma identidade específica e de um determinado território, decidir cindir-se, pelo facto da vontade de viver autonomamente se sobrepor ao interesse em continuar junto, por ter considerado que essa sinergia lhe trazia mais inconvenientes do que vantagens.
No caso britânico, onde o reino é “unido”, o parlamento central não viu inconveniente em permitir um referendo, o qual, se acaso tivesse tido um desfecho favorável, poderia ter conduzido à independência da Escócia. A ordem jurídica britânica tem esta flexibilidade, aceite por todos.
No caso espanhol, as coisas não se passam assim. A Constituição de 1978, aliás votada maioritariamente na Catalunha, não prevê essa rutura. Assim, ela é ilegal. A questão passa a ser política e não jurídica: os habitantes numa região de um Estado cuja ordem constitucional votaram (neste caso, catalães e todos quantos vivem na Catalunha, mesmo não se considerando catalães), a meio do seu percurso histórico, podem mudar de opinião? Mas, atendendo ao impacto dessa cisão sobre o todo de que faziam parte, essa aferição de opinião pode ser feita contra a vontade explícita das restante partes desse todo?
(Artigo publicado no "Jornal de Notícias")
12 comentários:
PARTE 1
À mesa de jantar, o rapaz observou os seus familiares, respirou fundo, endireitou as costas e anunciou:
- Tenho uma coisa para vos dizer.
A família, grande, parou de comer e olhou seriamente para o mancebo.
- Vou sair de casa. Tenho um emprego, já sou crescido e quero tornar-me independente.
Sentiu-se um silêncio frio assentar na sala. Após alguns segundos, o Pai, pergunta:
- Vais o quê?!
- Vou sair de casa - repete o rapaz.
- Vais sair, o tanas! - atira o homem.
A Mãe começa a lacrimejar e a Avó benze-se. Dos dois irmãos (um casal), nota-se espanto no moço e um sorrisinho na miúda.
- Mas, ó Pai, eu... - tenta replicar o jovem.
- Falta-te alguma coisa nesta casa? - atira o Pai.
- Não.
- Não tens comida à mesa?
- Tenho
- Não tens roupa para vestir?
- Tenho
- Não tens um quarto só para ti para onde até podes levar a tua namorada?
- Tenho, mas...
- Mas nada!!! - grita furibundo o chefe de família - Esta família é unida e unida se manterá!
- Quem manda na minha vida sou eu! - explode o "independentista"
- Não, enquanto viveres nesta casa! - retorque o progenitor
- Mas eu quero sair! - responde o rapaz
- Não sais! Eu não deixo!
- Tu estás a precisar é de um par de tabefes! - aproveita para dizer o irmão.
- Fazes bem! - diz a irmã - E - sabem de que mais? -, eu também quero ir morar para um sítio só meu.
- Vais voltar a pintar as paredes do quarto e a partir o vidro da janela? - lança-lhe, castigadora, a mãe.
- O mano tem razão! É a vida dele! - insiste a rapariga.
- Calem-se ou eu fico-vos com as chaves de casa e corto-vos a mesada! - o Pai ameaça.
- Essa é outra - lança o rapaz -, farto-me de trabalhar e ainda tenho de vos dar a maior parte do meu ordenado...
- Porque somos uma família e eu é que sei administrar as contas. - o Pai responde
- O teu pai já teve uma grande empresa, ouviste?! - diz a Mãe
- Que faliu! - dizem em coro o rapaz e a sua irmã
- A culpa não foi dele! - acode a Avó.
- Ó Pai, eu vou-lhe às trombas! Eu vou-lhe às trombas! - grita o outro irmão já avançando.
- Quieto, que somos gente de bem! - grita a Mãe - Para brigas, já bastou das outras vezes.
- E ele levou e amochou! E ainda aqui está, o patife! Não gosta de nós? Acha-se especial?
- É a minha vida! - repete o rapaz - E, daqui a uma semana, vou-me embora.
A Avó levanta-se e anuncia:
- Vou telefonar ao Administrador do Condomínio. Vais ver o que te acontece! Ninguém aqui no prédio te volta a falar! Nem te deixam entrar!
O Pai, aproveita a onda e diz:
- Vou dizer ao teu patrão para por o dinheiro na minha conta. E as cervejolas fiadas no café? Acabaram! - que o dono é meu amigo e eu faço lá muita despesa.
- Vocês querem-me mal porquê? Eu não tenho nada contra a família, só quero ter a minha vida!
- Se não tens nada contra nós, tens mais é que continuar a viver debaixo do mesmo teto! Aqui não há emancipações nem independências para ninguém!
- Já não te bastou aquelas duas vezes que fugiste quando eras miúdo? - lembra a mãe
- Grande tareia que o teu Pai te deu. E não aprendeste... - lamenta-se a Avó pousando o telefone.
Acresce, se Rajoy julgava que do seu "legalês" só surgiriam consequências económicas perigosas -presentes e futuras- para Puigdemont / Catalunha, já se viu, já se vê, que estava muito enganado.
Quando os "espanhóis" começarem a sentir o remexer dos cordões nas suas bolsas veremos que pedirá meças a quem, se Rajoy a Puigdemont ou vice-versa.
E o Quebeque?
JPS
PARTE 2
Batem à porta. É o vizinho do lado.
- Que gritaria é esta? Estão a incomodar-me.
- É o meu mais velho que se quer ir de casa, imagine. - explica-se o Pai
- Não me diga! O senhor tenha controlo nesse moleque! É que se se sabe disso, ainda a minha filha quer fazer o mesmo. A doida julga que já manda em si só por ser trintona.
- São as libertinagens! - grita a Avó - É a falta de valores!
- Sejam firmes. Confio na vossa sabedoria. - diz o vizinho enquanto dá a volta para retornar à sua casa.
Chega o Administrador do Condomínio.
- Então, onde está esse patiforiozito que não conhece a família?
- Ó Sr. Administrador, veja lá se isto faz sentido... - tenta o rapaz.
- Não faz nenhum! - atalha o Administrador -, Você tem de ter juizo, respeitar os seus pais e acabar já com essa coisa de se ir embora. Nós gostamos de si aqui no prédio.
- Mas eu... eu até estou a pensar ficar cá. Está uma casa para alugar.
- Ah! Era só o que faltava! Saía de casa dos seus paizinhos mas continuava a viver cá no prédio? Só para humilhar a sua família. Não aceito! E vou já convocar uma reunião de condóminos para lhe dizer isso na cara! Se você sair de casa, nunca mais entra no prédio!
- Eu não te dizia?! - grita histérica a Avó
- Como é? Já lhe posso ir às ventas? - repete o irmão mais novo a "oferta".
- Isso não! Violência aqui no condomínio não queremos. Paz e sossego, por favor... - diz o Administrador.
- É a minha vida! - declara mais uma vez o causador de todos os problemas.
- É a nossa família! - gritam em uníssono os pais, a avó e o irmão mais novo
- Também quero! - afirma novamente a irmã
- Isto vai ficar em ata: se você sai, vai para debaixo da ponte! - fecha o Administrador
E o Kosovo, a Eslovénia, a Bielorrussia, o Miguel deVasconcelos, etc.?
Fernando Neves
A Indonésia tinha apesar de todo uma atitude mais correcta que Madrid. Não lhe passou pela cabeça que I todos os indonésios participássemos no exercício da autodeterminação de Timor e aceitou mesmo que o voto fosse restrito na pratica só aos timorenses, sendo residual e condicionado ao tempo de residência dos cidadãos não timorenses que podiam votar. Este é ainda hoje o problema do processo saraui. Jacarta aceitou ainda no regulamento de autonomia que acabou por não ser aplicado, que houvesse partidos independentistas. A totalidade dos espanhóis terá direito a votar numa eventual revisão da Constituição. Por sequer a hipótese de os leoneses e os astuciamos, etc, votarem sobre a autodeterminação de Timor não é admissível. Já basta a inevitabildade de votarem os milhares de não catalães que vivem na Catalunha, que devem ser suficientes para dar a vitória ao não.
Fernando Neves
os habitantes numa região de um Estado cuja ordem constitucional votaram
[...] podem mudar de opinião?
Não há qualquer mudança de opinião - as pessoas que votaram a Constituição espanhola em 1978 já não estão hoje vivas. Os catalães hoje são outras pessoas, diferentes das de 1978.
É um disparate dizer, como o Francisco faz neste post, que o direito à autodeterminação dos povos está ligado à independência das colónias. Esse direito já existia, nas mentes de muitas pessoas, no século 19 - quando a Hungria e a Grécia fizeram as suas revoluções. E continua a existir hoje fora de quaisquer colónias - veja-se os casos do Kosovo, da Somalilândia, do Curdistão, do Sudão do Sul, da Gronelândia, do Québeque.
Também é um disparate dizer que esse direito só se aplica à separação de um país não-democrático - vejam-se os casos do Québeque e da Gronelândia acima.
A Catalunha não é nenhuma novidade só comparável à Escócia.
Agora dizem que as Ilhas Faroé também se querem tornar independentes da Dinamarca.
Nas ilhas Faroe também já houve um referendo com vitória dos independentistas (em 1948).
Em 2018 haverá mais notícias...
https://www.economist.com/news/europe/21726032-and-what-it-has-do-price-fish-why-faroe-islands-want-independence-denmark
Será isto o fim da Europa? Oooooohhhhhhh, desgraça! :)
O direito à autodeterminação é uma conversa da treta. Na prática, o que vale é muito simples: se um povo se quer separar de um Estado que nós queremos enfraquecer, então nós apoiamo-lo calorosamente; se um povo se quer separar de um Estado nosso amigo, contra a vontade desse Estado, então nós amochamos nesse povo.
É assim que funciona na prática. Apoia-se o direito à secessão do Sudão do Sul e do Kosovo, porque queremos enfraquecer o Sudão e a Sérvia, respetivamente; mas assobia-se para o lado quando o povo da Catalunha se quer separar, porque a Espanha é nossa amiga e não queremos estar a hostilizá-la. Da mesma forma, assobia-se para o lado nos casos da Somalilândia e do Curdistão - não é que a Somália e o Iraque sejam propriamente uns Estados maravilhosos, mas são Estados nossos amigos e não convem hostilizá-los.
(Os EUA apoiaram as independências das ex-colónias francesas e inglesas porque queriam enfraquecer esses Estados europeus. Tal como no século 19 tinham apoiado a independência das colónias espanholas na América.)
Tudo o resto é conversa de chacha.
Sr. Embaixador, será que pode, publicamente, expor a sua abalizada opinião?.
É que hoje, 16 de Outubro, Madrid insiste na sua atitude drástica.
Será que o governo de Madrid ao insistir na sua posição de dono, constitucional, da Catalunha espera fomentar uma guerra civil na Catalunha entre catalães "antigos" e "novos" catalães, que enfraqueça a tendência para mais temidos Ipirangas por toda a Espanha ?.
Será que Madrid sabe que está a brincar com o fogo.
Senhor Luis Lavoura : Eu até podia ter escrito o mesmo texto. Só, em vez de “assobia-se para o lado nos casos da Somália e do Curdistão - não é que a Somália e o Iraque sejam propriamente uns Estados maravilhosos, mas são Estados nossos amigos e não convém hostilizá-los” teria antes escrito que, para o Curdistão, não convém incomodar Erdogan, aliado da NATO, e que o Irão e a Síria talvez não estivessem de acordo.
Quanto ao ultimo parágrafo, o Senhor Luís Lavoura deveria afrontar a ira do “americano filo” irascível” deste blogue, acrescentando ao: “(Os EUA no século 19 tinham apoiado a independência das colónias espanholas na América.)”, “para as colonizar e integrar mesmo no seu Império”. Cuba, Puerto Rico, parte do México, Panamá, etc,etc,etc.
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