Como é sabido, a televisão foi, logo desde sua criação, em 1957, um instrumento importante da propaganda política do Estado Novo, em especial à medida que a sua cobertura se alargava pelo país. Basta lembrar o modo como Marcelo Caetano, a partir de setembro de 1968, usou esse veículo de influência, para fazer as suas “conversas em família”.
Creio que desde cedo, o regime abriu espaço a que alguns jornalistas, oriundos dos órgãos mais fiéis ao regime, ali fizessem intervenções temáticas, fosse sobre política interna, fosse sobre temas internacionais. Muitos se lembrarão de Barradas de Oliveira, de João Coito ou de Dutra Faria. Alguns eram mais dotados do que outros para prestações televisivas mas, verdade seja, quase todos os serventuários escolhidos para essas ações de propaganda tinham alguma qualidade intelectual.
Uma noite, em Vila Real, em data que não consigo precisar, mas que se situa nos anos 60, estávamos a ver televisão e a RTP “passava” Dutra Faria, que era então diretor da ANI, a agência de notícias pública, antecessora longínqua da Lusa. Desdobrava-se, imagino, numa qualquer diatribe anticomunista ou contra os "terroristas" que operavam nas colónias.
Nas casas portuguesas, a televisão costumava ficar aberta desde que a programação se iniciava, às 19 horas, até terminar, antes da meia-noite. A noite, em família, era passada a ver televisão, fosse o que fosse que estivesse “a dar”. O meu pai mostrava total indiferença face à palestra a que só não lhe punha termo porque, havendo um só canal televisivo, o "zapping" era então um conceito desconhecido.
Num certo momento da charla, chamou a minha atenção:
- Já reparaste naquela cicatriz que o Dutra Faria tem sobre a sobrancelha direita?
De facto, mesmo no preto-e-branco da imagem desses tempos (e, ligeiramente, na única fotografia que dele encontrei, na net), era óbvio que o homem tinha uma marca particular na pele.
- Eu assisti ao momento em que o Dutra Faria "ganhou" aquela cicatriz. Foi há quase 40 anos...
Olhei, com alguma surpresa, para o meu pai. Ele era o que se pode chamar um republicano "dos quatro costados". Embora inserido na família vila-realense da minha mãe, parte dela conservadora, nunca escondera a ninguém o seu pendor oposicionista. Tinha-me levado pela mão a ver Humberto Delgado, em 1958, quando visitou Vila Real na campanha presidencial, e, em 1969, viria a apoiar com entusiasmo a minha participação na aventura eleitoral local, na CDE, contra o regime, estando ele próprio impedido de fazê-lo pela sua qualidade de funcionário público. Mas, que eu soubesse, e precisamente por essa razão, nunca tinha participado em qualquer combate político, pelo que fiquei à espera da explicação. E ela veio.
- Julgo que foi em 1930, na "casa de pasto" Liège, que existe no alto do elevador da Bica, à esquerda de quem desce. Era um restaurante popular, de galegos, que os funcionários da Caixa Geral de Depósitos, como eu, então frequentavam. Um dia, no período do almoço, assisti a uma cena que me ficou na memória para sempre. Um grupo de "camisas azuis" - os nacional-sindicalistas, dirigidos por Rolão Preto - começou, numa mesa, a dar vivas à contra-revolução e ao fascismo. Os tempos políticos eram muito tensos. A ditadura estava em pleno e os nacional-sindicalistas andavam então numa grande euforia, julgando ser possível instituir em Portugal um modelo próximo do fascismo italiano. Pouco tempo depois, Salazar iria pôr um ponto final nesse radicalismo, obrigando o próprio Rolão Preto ao exílio. Os comensais das restantes mesas olhavam o ruidoso grupo, mas mantinham-se em silêncio. Dei-me então conta que um homem que almoçava sozinho, que vim a saber depois que era nosso colega na Caixa, começou a agitar-se e, a certa altura, não se conteve e gritou: "Viva a Democracia!" ou “Viva a República!”. Os nacional-sindicalistas, sentindo-se provocados, levantaram-se e cercaram a mesa do republicano. Este, ameaçado por todos os lados, pegou numa garrafa e enfrentou o grupo agressor. Na luta que se seguiu, um dos "camisas azuis" foi atingido no sobrolho e começou a sangrar. Aproveitando a confusão, o republicano conseguiu fugir pela calçada da Bica abaixo. O ferido era o Dutra Faria e o republicano chamava-se Carvalho Araújo. Tu sabes quem é...
Claro que sim! Era o Carvalho Araújo, um homem que fora afastado da função pública pelo Estado Novo, por atividades oposicionistas, nos anos 30. Mais tarde, depois de uma vida difícil e tumultuosa, regressou a Vila Real, já nos anos 60. Muito radical e com algum mau feitio, acarretava consigo uma aura de resistente à ditadura, que muito impressionava a nossa geração. Trabalhei com ele, ali mesmo, em Vila Real, na “batalha” oposicionista de 1969. Viria a ser reintegrado na função pública, por curto período, antes de ser aposentado, depois do 25 de abril. E, curiosamente, viria a ser colocado, durante esses meses, sob as ordens do meu pai.
Nessa noite, fiquei a saber a quem se devia a (republicana e vila-realense) cicatriz que nunca mais abandonou o rosto de Dutra Faria.
A principal avenida de Vila Real chama-se Carvalho Araújo, herói da Marinha na primeira Guerra Mundial, seguramente ascendente familiar do nosso resistente local.
(EM 2013 FOI PUBLICADO NESTE BLOGUE UM POST SOBRE ESTE TEMA QUE CONTINHA ALGUMAS INCORREÇÕES, PASSANDO ESTA A SER A VERSÃO VÁLIDA)