quinta-feira, junho 30, 2022

A carta da Líbia


Naquela segunda metade da década de 70, as relações entre Portugal e os países árabes iam de vento em popa. Os mercados árabes, diluídas que estavam as anteriores reticências políticas face a Portugal, no pós 25 de abril, mostravam-se um terreno promissor de negócios para os empresários portugueses.

Como jovem diplomata, eu era então secretário de um grupo de trabalho com o nome pomposo de CICEPMOM (Comissão Interministerial para a Cooperação Económica com os Países do Médio Oriente e do Magrebe), criado, em 1976, pelo ministro Melo Antunes, presidido pelo engenheiro José Torres Campos e integrado por uma meia dúzia de pessoas, entre as quais um engenheiro que dava pelo nome de António Guterres, ainda mais jovem do que eu. 

A Líbia era um desses novos horizontes de trabalho económico externo. O MNE tinha-me mandado lá por duas vezes.

Um dia, algures no segundo semestre de 1978, na velha "EAA" (repartição da África e Ásia da DG dos Negócios Económicos), onde trabalhava, fui chamado ao telefone ("ó doutor, é um inglês para si!", berrou, lá de dentro, uma das senhoras do "apoio"). 

Quem me falava, do aeroporto de Lisboa, não era “um inglês”, mas um diretor-geral do Ministério dos Municípios líbio, que eu havia conhecido, nas minhas viagens a Tripoli. O meu interlocutor disse-me que era portador de uma carta do titular do Ministério dos Municípios líbio para o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, que já era então José Medeiros Ferreira, que entretanto tinha substituído Melo Antunes. Trazia instruções para fazer entrega pessoal da missiva. Ambos se tinham conhecido numa visita a Lisboa, no ano anterior.

Contactado o gabinete do ministro, fiquei a saber que Medeiros Ferreira tinha partido, na véspera, para Nova Iorque, a fim de assistir à Assembleia Geral das Nações Unidas. E que - curiosamente! - iria encontrar-se naquela cidade, no dia seguinte, com o ministro líbio, mas dos Negócios Estrangeiros. Nestas condições, que significado poderia ter uma carta, enviada por intermédio de um correio personalizado, subscrita por um outro ministro líbio - aquele por quem passavam os principais contratos que as empresas portuguesas estavam prestes a assinar com as autoridades do país? Era urgente clarificar o assunto.

O chefe (interino) do gabinete do MNE, na ausência do Eduardo Paz Ferreira, era o meu colega Carlos Neves Ferreira. Cedeu-me um carro do gabinete para eu ir buscar o diretor-geral líbio ao aeroporto. Levei-o ao “terceiro andar” das Necessidades, onde o Carlos lhe explicou que o nosso ministro já estava em Nova Iorque. Mas prometeu que lhe daria conta, de imediato, da mensagem do ministro dos Municípios líbio. Embora um pouco desapontado por não ter levado a missão a termo de forma personalizada, como lhe fora indicado, o meu conhecido líbio entregou a carta, que vinha em envelope fechado. Acompanhei-o de volta ao aeroporto, de onde partiu para Madrid. Dei o assunto por encerrado, no que me respeitava.

Puro engano. Regressado às Necessidades, fui, de novo, chamado ao gabinete do ministro, onde me foi exposta uma dificuldade, que eu tinha de encontrar maneira de superar: a carta estava escrita em árabe! Era necessário traduzi-la - e com urgência. Eu que me desenvencilhasse, como pudesse.

Com a "criança nos braços", com Nova Iorque à espera de novidades, não sabia bem como proceder. Não conhecia, em Lisboa, nenhum falante de árabe em quem pudesse ter confiança! Tinha alguns conhecidos em embaixadas de países árabes, tinha mesmo uma boa relação com o chefe da comunidade muçulmana, Suleiman Valy Mamede, mas a Líbia era já, à época, um país fora do "mainstream" político do mundo árabe, pelo que não podia correr o risco de colocar em mãos adversas uma informação que, pela urgência e pela forma como nos fora transmitida, teria, seguramente, alguma importância e delicadeza.

Foi então que me lembrei que, nos meus tempos de universidade, tinha conhecido um especialista em língua e cultura árabe, o professor Dias Farinha. Descobri-o pela lista telefónica e fui visitá-lo a casa, numa das torres do Restelo. Expliquei-lhe o nosso embaraço oficial e o pedido de urgente ajuda que lhe formulávamos. A resposta foi menos direta do que eu pensava: a sua especialidade era o árabe clássico, pelo que precisava de algum tempo para, com apoio de dicionários, "trabalhar" o texto, embora ele não fosse demasiado extenso.

Ao final dessa tarde, regressei a casa de Dias Farinha. E foi então que constatei, pela tradução feita, que a carta era, nem mais nem menos, um montão de banalidades e lugares-comuns, de formulação de votos pelo prosseguimento das boas relações que eram mantidas entre os setores técnicos, nas áreas onde Portugal se preparava para atuar na Líbia, notas sobre a grande importância que Tripoli atribuía a um entendimento cada vez mais profundo com o nosso país, etc. Enfim, tudo "langue de bois". 

Eu estava siderado, e, claro, preocupado. Inquiri do professor Dias Farinha se, de facto, ele estava bem seguro de que a carta não era mais do que "aquilo", se não havia alguma mensagem subliminar ou se, afinal, eu podia assegurar ao meu ministro que o texto era, como se constatava, mera "conversa fiada". O especialista garantiu-me que sim.

Regressei às Necessidades, informou-se a nossa missão na ONU e, lá em Manhattan, o ministro português deve ter concluído, shakespeareanamente, sobre o alarme dos seus colaboradores em Lisboa: "much ado about nothing".

A historieta não acaba aqui. 

Em 2001, quando fui representar Portugal na ONU, ao cumprimentar o meu colega líbio, julguei nele reconhecer uma cara familiar: era o antigo ministro líbio dos Municípios, de seu nome Abuzaid Dorda. Nada mais nada menos que o subscritor da carta que tanto trabalho me havia dado. Tornámo-nos amigos. 

Dorda teve um futuro complicado: foi chefe da polícia secreta de Kaddafi, seria detido e severamente torturado depois da queda deste e passou oito anos preso. Morreu há semanas, no Cairo, li agora.

Por que é que me lembrei disto? Porque o meu interlocutor no gabinete do ministro, na historieta que aqui deixo, o meu colega Carlos Neves Ferreira, cumpre amanhã 80 primaveras e, com ele, no sunset de Sintra, tenciono beber à sua saúde uma champanhola das sérias. E lembrar os velhos tempos em que éramos um pouco mais novos.

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