terça-feira, outubro 02, 2018

Ainda Aznavour


Na onda de comentários com que as televisões francesas encheram o dia da morte de Charles Aznavour, esteve presente muita nostalgia. Aznavour, como “crooner” romântico, diz muito a muita gente. Esteve presente, com a sua música e as suas palavras, no quotidiano de quase três gerações. E isso é bem patente na tristeza que hoje atravessa a França. 

Duas notas mais. 

Fiquei surpreendido por poucos se lembrarem do Aznavour ator de cinema, onde fez coisas interessantes, não obstante aí surgir sempre como um “character” e menos como um profissional versátil. 

Michel Drucker lembrava ontem que a Aznavour desagradava o facto do seu nome surgir sempre após os de Brel, Ferré e de Brassens, de quem não se considerava inferior. É discutível - e interessa pouco discutir isso, cada um pensa o que quiser - se o era ou não. Uma coisa é certa: na hora da morte, só Brel se lhe aproximou em termos de impacto público. 

segunda-feira, outubro 01, 2018

Aznavour


Foi em 4 de junho de 2010 que publiquei aqui no meu blogue:

“Há minutos, a jornalista do "Le Progrès", de Lyon, que vinha conversar comigo ao hotel, ao deparar, no "hall", com Charles Aznavour, que saía, fez questão de fotografar os "dois embaixadores em Lyon", como nos disse ir intitular a notícia. É que Aznavour é hoje embaixador da Arménia junto das instituições internacionais em Genebra, como o carro com matrícula diplomática, que ele próprio conduz, não obstante os seus 86 anos, bem atesta.

Aznavour revelou-se uma figura simpática e loquaz. Explicou-me que a primeira vez que usara o seu recente título de embaixador fora numa visita à nossa Embaixada em Bangkok, julgo que há cerca de um ano, por gentileza do meu colega local. Elogiou a Feitoria onde a nossa missão diplomática está instalada na Tailândia e não deixou de acrescentar: "Vocês foram muito longe...". Atravessou-me a tentação de responder: "Mas já voltámos..." “

Charles Aznavour morreu hoje. Haveríamos de nos “reencontrar”, na UNESCO, em 2012, onde ambos coincidimos como embaixadores. Mas, posso confessar um segredo? Nunca o vi por lá!

Tenho a minha fotografia de Lyon com Aznavour algures. (Faço parte de uma “raça” estranha de diplomatas que não cuida muito das ocasiões fotográficas com personalidades e que, fora do tempo oficioso, as guarda com recato e, às vezes, com não deliberado descaso.)

Que bela coincidência estar, como hoje estou, em Paris, a cidade de Aznavour e da sua música, no dia da sua morte. A vida, às vezes, é muito generosa! Eu que o diga!

60 anos, hoje



Já me tinha esquecido, mas a memória dos amigos é imbatível. Acordei com esta “peça” do Guilherme Sanches:

Dia 1 de outubro era nesse tempo o primeiro dia de aulas, lembrei-me agora. Dia de ver horários, de ver as salas, saber os professores, encontrar os colegas e as colegas. Era o dia em que se entrava pela porta principal e a turma D, na sala 7, era mesmo ao fundo do corredor do lado esquerdo, vigiada atentamente pelo senhor José Carminé Guedes. Naquele dia foi o nosso primeiro dia de liceu, em Vila Real, há 60 anos redondos, faz hoje. Caramba!”

Deliciosa memória, com pormenores que eu não saberia nunca recordar. Até o Carminé! E, provavelmente, com o Sousa no hall de entrada, o Rocha, o Marques e a “menina” Arminda “presidindo” aos restantes corredores. Tudo isto sob a tutela grave do reitor de então, Eurico Pires de Morais Carrapatoso.

Provavelmente


Há uns anos, havia um anúncio da Carlsberg que a apresentava como sendo “provavelmente, a melhor cerveja do mundo”. Não é. Ainda há minutos bebi um Stella Artois bem melhor.

Vem isto a propósito de Paris, onde há pouco cheguei. Da porta do meu hotel, tirei esta sofrível fotografia ao Arco do Triunfo. Apenas para concluir, quase sem margem para dúvidas, que esta é, provavelmente, a mais bela cidade do mundo. 

Reconheço o caráter único da beleza natural do Rio, mesmo a imponência da baía de Sidney. Compreendo bem o fascínio por Veneza ou até Istambul. Conheço bem o insuperável somatório monumental de Roma, bem como o conjunto urbano ímpar que Nova Iorque desenha. E, claro, há também a magnífica Londres e, cada vez mais, a renovada Berlim. 

Mas, Paris, caramba!

domingo, setembro 30, 2018

Restaurantes

Gosto de comer bem, confesso.

Gosto de (bons) restaurantes, sofisticados, até mesmo algo pretensiosos, de “fine dining”, com “reduções” e “espumas”, mão de ‘chef”, cheios de “efes e erres” (“Enquanto vê o menu, posso  trazer-lhe uma flûte de Veuve Clicquot?”). 

Gosto de tascas, desde que limpas, com ruído e berros, toalhas de papel, serrim no chão (“Sai meia de chanfana, aqui pó shotôr!”). 

Gosto de restaurantes “média-alta”, com mesas sossegadas, estacionamento fácil, onde entro “em casa” (“Temos a mesa junto à janela de que sei que o senhor gosta”). 

E, cada vez mais, aprecio o estabelecimento classe-média-à-hora-de-almoço, lista previsível, serviço de manga arregaçada, simples mas atento, com o “para si, não!”, em voz baixa, olhando para o lado, não vá o patrão topar a cumplicidade: “Não! O senhor embaixador hoje não vai comer o polvo! Já a vitela ou o cabrito recomendo...”

É isso. Gosto de comer bem. Quando sou tentado a reprimir esta confissão, recordo-me dos textos de Taki, no “The Spectator”, e sinto-me logo absolvido deste meu modesto tropismo burguês.

Fleming


Acabo de ler que foi precisamente há 90 anos que Alexander Fleming descobriu a penicilina, invenção que revolucionou a medicina.

Em criança, ouvi várias vezes o meu pai dizer que eu devia a minha vida a Fleming. Com poucos meses, em Vila Real, aí por 1949, terei tido uma pneumonia que quase me levou desta para melhor. Terá sido a penicilina, então não muito comum em Portugal, trazida do Porto “em ampolas” pela mão de um recoveiro (quem não souber o que é, pode ir ao dicionário), que me salvou. Por isso, o meu pai manifestou sempre o desejo de vir, um dia, a pôr um ramo de flores na sua campa.

Quando nos anos 90 vivi em Londres, fui com os meus pais visitar a Catedral de S. Paulo. Para nossa imensa surpresa, deparámos, dentro da igreja, com o túmulo de Alexander Fleming. Recordo que houve alguma emoção nesse instante, embora, infelizmente, não tivéssemos à mão as flores devidas para o homenagear. Mas nunca esqueci o que, como muitos milhões de pessoas, fiquei a dever a Alexander Fleming.

sábado, setembro 29, 2018

Alves Barbosa


O ciclismo português assistiu a dois duelos históricos, bem antes de época áurea de Joaquim Agostinho: nos anos 30, o despique entre José Maria Nicolau e Alfredo Trindade e, nos anos 50, a rivalidade entre Ribeiro da Silva e Alves Barbosa.

Ribeiro da Silva morreu tragicamente, num acidente, em 1958. Alves Barbosa sobreviveu-lhe 60 anos, morrendo agora, aos 86 anos. 

Alves Barbosa ganhou três voltas a Portugal e fez um fantástico 10° lugar na Volta à França. 

Vivendo depois na sua Bairrada de sempre, onde um dia o vislumbrei de bicicleta (ele, claro!), fez durante anos o acompanhamento crítico do ciclismo na televisão.

Grande Alves Barbosa!

Marquês

Com alguma ironia à mistura (coisa que não costuma “passar” nas redes sociais), pode dizer-se que o Ministério Público é o grande “vencedor” da escolha do juíz Ivo Rosa para a instrução da Operação Marquês.

Se, no termo do julgamento, vier a haver condenações, conhecida que é a importância que Ivo Rosa confere ao seu papel como “juíz das liberdades” dos acusados, isso conferirá uma extraordinária legitimidade à acusação. Alguns dirão, contudo, que as eventuais condenações ocorreram “apesar de” Ivo Rosa.

Caso diferente, mas também “a favor” do Ministério Público, acontecerá se predominarem as absolvições ou vier a prevalecer uma fragilização das acusações. Nesta circunstância, a infirmação das provas será atribuída à conhecida tendência de Ivo Rosa de privilegiar provas diretas, o que o tem, com regularidade, colocado em confronto com a orientação do Ministério Público.

Nestas circunstâncias, acho que Joana Marques Vidal tem motivos para ter ficado satisfeita com o sorteio de Ivo Rosa. Ah! e também Carlos Alexandre pode sorrir: sempre dirá, no primeiro desfecho, que “eu é que tinha razão” ou, no segundo caso, que “eu é que devia ter ficado com o assunto a meu cargo”. 

sexta-feira, setembro 28, 2018

Um barómetro

A semana em que os principais dirigentes políticos mundiais se dirigem à Assembleia Geral da ONU é um tempo de discursos. Os presidentes, primeiros-ministros, ministros ou embaixadores que, por essa altura, ali falam tentam meter “o Rossio na Betesga”, naquele raramente respeitado quarto-de-hora de evidência, sumariando prioridades externas, procurando passar mensagens que só por acaso são lidas fora das próprias fronteiras. Em regra, essas intervenções seguem um linguarejar que se torna pouco apelativo e que até chega a disfarçar reais novidades escondidas na “langue de bois”. Outras vezes, procuram chamar a atenção através do recurso a fórmulas estilísticas mais criativas, e até chocantes, cuja eficácia funciona na razão direta da importância objetiva do respetivo país no quadro internacional.

Tendo já trabalhado na preparação desse tipo de intervenções e tendo sido ouvinte, às vezes sofredor, dessas ondas de discursos, aprendi, como os outros, a fazer a triagem entre o que, por ali, vale a pena ouvir e aquilo que não é mais do que retórica, mais ou menos balofa, para conforto de opiniões públicas internas. A regra é estar atento àquilo que diz quem realmente conta no quadro mundial de poderes e, às vezes, de novos sinais transmitidos por Estados que, conjunturalmente, estão sob holofotes políticos. Quanto ao que sobeja, resta tentar perceber se há mesmo alguma novidade naquilo que esperamos seja a reiteração do óbvio ou no que projeta uma média relevante de consenso – como é o caso da intervenção em nome da União Europeia.

Sem surpresas, o que os Estados Unidos dizem é sempre importante, pelo seu poder, “ordenador” e condicionador, à escala global, quer nos contextos bilaterais a cujo detalhe os discursos dos líderes americanos quase nunca fogem, quer pelo modo como por daí se pode detetar o grau de relevo que atribuem às instituições multilaterais, refúgio protetor das pequenas e médias potências. Claro que também importa aquilo que a Rússia e a China digam: a exegese do discurso do primeiro costuma ser mais interessante do que o caráter frequentemente críptico do segundo. 

A França, hélas!, quer-se sempre uma caixa de surpresas, com um tropismo para a singularidade que se esforça por assumir. A Alemanha, tem anos: algumas vezes, faz transparecer, por antecipação, aquilo que pretende da futura atitude europeia, através da qual objetiva muito da sua política externa, noutros dá sinais sobre inquietações que lhe suscitam os quadros geopolíticos de proximidade, face aos quais, como se sabe, é sempre mais reativa do que pró-ativa. Da Europa, tendo a Itália desaparecido como entidade relevante, resta o Reino Unido, que no passado foi sempre muito previsível, mas que, no atual quadro de solidão estratégica em que caiu, suscita apenas alguma curiosidade.

É triste dizê-lo, mas neste referencial do estado do mundo em que a Assembleia Geral da ONU se transforma, poucas são as restantes vozes interessantes. 

Na América Latina, salvo alguma curiosidade sobre a atitude venezuelana e aquilo que possa sobrar para além da retórica cubana, com um México ainda entre presidentes, um Brasil sem direção política e uma Argentina em nova crise, nada parece justificar atenção.

Da África, infelizmente, também não se espera muito. Para nós, importa anotar a imagem que a “nova” Angola queira fazer transparecer. Mas, para o mundo, já foi mais importante ouvir o que digam países como o Egito ou a África do Sul.

Na Ásia, para além da China, será curioso observar a linguagem das duas Coreias e os sinais pelos quais o Japão queira transmitir a sua preocupação com os desafios geopolíticos da vizinhança. Será ainda de anotar o que diz a Índia, eventuais sinais do Paquistão, bem como a reação de Myanmar ao seu acossamento. 

Resta, e não é pouco, o Médio Oriente. Aí, há que estar atento ao Irão, a Israel, à Arábia Saudita e, curiosamente, à Turquia, esse errático poder “adolescente”. O resto é irrelevante.
É assim, com realismo, o espetáculo onusino anual. Porque revela as pressões do tempo que corre, acaba por servir de bom barómetro.

quinta-feira, setembro 27, 2018

É dos livros !


Foi numa capital europeia. Notava-se que aquele funcionário português, ali colocado, andara todo o dia a passarinhar à volta da figura política que chefiava a delegação vinda de Lisboa. Era uma evidência que queria agradar-lhe, talvez para poder ter algum apoio futuro na sua carreira profissional. Compreensível, mas menos bonito de observar. 

Íamos em grupo, numa rua. A certo momento, o político viu uma livraria e disse que ia entrar, por um instante. Ficámos cá fora, à espera. O tal funcionário, que vinha um pouco atrás, inquiriu onde estava o governante. Ao saber que tinha entrado na livraria, apressou-se a juntar-se-lhe. 

O gesto, pelo caráter impulsivo da coreografia assumida, surpreendeu-nos a todos, mas talvez mais a alguém que, em voz alta, se interrogou sobre o que levara o homem a entrar com aquele afã na livraria. 

Recordo o “esclarecimento” de uma outra pessoa, concedo que um tanto cruel: “Felicitem-se por termos sido testemunhas de um momento único”. Interrogativos, olhámos para ele, que logo concluiu e elucidou: “Ver aquele tipo entrar numa livraria é uma ocasião histórica”. Logo um terceiro, mais maldoso ainda, acrescentou: “Só ultrapassado pelo dia glorioso em que ele, de facto, vier a ler um livro...” 

Há gente muito mazinha...

Políticos & livros


Ontem foi notícia que Marcelo Rebelo de Sousa foi à livraria Strand, em Nova Iorque, tida como a maior do mundo, com bem mais de 20 kms de estantes. E, ao que parece, o nosso presidente terá comprado lá o “Fear”, de Bob Woodward. Fez bem, vale a pena, acabei de o ler na semana passada.

A Strand é imensa mas é uma livraria muito pouco glamorosa. Em charme, está nos antípodas da Rizzoli, da Argosy ou de outras pequenas casas. Para mim, foi sempre um lugar para descobrir livros usados ou em saldo, muito embora as últimas novidades também acabem por estar por lá. Desde que a visitei, pela primeira vez, em dezembro de 1972, sempre me recordo de acabar empoleirado nas perigosas escadas de acesso às prateleiras superiores, quase sempre para “apanhar” coisas escritas sobre Portugal ou memórias políticas (um vício velho). É dessa primeira visita, há quase 46 anos, que data a aquisição do “Missão em Portugal”, de Álvaro Lins, editado no Brasil, onde o antigo embaixador em Lisboa conta a odisseia de ter dado asilo político a Humberto Delgado. O livro era então proibido em Portugal.

Marcelo Rebelo de Sousa é um amante de livros, como é sabido. Mas não é só ele (Soares era “viciado”). Ao tempo em que vivi em Nova Iorque, alguns dos nossos políticos de passagem gostavam que os levasse às livrarias, nos intervalos das reuniões. Nem todos... Recordo-me bem de ter mostrado a Strand a António Guterres e que Jaime Gama preferia a variedade mais atual de uma Barnes & Noble ou da saudosa Borders. E que fui com Paulo Portas a uma pequena mas muito interessante livraria na Lexington Avenue.

A Jorge Sampaio, ao tempo de George W. Bush, sugeri uma livraria (agora não recordo o nome) no Upper West Side que era tida por ser “de esquerda”. Nem sequer era verdade, era apenas uma livraria universitária, perto de Columbia. Quem ficou preocupado com o caráter “liberal” (“liberal”, nos EUA, significa “esquerda”) do local foi o pessoal do “Secret Service” (embora pareça estranho, eles trazem essa designação na lapela) que o acompanhava, que entendia o lugar pouco “frequentável” e que se mostrou nervoso durante toda a visita. Foi um belo momento e o então presidente saiu carregado de aquisições.

A minha tese foi sempre esta: felizes os países cujos políticos gostam de livros.

quarta-feira, setembro 26, 2018

Helena Almeida


A batalha da Mancha


O Brexit começou por ser uma ideia impensável. Depois, era uma implausibilidade, num país que se de alguma coisa sempre foi acusado foi de excesso de realismo. Finalmente, numa noite impossível, impôs-se-nos como um facto. 

Fruto da bravata de um homem a quem a Europa fica a dever um incomensurável erro histórico, David Cameron, o Brexit trouxe ao de cima todo um mal-estar conjuntural vivido na sociedade britânica - por motivos contraditórios, com a cumulação de argumentos antagónicos, um espetáculo de rejeição emotiva da relação do Reino Unido com um espaço político-económico onde, nas últimas décadas, foi gerada grande parte da sua riqueza. Porque é importante sublinhar isto: Londres é um dos grandes ganhadores da integração europeia. 

Dizer mal “de Bruxelas” - como se não fossem os ministros nacionais quem aí toma as decisões - é, desde há muito, um escape fácil para justificar coisas impopulares nas opiniões públicas. Assim sucede, um pouco por toda a Europa. Porém, o Reino Unido, além disso, fez da excecionalidade o seu modo europeu de vida, de Schengen ao euro, passando por outros “opt out”. Mais do que isso: conseguiu vender internamente que o que valia a pena era estar sempre a bater o pé a Bruxelas, numa atitude de permanente resistência a um poder adverso. Com essa atitude, Bruxelas inculcou-se, do discurso político aos títulos dos tablóides, como o inimigo permanente de uma soberania ameaçada. No dia em que um referendo, naquilo que este sempre tem de apuramento sincrónico e emotivo das vontades, permitiu aos britânicos expressar o sentimento que vinham a aculturar desde há muito, o resultado foi o Brexit. O mundo, e creio que também os britânicos, só a posteriori entenderam a importância do que verdadeiramente se passou.

Sendo uma expressão de vontade unilateral britânica, o Brexit não deixa de ser um imenso problema europeu. E o Reino Unido sabe isto. À sua frente tem uma primeira-ministra que é um “genérico” de Margareth Thatcher e que, como todos os líderes frágeis, tem uma imensa dificuldade em fazer compromissos. Do lado dos “27”, que também respondem perante opiniões públicas, de solidez governativa muito variável e que não se querem confrontar com novos problemas de que não foram fautores, parece haver uma compreensível rigidez negocial, na lógica futebolística de que não se pode “beneficiar o infrator”.

Na sua aparência económica, esta é uma imensa questão política, o maior desafio com que a Europa integrada se confronta, desde a sua criação.

Orelha de aço

O plenário da Assembleia Geral das Nações Unidas é um espetáculo, historicamente sempre iniciado pelo representante brasileiro, que se prolonga por vários dias. Na semana mais importante, que agora decorre, inicia-se a audição dos representantes de vários Estados, que debitam por ali os seus discursos - através de presidentes, primeiros-ministros, ministros dos Negócios Estrangeiros ou embaixadores. Em princípio, o limite de cada um é de 15 minutos, mas esse tempo raramente é respeitado. O record é de Fidel de Castro, que falou várias horas...

A ordem das inscrições para intervir é sempre objeto de critérios misteriosos de agendamento, que faz com que, não obstante os países serem todos “iguais”, alguns sejam sempre “mais iguais” do que outros, isto é, quem tem força fala mais cedo, a horas “simpáticas”. Em regra, a importância de um país mede-se pela colocação que consegue obter na ordem das inscrições, para representantes de nível protocolar idêntico. E, aos olhos dos governantes que se deslocam a Nova Iorque, a “performance” de um embaixador é sempre discretamente medida à luz da capacidade de fazê-los “subir” na lista, que acabará também por ser uma prova indireta de “influência” de que disfrutam no secretariado-geral.

Nas horas nobres dos primeiros dias, a sala da Assembleia Geral está relativamente cheia. Mas quando, ao final do dia, o delegado de uma pobre ilha do Pacífico ou das Caraíbas, ou de uma obscura República perdida em África ou na Ásia Central, toma a palavra, vai deparar-se com um deserto nas cadeiras. Ou então, apenas verá, atrás de algumas placas, um delegado de “décima linha”, um diplomata novato, que os países deixam sentado, apenas para fazer número. Porquê? Porque o país desse delegado, numa eleição futura para qualquer órgão do universo onusino, pode precisar no voto do país interventor e o gesto de simpatia de ter tido alguém a ouvi-lo pode acabar por ter um reconhecimento. Ah! E há sempre que ter lá alguém a ouvir os países amigos e, no caso de Portugal, temos muitos.

Esses diplomatas anónimos, que ali ficam por uma escala obrigatória, com um auscultador de plástico, horas seguidas, a ouvir platitudes de figuras de países que com toda a certeza nada dirão de relevante, alguns chamam, no jargão dos corredores da organização, os “orelhas de aço”, porque é preciso ter uma estrutura forte nas cartilagens auditivas para suportar o incómodo daquele plástico cinzento (não sei se a cor ainda é essa).

Na imagem, um “orelha de aço” vietnamita sucumbiu, talvez momentaneamente, ao bombardeamento de palavras e exerceu o seu direito à sesta. Porém, como a fotografia está já a correr mundo e Hanói não brinca em serviço, quem sabe se, daqui a meses, o seu destino não será um posto em Tashkent ou Ouagadougou?

terça-feira, setembro 25, 2018

Encontro na Europa

Dei hoje um curto testemunho, para um documentário televisivo, sobre Francisco Lucas Pires, alguém que nos deixou cedo (morreu em 1998, com 53 anos) e que me atrevo a dizer que fez bastante falta à política portuguesa.

Lembrei-me de um depoimento que escrevi, já há uns anos, num livro feito em sua homenagem:

“Conheci pessoalmente Francisco Lucas Pires em andanças europeias, na segunda metade dos anos 90. Era uma figura que, há muitos anos, me intrigava, política e intelectualmente. Dele tinha desenhado uma primeira imagem caricatural, ligada à aventura conservadora da “Cidadela” coimbrã. Bem mais tarde, pareceu-me poder ler, no discurso que desenvolvia como ministro da Cultura da AD, um tom saudavelmente heterodoxo, particularmente num tempo governativo que chegou a ter inquietantes derivas radicais. Como líder do CDS, fiquei com a sensação de que nem sempre se sentia muito confortável com o espartilho partidário, esforçando-se para compatibilizar o formalismo da função com a intransigente vontade de pensar as coisas pela sua própria cabeça. Mas foi como Deputado europeu que Lucas Pires verdadeiramente me surpreendeu.

Porque oriundo de uma escola de pensamento nacionalista, foi uma revelação encontrar em Francisco Lucas Pires uma das reflexões mais originais sobre o posicionamento de Portugal na Europa. Era um tempo em que, para muitos, o “europeísmo” era apenas um sinónimo de comodidade cínica com os fundos comunitários. Posso imaginar que a sua formação germânica o tenha ajudado a perceber melhor as virtualidades do processo integrador do continente. Mas terá sido, sobretudo, a sua inteligência que o levou a formular a defesa empenhada numa postura pró-activa de Portugal na aventura europeia, convocando em seu apoio clássicos que de que estivera distante, como António Sérgio, Vitorino Magalhães Godinho ou Eduardo Lourenço.

A imagem essencial que me ficou de Francisco Lucas Pires é a de um cultor obsessivo da liberdade, um espírito agudo e irónico, alguém que apreciava a vida e que, talvez por isso, se impacientava muito com a estupidez dos que a não sabiam viver. Um dia, num colóquio em Bruxelas, em que éramos os dois oradores convidados, perante a irrelevância e o paroquialismo pateta de algumas perguntas, sussurrou-me: “Veja você o que nós sofremos pela Europa…”. “

Brasil


O quadro, de há horas, explica, quase sem sombra de dúvida, que Bolsonaro e Haddad estarão na segunda volta.

Imaginemos que este resultado era o do voto em 7 de outubro: Bolsonaro teria de “crescer” 20 pontos e Haddad 26.

Quem poderá ter mais facilidade de chegar aos 50,1%?

segunda-feira, setembro 24, 2018

Os nomes


Encontrei-o na sala de espera da nossa embaixada em Luanda, aí por 1983, quando eu por lá trabalhava. Estava à espera de ser recebido por um colega meu. Tinha havido uma situação imprevista e ele tinha ainda para uma boa meia hora de espera. Perguntei-lhe se não queria, entretanto, ficar no meu gabinete. E para lá fomos.

Era uma figura bastante conhecida e muito respeitada na vida angolana. Haviamo-nos conhecido em algumas ocasiões sociais e mantínhamos uma relação de simpatia, se bem que não próxima. A queimar tempo, fomos conversando. Falámos de algumas pessoas que ele tinha conhecido na embaixada. 

A certo passo, disse-me: “Sabe com quem estou um pouco aborrecido? Com o seu colega Seixas da Costa!”. Divertido, alimentei o equívoco: “Ah sim?! E porquê? O que é que se passou?”. Explicou: “Depois que ele saiu de Luanda, escrevi-lhe uma carta e nada! Não esperava isso do Seixas da Costa!”. Maladro, dei “gás”, por uns segundos mais, à confusão de nomes: “Sabe como são os correios! Conheço bem o Seixas da Costa e sei que ele não deixaria de responder. Quer que lhe diga alguma coisa?”. Que não, que ia escrever-lhe de novo...

A confusão desfez-se logo depois. Ele queria referir-se a um colega meu que, anos antes, passara pela embaixada, mas o nome, na minha presença, saiu-lhe trocado. Acabámos a rir, comigo a achar imensamente graça a ouvir-me falar de mim como outra pessoa...

Portugal no Brasil (5)

(Correio Braziliense, 12 de Março de 2008)

No cafezinho

Olha que coisa mais linda…/ No Rio de Janeiro para participar da organização das solenidades que marcam os 200 anos da chegada da família real ao Brasil, o embaixador de Portugal, Francisco Seixas Costa, foi abordado por um estudante que lhe fez uma provocação, dizendo que o Brasil seria melhor se tivesse outros colonizadores, como os holandeses. 

Seixas da Costa não perdeu a fleuma. Depois de sugerir ao jovem que estudasse mais a história do continente, saiu-se com esta: "Queria ver você cantar Garota de Ipanema em holandês!"

Portugal no Brasil (4)

Polémica com o senador Ney Suassuna

O senador do PMDB, Ney Suassuna, criticou a atuação da polícia brasileira, numa Comissão Parlamentar de Inquérito transmitida pela televisão. A certo passo, disse, de forma depreciativa: “Até parece a polícia portuguesa!”

O embaixador de Portugal mandou-lhe a seguinte mensagem (1 de julho de 2005):

Senhor Senador 

Tomei nota, com um sentimento de espanto e tristeza, do comentário com que V. Exa. atingiu os Portugueses, há poucos minutos, durante o debate na CPI dos Correios. Portugal e os Portugueses que aqui vivem, e que muito deram e dão para a construção deste grande País, não eram merecedores que um representante político do seu gabarito recorresse a preconceitos que nos habituamos a ver ecoados nas graçolas debaixo nível, nos cómicos de televisão ou por escribas recalcados. Nem a Polícia portuguesa, cuja estreita cooperação a sua congénere brasileira se não cansa de elogiar, merecia ser tratada como o foi. Dirá V. Exa. que se tratou de um comentário sem intenção, sem sentido insultuoso, na passada do discurso. Mas o comentário lá ficou, feito por um político altamente responsável, representante qualificado de um partido político central da democracia brasileira. Como embaixador de Portugal, não posso deixar de o lamentar e registar. 

Com respeitosos cumprimentos 

Francisco Seixas da Costa
Embaixador de Portugal no Brasil 

O senador retratou-se quase de imediato:

Senhor Embaixador

Infelizmente, a palavra lançada, flecha que fere, não se pode recolhê-la. Não sabe Vossa Excelência o quanto me dói constatar a sabedoria embutida nesse provérbio popular, de origem ancestral, quando reconheço a infelicidade do comentário que fiz durante a minha interpelação ao Deputado Roberto Jefferson, pela injustiça à amada Pátria portuguesa e a sua gente irmã e amiga, nossos ascendentes diretos. Dói-me mais profundamente por não refletir o meu pensamento e a minha relação de respeito, cordialidade e admiração pelo povo e pela nação portuguesa, mãe saudosa do nosso jovem país, de quem sem dúvida herdamos, pelo exemplo, alguns dos nossos melhores atributos. Senhor Embaixador, acredito que não serão as palavras, mas o sentimento de enorme desconforto que ora me aflige que poderá redimir-me perante a delicada e acolhedora alma portuguesa. Aceite as minhas sinceras desculpas, transmitindo-as ao povo e ao Presidente de Portugal, e à colônia portuguesa aqui residente, que com extraordinário talento, entusiasmo, generosidade e força de trabalho foi determinante na construção do Brasil. 

Respeitosamente
Senador Ney Suassuna

Portugal no Brasil (3)

A terceira "polémica"

Artigo no "Estado de S. Paulo" (31 de Agosto de 2008)

Ao ler no editorial do "Estado de S. Paulo", de sábado, 23 de Agosto, que o nepotismo era o produto residual "arraigado" da herança colonial portuguesa, senti reproduzida, pela multi-enésima vez, a referência à expressão em que Pêro Vaz de Caminha pede ao rei, na sua famosa Carta, destino para um seu parente.

Talvez «porque hoje é sábado», como diria Vinícius, dia em que os jornais se lêem com maior vagar, detive-me a reflectir um pouco no verdadeiro conteúdo do que foi escrito pelo cronista do "Achamento". Ao formular a sua reverente petição ao rei, Caminha não estava a nomear ninguém para um cargo público, a colocar filho ou primo num gabinete ou numa sinecura paga pelo erário, na rentável administração de uma estatal, estava longe de pretender falsear um concurso público. Limitava-se a solicitar ao soberano, num tempo em que só a este cabia prover discricionariamente todos os lugares, no seu livre e indisputado arbítrio, um destino para pessoa ligada à sua família. Assim acontecia em todo o mundo, de que Portugal não era excepção.

O pedido de Caminha, que se tornou num bordão referencial da ética pública brasileira, mesmo de quantos se não deram ao trabalho de ler o texto da Carta, passou a representar o exemplo tipificado de nepotismo, não obstante incontáveis contribuições posteriores terem ajudado a recortar, com bem maior sofisticação, essa histórica prática - e não apenas no Brasil, é claro. Para alguns, porém, a frase de Caminha permaneceu como um ferrete que terá marcado, por uma misteriosa eternidade, o DNA brasileiro, transformando-se numa herança ético-administrativa de raiz pecaminosa. Ela reemerge sempre como pernicioso ranço luso, nas horas em que a retórica de alguns oradores já esgotou os clássicos bebidos no "Reader's Digest". Não é este, como é óbvio, o caso do "Estado de S. Paulo".

Neste reiterado uso do exemplo de Caminha subsiste, porém, um pequeno, embora quiçá despiciendo, pormenor: «nepotismo» não é nada isso. Trata-se de aproveitar a titularidade de lugares da administração pública para oferecer livre colocação a parentes (etimologicamente, a sobrinhos), passando a alimentá-los à mesa do orçamento. Nem mais, nem menos. E disso, convenhamos, Pêro Vaz de Caminha está inocente, sem necessidade de liminares ou recursos.

Longe de mim, como actual embaixador de Portugal, arvorar-me numa espécie de advogado-geral do tempo colonial. Bem me tem bastado, ao longo desde ano, ajudar à gestão póstuma das obras e graças do senhor dom João VI… Mas enquanto usufrutuário comum da bela língua que nos une, sinto-me no dever de colocar os pontos nos is, enquanto um novo Acordo Ortográfico os não abolir. E relembrar que, no século 16, ser solicitado um emprego para alguém - familiar, amigo ou correligionário -, pedido formulado a quem tinha então o legítimo poder para o conceder, não configurava nada que se pudesse identificar com o conceito de nepotismo, nem sequer com a ideia de fisiologismo - impressiva expressão brasileira que passo os dias a tentar traduzir aos meus perplexos compatriotas, a quem a prática não é alheia, mas para a qual não dispunham de tão interessante instrumento qualificativo. Por isso, entendamo-nos de vez: Caminha não praticou nepotismo. Para confirmar isso, basta ler o vosso excelente Aurélio ou o nosso magnífico Moraes.

Mas por que razão, estarão a perguntar-se os leitores, terá o embaixador de Portugal tomado o "Estadão" como alvo deste seu preciosismo terminológico, quando o tema é recorrente em tanta outra imprensa? Por um motivo de oportunidade, que nada tem a ver com o nepotismo, mas que se prende com o emprego.

Sem que tal represente menor consideração pela restante imprensa brasileira, cuja qualidade é reconhecida internacionalmente, talvez neste país se desconheça que muitos de nós, portugueses, sempre olhámos para o "Estado de S. Paulo" de forma muito particular. Nos longos anos em que, em Portugal, a liberdade não passava de uma miragem que se mantinha no horizonte longínquo, o Brasil acolheu, com imensa generosidade, muitas figuras que a ditadura salazarista alienava da vida cívica portuguesa. Nesse tempo, o "Estado de S. Paulo" destacou-se como porto de abrigo para algumas dessas personalidades, as quais, frequentemente, eram menos bem acolhidas por alguns compatriotas, aqui residentes, que não partilhavam ou rejeitavam mesmo o progressismo das suas ideias, porque haviam optado por se manterem próximos do regime que vigorava em Portugal.

Foi o "Estado de S. Paulo", foi a figura honrada de Júlio de Mesquita Filho quem deu então uma mão solidária a vários profissionais exilados da imprensa portuguesa, bem como a outras figuras da Oposição ao salazarismo, oferecendo-lhes emprego, ajudando-os a reconstituir a sua vida e a sustentar o seu quotidiano. Nada disso era feito por adesão ideológica ou doutrinária, por qualquer interesse ou favoritismo, mas simplesmente por um sentimento de simpatia e pela partilha de uma magnífica e rara ética de solidariedade. Nomes como Vítor Cunha Rego, Miguel Urbano Rodrigues, João Alves das Neves, Carlos Maria de Araújo, João Santana Mota ou mesmo Henrique Galvão, puderam encontrar no "Estadão" um apoio essencial, nesse tempo de turbulência de suas vidas.

Por essa razão, por essa memória grata e afectiva que os democratas portugueses devotam ao "Estado de S. Paulo", sentimo-nos livres para pedir que, quando um capítulo da nossa História em comum vem a lume, num dos seus editoriais, aliás sempre redigidos num excelente «português de lei», o máximo rigor seja mantido. Achamo-nos, assim, no direito de exigir ao "Estadão", com toda a cordialidade e imensa simpatia, a absolvição póstuma de Pêro Vaz de Caminha, que nunca pisou os terrenos pantanosos do nepotismo e se limitou a exercer o direito à solicitação um singelo pedido.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...