quarta-feira, setembro 26, 2018

A batalha da Mancha


O Brexit começou por ser uma ideia impensável. Depois, era uma implausibilidade, num país que se de alguma coisa sempre foi acusado foi de excesso de realismo. Finalmente, numa noite impossível, impôs-se-nos como um facto. 

Fruto da bravata de um homem a quem a Europa fica a dever um incomensurável erro histórico, David Cameron, o Brexit trouxe ao de cima todo um mal-estar conjuntural vivido na sociedade britânica - por motivos contraditórios, com a cumulação de argumentos antagónicos, um espetáculo de rejeição emotiva da relação do Reino Unido com um espaço político-económico onde, nas últimas décadas, foi gerada grande parte da sua riqueza. Porque é importante sublinhar isto: Londres é um dos grandes ganhadores da integração europeia. 

Dizer mal “de Bruxelas” - como se não fossem os ministros nacionais quem aí toma as decisões - é, desde há muito, um escape fácil para justificar coisas impopulares nas opiniões públicas. Assim sucede, um pouco por toda a Europa. Porém, o Reino Unido, além disso, fez da excecionalidade o seu modo europeu de vida, de Schengen ao euro, passando por outros “opt out”. Mais do que isso: conseguiu vender internamente que o que valia a pena era estar sempre a bater o pé a Bruxelas, numa atitude de permanente resistência a um poder adverso. Com essa atitude, Bruxelas inculcou-se, do discurso político aos títulos dos tablóides, como o inimigo permanente de uma soberania ameaçada. No dia em que um referendo, naquilo que este sempre tem de apuramento sincrónico e emotivo das vontades, permitiu aos britânicos expressar o sentimento que vinham a aculturar desde há muito, o resultado foi o Brexit. O mundo, e creio que também os britânicos, só a posteriori entenderam a importância do que verdadeiramente se passou.

Sendo uma expressão de vontade unilateral britânica, o Brexit não deixa de ser um imenso problema europeu. E o Reino Unido sabe isto. À sua frente tem uma primeira-ministra que é um “genérico” de Margareth Thatcher e que, como todos os líderes frágeis, tem uma imensa dificuldade em fazer compromissos. Do lado dos “27”, que também respondem perante opiniões públicas, de solidez governativa muito variável e que não se querem confrontar com novos problemas de que não foram fautores, parece haver uma compreensível rigidez negocial, na lógica futebolística de que não se pode “beneficiar o infrator”.

Na sua aparência económica, esta é uma imensa questão política, o maior desafio com que a Europa integrada se confronta, desde a sua criação.

1 comentário:

Joaquim de Freitas disse...

Estas tendências políticas não existem apenas no Reino Unido, mas são em toda a União Europeia as suas próprias criaturas. Impotentes a superar as repetidas crises do capitalismo, as burguesias europeias têm explorado essas forças do passado, que querem virar a roda da história para trás, para manter o valor da acumulação e concentração de riqueza nas mesmas mãos.

Demagogia, racismo, xenofobia, islamofobia e identidade nacional são os ingredientes essenciais utilizados pelas classes dominantes para melhor desviar as classes populares dos problemas reais que os afligem numa base diária: o desemprego de massa, precariedade, destruição de serviços públicos, supressão gradual das liberdades públicas e privadas, etc.

A União Europeia e todas as suas instituições não são reformáveis. As políticas económicas, cuja austeridade é apenas uma dimensão, entre outras, estão intimamente ligadas à natureza da classe da União. Os interesses dos opressores e dos oprimidos são irremediavelmente antagónicos. É uma ilusão acreditar que a Europa, tal como é construída, se transforme por milagre numa Europa democrática, social, solidária, ecológica e tutti quanti. Esta ideia de querer reformar a Europa a partir de dentro não é apenas incorrecta mas perigosa.

Quanto ao voto dos britânicos, é preciso ler Brecht;

« Le peuple, par sa faute, a perdu
La confiance du gouvernement
E ce n’est qu’en travaillant doublement
Qu’il pourra la regagner.
Ne serait-il pas plus simple
Pour le gouvernement
De dissoudre le peuple
Et d’en élire un autre ? »

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