terça-feira, agosto 04, 2015

Dirceu


Se há alguém a quem Lula deva muito na sua ascensão ao poder essa pessoa chama-se José Dirceu. Líder estudantil durante a ditadura brasileira, foi preso, esteve exilado em Cuba, regressou clandestinamente ao Brasil e viria a ser um dos grandes organizadores do Partido dos Trabalhadores, a frente ideológica que teve Lula da Silva como figura de proa.

Com a chegada de Lula à Presidência, Dirceu foi, clara e naturalmente, o número dois da nova administração. Sem surpresas, Lula confiou-lhe a poderosa chefia da Casa Civil, um lugar que, numa certa medida, pode ser equiparado ao de primeiro-ministro. 

No Brasil, o governo, sendo dirigido formalmente pelo presidente, é uma entidade cuja dimensão (são bem mais de trinta ministérios) não permite reuniões coletivas regulares. Durante os cerca de quatro anos em que fui embaixador em Brasília, recordo-me de ter havido uma meia dúzia de reuniões completas do governo. Por esse modo peculiar de funcionamento, o papel do chefe da Casa Civil torna-se vital. É ele quem cria e coordena grupos sectoriais de trabalho que, de certo modo, e no seu somatório, substituem as reuniões plenárias dos ministros.

José Dirceu foi um chefe da Casa Civil com força e visibilidade. Hoje, parece provado que, em paralelo, esteve no centro do chamado "mensalão", um esquema de financiamento de deputados que permitia ao governo assegurar a aprovação das suas medidas. As verbas para esse mecanismo provinham, ao que ficou provado, da sobrefaturação de certos contratos. Dirceu acabou por ser um dos condenados nesse famoso processo, que abalou fortemente o prestígio de Lula. Teve de abandonar a Casa Civil, sendo substituído por Dilma Rousseff.

Conheci José Dirceu em 2005, poucos dias após a minha chegada a Brasília, num jantar que me foi oferecido em casa de um amigo comum, onde também estavam figuras como o antigo presidente José Sarney, o presidente do Supremo Tribunal, Nelson Jobim, ou o então como agora de novo presidente do Senado, Renan Calheiros. Dirceu era então um homem confiante, que emanava poder, bastante cordial e simpático para comigo e para Portugal, embora projetasse sempre uma aura de mistério, talvez fruto do facto de o olharmos conhecendo o seu complexo passado político.

Dirceu volta agora a ser detido, curiosamente quando cumpria uma pena em prisão domiciliária. Em escassos anos, de figura hiper-poderosa e temida, tornou-se numa das personalidades mais detestadas do Brasil. Ainda antes da sua condenação, sabia-se que tinha dificuldade em viajar de avião, porque era regularmente insultado nas salas de espera dos aeroportos. Com o seu alegado envolvimento na nova operação que investiga a corrupção na Petrobras, Dirceu entra agora num outro calvário. 

Na leitura de muitos brasileiros, esta nova detenção de José Dirceu faz aproximar cada vez mais o atual processo judicial de Lula da Silva. Embora quem conheça a situação no seio do PT, e as relações internas que a estruturam, não deva ter dúvidas que o entendimento entre Dirceu e Lula já há muitos anos que estava bem longe desse dia longínquo de início de 2003, em que ambos entraram no Palácio do Planalto, com uma agenda em que os brasileiros colocaram então uma forte esperança.

segunda-feira, agosto 03, 2015

Despedida de um amigo

O corpo pesado estende-se pela cadeira, por detrás da secretária. A custo, insiste em levantar-se. Para me abraçar, para agradecer a visita. O seu olhar perde-se naquela sala tão cheia de recordações, de histórias, de História. As palavras saem-lhe com alguma dificuldade, quase automáticas, sempre amáveis. Suscita os temas que o mobilizam, as emoções e as certezas últimas que lhe dão alento à vida, mas também as tristezas que o abatem. Escolho as palavras, mas não sei se são as certas. Relembro tempos comuns, mas não tenho a certeza de me estar a seguir. Procuro assuntos que o façam reagir, agarra alguns, deixa passar outros em silêncio. Os nomes fogem-lhe, vive já com essa realidade, organiza o discurso em torno desses espaços vazios. Pergunta-me pela vida, mais para se orientar do que por real interesse. Dou-lhe novidades que, há pouco tempo, seriam para ele banalidades. Instalam-se entre nós as pausas, cada vez mais longas. Fico muito triste, sem saber o que dizer. Despeço-me com a quase certeza de ser aquele o nosso adeus. 

domingo, agosto 02, 2015

Pérolas de Belém

Américo de Deus Rodrigues Tomaz foi "eleito", em 1958, Presidente da República, cargo em que permaneceu até ao dia 25 de abril.
Ao longo dos seus mandatos, algumas frases dos seus improvisos tornaram-se um "must" do anedotário nacional e chegaram a ser objeto de cortes dos serviços de censura. Vejamos algumas dessas pérolas (hoje recordadas por um excelente blogue, mas que não admite partilha):
  • Comemora-se em todo o país uma promulgação do despacho número Cem da Marinha Mercante Portuguesa, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados..."
  • “A minha boa vontade não tem felizmente limites. Só uma coisa não poderei fazer: o impossível. E tenho verdadeiramente pena de ele não estar ao meu alcance.” 
  • “É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque estando numa cova está a mais de 700 metros de altitude...”
  • "O Senhor Professor Oliveira Salazar, ao longo de mais de trinta anos, é uma vida inteiramente sacrificada em proveito do país, e desconhecendo completamente todos os prazeres da vida, é um homem excepcional que não aparece, infelizmente, ao menos, uma vez em cada século, mas aparece raramente ao longo de todos os séculos."
  • "Eu prolongo no tempo esse anseio de V.Ex.ª e permito-me dizer que o meu anseio é maior ainda. Ele consiste em que, mesmo para além da morte, nós possamos viver eternamente na terra portuguesa, porque se nós, para além da morte vivermos sempre sobre a terra portuguesa, isso significa que Portugal será eterno, como eterno é o sono da morte."
  • "Neste almoço ouvi vários discursos, que o Governador Civil intitulou de simples brindes. Peço desculpa, mas foram autênticos discursos."
  • "Pedi desculpa ao Senhor Engenheiro Machado Vaz por fazer essa rectificação. Mas não havia razão para o fazer porque, na realidade, o Senhor Engenheiro Machado Vaz referiu-se à altura do início do funcionamento dessa barragem e eu referi-me, afinal, à data da inauguração oficial. Ambas as datas estavam certas. E eu peço, agora, desculpa de ter pedido desculpa da outra vez ao Senhor Engenheiro Machado Vaz."
  • "É a primeira vez que cá estou depois da última vez que cá estive."
  • "Hoje visitei todos os pavilhões se não contar com os que não visitei".

Função pública

Em 1979, o governo chefiado por Maria de Lourdes Pintasilgo publicou uma legislação, idêntica à que era já aplicada por muitos outros países, que permitia que os funcionários públicos que fossem cônjuges de pessoal português destacado para missões oficiais internacionais pudessem acompanhá-los, mantendo o vínculo profissional, continuando a descontar para a Caixa Geral de Aposentações, tendo como valor de referência o último salário auferido. Assim se evitava terem de optar por uma simples licença sem vencimento, para poderem acompanhar o marido ou a mulher. Não obstante suspender qualquer progressão na carreira, com perda de promoções e cargos de chefia, o que tinha natural impacto no montante da pensão no momento da aposentação, o mecanismo legal permitia manter o vínculo básico, não prejudicando nem onerando minimamente a globalidade do sistema. Quando o destacamento era suspenso ou terminava, o cônjuge funcionário regressava ao seu serviço de origem ou, de acordo com o interesse do Estado, era reafetado a outras funções.

O dispositivo funcionou sem problemas por mais de 35 anos. Evitou a separação de casais, facilitou a educação dos filhos num ambiente normal, contribuiu para a estabilidade e harmonia familiar. Foi aplicado a centenas de pessoas, não só aos diplomatas como a muitas outras profissões. Não prejudicava ninguém, não concedia nenhum privilégio indevido, garantia um mínimo de direitos.

Dizem-me agora que, há dias, os funcionários no ativo que estão nesta situação foram informados que, por uma subreptícia mudança na legislação introduzida em 2014, o decreto-lei de 1979 fora revogado. Muitos haviam entretanto descontado debalde durante cerca de um ano. No caso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, está por conhecer-se o que eventualmente terá feito para tentar evitar este arbítrio ou estará a fazer para o remediar.

A garagem da Varina


Cada vez mais, a facilidade de estacionamento é um fator de valorização de um restaurante, quando pensamos em escolher um local para comer. A densificação do tráfego tornou algumas zonas de Lisboa locais "iníveis", isto é, onde verdadeiramente se não pode ir de carro.

(Já estou a ver os críticos: "Este tipo é um burguês, quer parar o carro à porta dos restaurantes!" Ao que respondo: "Claro que quero! Se puder!". Faço parte de quantos, com todo o orgulho, cuidam em preservar, com todo o gosto, a sua "zona de conforto").

Os parques e o estacionamento de rua estão caríssimos e já tenho visto a "fatura" do parqueamento corresponder a bem mais de 10% do custo de uma refeição. Essa é uma das razões (a outra é o desagradável mas indispensável controlo etílico) pelas quais muita gente usa hoje taxi (ou Uber, que é bem mais agradável) para ir comer fora. Esse é também o preço do comodismo.

Os bairros históricos são, neste particular, um bom exemplo do que afirmo. Recordo-me dos tempos em que se conseguia um lugar para estacionar no Bairro Alto, ou até em Alfama ou no Castelo.

A historieta que passo a contar tem a ver com a Madragoa, um bairro onde hoje também é muito difícil estacionar. Por anos, ali pelo Quelhas ou pela velha Emissora, em baixo na Esperança ou pelas Trinas, conseguia-se sempre um lugar. Hoje, nem o meu Smart tem sorte!

Por ali fica um dos meus restaurantes de culto, a "Varina da Madragoa". Criado após o regresso de África do celebrado Francisco Queirós, figura inesquecível que viria a marcar uma época de Lisboa com o seu "Sua Excelência", a "Varina" passou depois, durante muitos anos, para as mãos do meu amigo António Oliveira.

As décadas de 70 e 80 foram o período dourado do restaurante. Meia Lisboa parava então por ali. Dada a proximidade do parlamento, os políticos eram imensos aos almoços. (A saudável concorrência era a antiga "Travessa", chamada "as belgas" pelos "habitués", o que tinha a ver com a nacionalidade da Vivianne, mas nada com a da Sofia). José Saramago e Isabel da Nóbrega eram clientes fiéis aos almoços de domingo (a "Varina" ainda hoje tem a inestimável qualidade de abrir todo o domingo). Até Cavaco por lá passou, levado por Eurico de Melo, como as paredes atestam. O êxito levou então o Oliveira - que hoje vive placidamente a sua reforma num simpático lugar da "outra banda" - a abrir, quase ao lado, a "Mercearia" e, mais tarde, a "Carvoaria". Na "Varina" me despedi dos amigos quando fui para Oslo, em 1979, e para Nova Iorque, em 2001. Aí comemorei o meu meio século e fiz muitas jantaradas de amigos e família, às vezes "fechando" mesmo a casa. Na vizinha "Mercearia" disse adeus aos próximos antes de partir para Londres, em 1990.

A "Carvoaria" desapareceu cedo. A "Mercearia" durou mais. Mudou entretanto de dono e de nome, chama-se hoje "Osteria", é um "conceito" (esta moda terminológica diverte-me) diferente, com uns petiscos italianos bem simpáticos e basta gente nova a dar alegria ao espaço e ao bairro.

A "Varina" lá continua, com a eterna simpatia do meu amigo Veiga no serviço às mesas, às vezes com clara dificuldade para, sozinho, aguentar as salas, noutras (vou ser sincero) para justificar algum evidente declínio de uma cozinha que, sem nunca ter sido soberba, chegou a ser bastante recomendável e agora, com frequência, tem falhas. A relação qualidade/preço continua, no entanto, aceitável.

Uma noite, já há muitos anos, andei bastante tempo até conseguir um local para estacionar perto da "Varina". Abri o guarda-vento do restaurante, que estava praticamente cheio. O Oliveira recebeu-me com um sorriso, lá do fundo. Fui avançando por entre as mesas e, à distância, lancei-lhe: "Foi um inferno para conseguir estacionar! Tem de pedir aos seus clientes para apertarem melhor os carros na vossa garagem". E, discretamente, pisquei-lhe o olho! O Oliveira não se "descoseu". E respondeu: "Aquilo é sempre difícil. Também são só oito lugares..." Recordo os olhares surpreendidos de vários dos presentes, entre os quais o meu saudoso amigo Eduardo Azevedo Soares. Afinal, a "Varina" tinha garagem e eles não sabiam! Prolongámos a graça por uns minutos mais, até tudo se desfazer em risos.

Até hoje, ainda tenho "saudades" da garagem da "Varina"! 

sábado, agosto 01, 2015

Propaganda


Edson Athayde, na senda de um grupo de brasileiros que fizeram muito bem ao mercado publicitário português nos anos 90, desenhou, com grande êxito, a campanha do PS de Guterres para as eleições legislativas. Mas isso foi há 20 anos.

Athayde é um criativo inteligente (deduzo eu, que nunca falei com ele) e culto. O seu livro "A publicidade segundo o meu tio Olavo" é muito divertido pelo que trouxe para férias (como faz parte de algumas dezenas de volumes, não sei se o chegarei a reler). 

O DN relata hoje que, para os lados do Rato, andam em polvorosa com a ineficácia da campanha de "outdoors" inventada por Athayde. Já tinha notado a mediocridade desses cartazes. Há um, em que uma jovem surge a tirar a cortina a um horizonte onde desponta um sol, que parece copiado do céu dos livros de Religião & Moral do meu tempo de liceu. Como mensagem, é mais que pífio.

Mas posso imaginar que a campanha de Athayde se confronte também com um problema doutrinário. Que mensagem quer o PS fazer passar? Conclamar a ira das "massas" contra as safadezas do governo, passando a ideia de que, chegado a S. Bento, "vai tudo raso"? Ou transmitir uma mensagem de alternativa tranquila, a qual, por seu turno, pode "ajudar à festa" de esquecimento das patifarias cometidas nos últimos quatro anos?

Não está fácil a vida para António Costa. Mas Athayde não está a ajudar.

sexta-feira, julho 31, 2015

Conversas no Pereira (1)

- Bons olhos te vejam! Então já vieste?

- Não, pá! Só venho amanhã...

Sampaio



Em tempo de democracia, a presença portuguesa nas instituções internacionais deve muito aos socialistas. Mário Soares foi, e ainda é, a cara respeitada do Portugal democrático. António Guterres deixou uma marca impressiva na Europa, seguida de uma prestação excecional como Alto Comissário para os Refugiados. António Vitorino permanece a memória da excelência portuguesa na Comissão Europeia. Vitor Constâncio assume-se como um prestigiado vice-presidente do BCE.

Jorge Sampaio recebeu, há dias, o prémio Nelson Mandela, destinado a galardoar, de cinco em cinco anos, figuras que se destacam na promoção dos valores da paz e da solidariedade à escala global.

Desde que deixou a presidência da República, em 2006, cargo que exerceu com uma elevação e uma dignidade excecionais, o antigo secretário-geral do PS foi chamado a importantes responsabilidades no quadro das Nações Unidas, inicialmente como representante do secretário-geral da ONU na luta contra a Tuberculose, mais tarde como Alto Representante para Diálogo das Civilizações. Ainda mais recentemente, Sampaio tem-se mobilizado em favor dos estudantes sírios, afetados pela tragédia que atravessa o seu país.

Pertenço a uma geração que se habituou a ter Jorge Sampaio como referente ético na ação cívica, muito para além da conflitualidade que a espuma dos dias introduz na política doméstica. Da luta académica à defesa dos presos políticos, da mobilização democrática durante a ditadura ao empenhamento institucional em democracia, passando pela experiência governativa e autárquica, em tudo Jorge Sampaio deixou sempre uma marca indelével. Nele me habituei a admirar a capacidade de diálogo e de compromisso, o sentido de equilíbrio, a palavra culta e informada, o respeito absoluto pelos outros, a permanente intransigência perante a mesquinhez e a intriga, uma seriedade à prova de bala - sinais que fazem hoje parte da imagem de marca deste grande homem e português de bem.

Há dias, olhando os presentes na sessão de homenagem que a Fundação Calouste Gulbenkian lhe dedicou, ficou muito clara a transversalidade da admiração e respeito que suscita no país.

É muito bom, para Portugal, poder contar com figuras da estatura de Jorge Sampaio, que honram a imagem do país à escala internacional. E não se estranhará que os socialistas tenham um especial orgulho de poder contar com ele entre os melhores da sua família política.

(Artigo que hoje publico no "Acção Socialista Digital")

Inês Rosa

Em circunstâncias trágicas, desapareceu agora a Inês Rosa. Conhecemo-nos em janeiro de 1986, na então Direção-Geral das Comunidades Europeias, nesse início da aventura europeia. Voltaríamos a trabalhar juntos uma década mais tarde. A sua vida profissional passou depois por diferentes desafios, onde a sua imagem se firmou e prestigiou. Era muito competente, e recordo que pensava bem a Europa e os nossos interesses dentro dela.

A Inês era uma mulher suave, elegante, com um andar inconfundível, uma voz doce. Vimo-nos a última vez em Paris, há mais de cinco anos.

Para a família da Inês, em especial para o seu irmão José, deixo um abraço sentido.

A Volta

 
Esperávamos, ansiosos, a chegada dos ciclistas, lá por Vila Real. Um pouco antes, nessa charneira dos anos 50 e 60, em que quase não havia transístores, alguém teria espalhado: "Já passaram no Alto de Espinho!". Esse era o separador mágico dos que estavam "p"ra cá do Marão", bem no topo das dezenas de curvas que começavam a nascer lá de baixo, em Amarante, contadas a partir do Largo do Arquinho. Imaginávamos então a descida infrene pela Boavista, Campeã e Arrabães, a derradeira subida desde a Ponte do Cabril, sob aquele calor transmontano dos "três meses de inferno".
 
Foi um tempo em que o ciclismo "eram" os clubes de futebol. Fora destes, havia, claro, outras vedetas, de Alves Barbosa a Ribeiro da Silva. Contudo, a nossa clubite congénita prevalecia sobre essas figuras, pelo que as camisolas de cor verde, encarnada (não se dizia vermelho, porque a censura cortava) ou azul eram por nós saudadas, à chegada, com um fervor que nos ligava diretamente a Alvalade, à Luz ou às Antas.
 
Nessa cidade que aqui recordo, onde nada ou quase nada se passava, a Volta era um acontecimento. As equipas distribuíam-se pelas pensões locais, as mais ricas iam para o Hotel Tocaio.
 
Desmontada a meta onde, horas antes, nos apinháramos para ver a chegada da caravana suada, o espetáculo passava então para a Avenida Carvalho Araújo, convertida num parque caótico de "carros de apoio", cheios de rodas com um reluzir metálico, de veículos da organização com papelada colada, os passeios subvertidos por hordas de estranhos, de identificação pendurada ao peito, o que lhes conferia uma dignidade mítica.
 
De chanatos arejados, numa mais do que duvidosa elegância, cheirando aos óleos da massagem pós-competição, os nossos "heróis" passeavam-se, impantes, ou jaziam refastelados em cadeiras de esplanadas, da Gomes ao Camposana, passando pela Brasileira.
 
Às vezes, viamo-los confraternizar com os jornalistas "da Volta". É que ali estavam, à nossa vista, o Aurélio Márcio, o Carlos Miranda, o Artur Agostinho, o Amadeu José de Freitas, o Manuel Dias, o Nuno Braz - nossos "íntimos" de "A Bola", do "Record", de "O Mundo Desportivo", do "Norte Desportivo" ou da "Emissora".
 
Ah! A cidade tinha um ciclista! Chamava-se Firmino Claudino. Emérito bilharista no "Excelsior", durante o ano arranjava e alugava bicicletas junto à estação. O Firmino às vezes corria a Volta, outras vezes não. Raramente chegava ao fim. Em qualquer caso, as etapas em Vila Real eram para ele momentos de glória, ao ser visto de braço dado com os companheiros famosos, como que a mostrar à terra: "Veem? Eu sou um deles!". Nesse dia, era.
 
(Artigo que hoje publico no JN)

quinta-feira, julho 30, 2015

Apanhado!

Recebi há minutos um mail: "Apanhei-te! Hoje, pela primeira vez, em seis anos e tal, não publicaste nenhum post".
 
Imagino o gozo desse meu amigo, um exegeta deste blogue, quase desde a sua fundação, a "apanhar-me" nesta gravíssima falta.
 
Pois ele está enganado. Saiu um post na quinta-feira! Já o estou a imaginar, roído de certeza, a espiolhar o blogue. Vai encontrar um post na quinta-feira. Qual? Este... Quando é que foi publicado? Sei lá!

quarta-feira, julho 29, 2015

Varoufakis


Depois da sua saída de ministro das Finanças da Grécia, Varoufakis tem estado muito ativo no seu blogue, como se pode ver aqui.
 
Aí defende a sua ação e insere interessantes textos, dos quais é legítimo inferir a diversidade de opiniões que hoje atravessa o Syriza - o que também não é indiferente para a negociação com as entidades europeias e para o próprio curso político interno na Grécia.
 
Varoufakis permanece assim como uma figura curiosa no cenário político grego, muito para além da proeminência institucional que, nos últimos meses, acabou por ter.
 
Há dias, numa conversa na Gulbenkian, quando alguém falava dos públicos que assistiam regularmente às iniciativas culturais da Fundação, Eduardo Lourenço saiu-se com esta:
 
- Querem encher o grande auditório? Tragam o Varoufakis! A sala fica logo a transbordar de mulheres...

terça-feira, julho 28, 2015

O retrato de Cavaco

 
A questão surgiu, há dias, num ambiente onde pontuavam algumas figuras das artes: quem será o eleito para pintar o retrato de Cavaco Silva, que integrará a galeria onde, em Belém, se acolhem os óleos que consagram a imagem dos antigos presidente?

Não podendo dizer-se que os presidentes se medem pelos retratos, a escolha do pintor tem frequentemente algum significado. Por isso, a pergunta, no tocante a Cavaco Silva, é pertinente: que artista emprestará o seu pincel à figura do ocupante que sairá de Belém em 2016?

Columbano Bordalo Pinheiro imortalizou Manuel de Arriaga, Teófilo Braga e Manuel Teixeira Gomes, figuras da cultura de quem era amigo. O retratismo da ditadura deu tempo a que Henrique Medina pintasse Carmona e Américo Tomaz, mas também que regredisse até à Primeira República e fizesse o retrato de Canto e Castro e Sidónio Pais - curiosamente, um chefe de Estado com tendências autoritárias e um presidente da República... monárquico. Mas também pintou António José de Almeida. Ainda na mesma escola, Malta foi responsável por Craveiro Lopes. Um nome menos sonante pintou Bernardino Machado (Martinho da Fonseca).

Com a Revolução de abril, Spínola escolheu Jacinto Luis, um amigo da casa. Costa Gomes escolheu Joaquim Rebocho e não foi feliz. Eanes optou por Luís Pinto Coelho, num estilo artístico social abastado, que ia bem com o ar do tempo e angulou ainda mais a rigidez do general. Soares rompeu o rigor figurativo e escolheu a heterodoxia alegre de Pomar. Sampaio colocou-se nas mãos prestigiadas e imaginativas de Paula Rego e deu no que deu.

E Cavaco? Quem o imortalizará?

ps - a obra que ilustra este texto é de Magaly Gouveia. Não é a pintura oficial.

segunda-feira, julho 27, 2015

Errata

Há semanas, escrevi por aqui um post intitulado "Notas para dois amigos". Nele comentava a saída de Augusto Santos Silva da TVI, numa decisão que me parecia ser da responsabilidade de Sérgio Figueiredo, que tem a seu cargo a informação daquela estação televisiva. Na "nota" que endereçava ao Sérgio eu adiantava: "Sei que as coisas às vezes são mais complexas do que parecem. Por isso, por não conhecer os detalhes da decisão, imagino que eles possam eventualmente ser mais esclarecedores do que aquilo que já veio a público. Mas, para já, e antes que esses possíveis factos sejam conhecidos, apenas me posso pronunciar sobre os resultados." E concluía que esses resultados afetavam o pluralismo da comunicação social televisiva. Não o dizia, mas queria com isso significar que a saída de Santos Silva do seu comentário da TVI vinha agravar o flagrante desequilíbrio do panorama do comentário político "residente" nas televisões portuguesas, o qual, no caso dos canais de sinal aberto, não é sequer desequilíbrio, é o total predomínio de uma só linha partidária - a que está no poder.

Sérgio Figueiredo veio hoje a terreiro - e só posso lamentar que o não tenha feito mais cedo - esclarecer, num longo mas elucidativo artigo publicado no "Diário de Notícias", não ter havido qualquer discriminação política na decisão. O que escreve no artigo convence-me, pelo que o assunto fica para mim muito claro: Sérgio Figueiredo não foi responsável por qualquer "saneamento" de Santos Silva e este terá feito uma leitura dos factos que não colam com a realidade objetiva dos mesmos. Muito embora eu tivesse feito o "disclaimer" que acima deixei reproduzido, acho que devo um pedido de desculpas ao Sérgio pela precipitação da minha conclusão sobre o assunto.

Regras

Num artigo que o "Diário de Notícias" hoje publica", o editor do "Financial Times", Wolfgang Münchau, explica, com uma simplicidade que só está ao alcance de quem pensa muito bem, a incongruência de algumas regras europeias. Neste caso, o articulista dedica-se à questão das contradições entre jurisprudências, muito em especial à utilização que delas é feita pelos mais poderosos atores do teatro comunitário. Sem utilizar a expressão, Münchau - uma figura que esteve Portugal em 2013, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos - acaba por concluir que as regras europeias, no seu aparente rigor, podem ser, em alguns casos, "à vontade do freguês".

O normativo comunitário existe para dar segurança jurídica à complexa máquina da União, para garantir que há um referencial de regras a respeitar. Mas todos nos demos conta de que essas regras existem para servir uma realidade, no quadro da qual foram estabelecidas. E que a realidade pode mudae. Não são "direito natural", são acordos, contratos, entendimentos entre vários países para, à luz das circunstâncias existentes, otimizar o funcionamento da máquina. Por exemplo, se as regras do euro fossem assim tão "automáticas" que sentido tinha o senhor Draghi poder dizer, com o efeito de "bomba atómica" que teve, a frase de que faria "whatever it takes" para salvar a moeda única? E não ficámos nós, por toda esta Europa germanizada na moeda, a aguardar com ansiedade da decisão do tribunal de Karlsruhe, a corte constitucional alemã, sobre algumas medidas do BCE?

Se deduziram que este post é sobre o Tratado Orçamental, acertaram.

domingo, julho 26, 2015

E então, o Chico Cereja...


Nos últimos fins de semana, vilarrealizei os meus dias. 

No primeiro, em Vila Real propriamente dita, numa imersão nas corridas, com o cheiro a gasolina e a pneus que faz a alegria regular dos "garotos da Bila", pontuada por covilhetes e cristas-de-galo. 

Nos dois fins de semana seguintes, já pelo Sul, o cenário foram fartas comidas e longas e divertidas conversas, com grupos diferentes de amigos, que têm em comum saberem de cor o trajeto entre a Albenina e o Cabo da Bila, terem conhecido o Bertelo e o Pincha, o Digníssimo e a Bichoqueira, e saberem de cor a sequência das casas da rua Direita, da Capela Nova ao Óscar.

A Vila Real de hoje está magnífica, diferente, para melhor. Lembrar o passado sem nostalgias é a melhor forma de celebrá-la.

sábado, julho 25, 2015

Mesa Dois

 
Elegia para a Mesa Dois do Procópio*

"Não mais, amigos, já não existe
À roda da Dois a alegre companhia..."
Assim clamava, emocionado, o ancião.
Era quarta à noite. Do velho triste
Uma lágrima a alva barba humedecia,
Fazia tremer-lhe a voz a emoção.
 
"Lá nasceram poemas e amores,
Se reformou a Pátria, surgiram filosofias;
Esgrimiram-se epigramas, brilharam teses,
E litros de whiskey, de gin e de licores
Fluíam entre névoas de fumo. Alegrias
Quase sempre; tristeza às vezes, 
 
Mas sempre o cintilar da amizade."
Calou-se melancólico e um suspiro
Agitou-lhe o peito venerando. Amargurado,
O senhor Luís rasgou, com gravidade,
O velho letreiro, qual histórico papiro,
Onde se lia a palavra "Reservado".
 
Ao balcão, a Alice esconde a comoção.
É a crise, claro, o euro, o mercado
Tem muita força o que tem que ser.
Um bando adolescente e trapalhão 
Já desgasta o veludo avermelhado.
A mesa Dois acaba de se render.
 
Jamais o Procópio escapará à dor,
Terá a sua natureza amputada.
Mas é assim: o tempo tudo arrasa.
Afasta-se, solene, o provecto orador.
O cajado nodoso ajuda-o na jornada
Em direcção ao Restelo, onde é a sua casa.

23/Julho/2015
 
* Texto da autoria de António Dias, reagindo a uma "circular" do autor deste blogue, há dias enviada aos utentes da "Mesa Dois" do Bar Procópio, apelando ao reforço da sua presença mais regular no "escritório".

sexta-feira, julho 24, 2015

"Governo de Portugal"


A legislatura que agora termina foi dominada por uma coligação pouco comum: entre uma maioria escolhida por um país em estado de necessidade e um grupo de instituições internacionais mandatadas pelos respetivos credores para impor um imperativo "take it or leave it". A maioria colocou com visível gosto a sua assinatura no programa de ajustamento, determinado a um Governo que negociara em situação de fragilidade extrema, um pacote drástico de medidas em que declarou que se revia e que, não raramente, considerou mesmo recuado face àquilo que eram ao seus reais propósitos. Em algumas áreas, o zelo da nova governação, exercido perante um país aturdido, atingiu proporções que chegou a surpreender os delegados dos credores, como está hoje documentado.
 
Para essa troika, deve ter sido um cenário de sonho vir a encontrar por cá, recém-eleito com confortável margem, um Governo que só por facilidade logística se sentava no outro lado da mesa. Ela que vinha de uma experiência com uma Irlanda que lhe havia batido com sucesso o pé em questões como a baixa do IRC, ou de uma Grécia que, não obstante ter conseguido obter cada vez melhores condições, dizia num dia uma coisa e fazia outra depois. Que sossego não terá sido, para os "homens de cinzento" aportar a um país tutelado por um Executivo complacente, "mais papista do que o papa"!
 
Não é comum, na história dos povos, assistir-se à ascensão, à tutela de um Estado, de um Governo que, movido por uma agenda ideológica contra esse mesmo Estado, cuida criteriosamente em desarticulá-lo, para melhor poder demonstrar a ineficiência do que pretende enfraquecer. Já menos incomum é a aplicação num país de receitas desenhadas no exterior, executadas por atores internos colaborantes; em algum passado, casos houve que ficaram marcados por algum desapreço na memória coletiva do Mundo.
 
O Governo desta atípica coligação chega agora ao fim. Os resultados são o que são: na dívida que aumentou, no desemprego que provocou, nas falências que originou, na emigração que promoveu, nas clivagens internas que potenciou - público versus privado, ativos versus reformados, novos contra velhos. O Governo vive sob a glória dos juros conjunturais de S. Draghi, o país permanece classificado de "lixo" pelas agências de notação, mas ostenta um sincrónico défice virtuoso, construído por vagas de impostos e pela degradação acentuada dos serviços públicos. Um coisa é indiscutível: cumpriu, com lealdade, as funções que lhe foram confiadas. Na lapela, mantiveram o pin do seu "Governo de Portugal". Não fosse dar-se o caso de se terem esquecido.
 
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quarta-feira, julho 22, 2015

O núcleo

Há na Europa um erro muito comum de leitura: pensar que o projeto comunitário tem uma determinada matriz e que a sua evolução mais não é do que uma simples derivada no tempo dessa estrutura original. Quem assim perspetiva a Europa não entende que todos os alargamentos mudaram qualitativa e diferenciadamente a União, que o fim dos desafios da Guerra Fria alterou os termos de referência do projeto, que a própria densidade progressiva das políticas comunitárias introduziu uma dinâmica que hoje só recorre ao Tratado de Roma por mera afetividade histórica.
 
Não é a primeira vez, nem será a última, que surge no seio da União um tropismo nostálgico de regresso aos “fundadores”. Recordo dessa “ameaça” ter sido colocada nos anos 90, no auge de negociações institucionais. É uma confissão de desespero perante o curso de um projeto que escapa ao controlo de quem se habituou a não ver contestado o seu poder, de quem vive convencido de que a legitimidade do nome “Europa” pertence a uns predestinados da História, que benevolamente se dispuseram a abrir o seu modelo a outros, numa generosidade a que todos devemos estar gratos.
 
O “núcleo duro” da Europa, por muito que alguns não gostem, pertence hoje a todos quantos, com voluntarismo e sacrifício, jogaram o seu destino e vontade no projeto comum. Não devemos rigorosamente a ninguém a nossa posição europeia, “pagamos” os fundos comunitários com a abertura económica das nossas fronteiras e com a presença de empresas de outros Estados que deles livremente beneficiam e os repatriam, com a estabilidade política e social que induzimos no continente e que ajudamos a projetar num mundo que conhecemos como outros não conhecem, contribuimos hoje com a mão-de-obra qualificada que “cedemos” à Europa desenvolvida, sem que ela tivesse de custear a sua formação.
 
Estamos hoje na União Europeia e no euro por mérito próprio e importa recordar que nunca estivemos, nem estamos, sós no incumprimento dos objetivos macroeconómicos dos tratados que assinamos, mesmo antes da crise. A autoridade dos “fundadores” seria mais evidente se todos eles cumprissem rigorosamente esses mesmos tratados – e nenhum o faz, sabiam? As verdadeiras lideranças afirmam-se pelo exemplo, pela prática da solidariedade, pela generosidade perante as grandes dificuldades, não pela arrogância e jactância de deslocados discursos de “grandeur”.

(Texto que hoje publiquei a convite da Acção Socialista on-line)

Albino dos Reis


Há dias, Jaime Gama, numa das suas charlas na net com Jaime Nogueira Pinto, disse que está a ser preparada uma edição das cartas de Albino dos Reis a Salazar. É uma excelente notícia! Há muitos anos, o José Stichini Vilela havia-me falado dessas cartas e do interesse da família em as editar. Perguntou-me mesmo se eu seria "candidato" à tarefa. Disse-lhe logo que não, porque tenho por muito claro o meu "princípio de Peter" em matéria histórica. Agora, as cartas parecem estar em muito boas mãos, como confirmou Gama.

Como já tenho escrito por aqui, entendo da maior importância a recolha de tudo quanto possa clarificar as redes pessoais durante o Estado Novo, para se entenderem melhor as motivações de certas decisões e o ambiente que marcou determinados períodos. Nas democracias, a abertura dos agentes políticos  e o acompanhamento mediático que a liberdade permite tornam o escrutínio mais fácil e objetivo. Já nas ditaduras, o hermetismo do processo político e a construção propagandística e artificial da mensagem publicitada levam, com grande frequência, a que se cristalizem visões distorcidas. Por essa razão, nesse contexto, as memórias e a epistolografia são um auxiliar precioso para romper com a opacidade do processo histórico.

Albino dos Reis foi uma figura curiosa na constelação de personalidades do Estado Novo. Líder local durante a Primeira República, onde foi deputado em setores conservadores ligados a Cunha Leal, foi Bissaya Barrteto quem o aproximou de Salazar. Este passou a tê-lo como um confidente que era ouvido sobre o pessoal político a escolher, numa linha de utilidade comparável a Supico Pinto, Mário de Figueiredo ou Soares da Fonseca. Integrava assim um núcleo de personalidades de ambição limitada e fidelidade ilimitada, categoria política muito do agrado do ditador.

A lista nacional de deputados posta a votos após a promulgação da Constituição de 1933 tem Albino dos Reis à cabeça. Alguma aura liberal que sempre o acompanhou, a que se somava um forte rumor da ligação à Maçonaria, não o impediu de ser ministro do Interior num período de feroz repressão, precisamente por altura da criação da Polícia de Defesa Política e Social, antecessora de todas as polícias políticas repressivas que entre nós se sucederam. Desempenharia ainda o cargo de presidente do Supremo Tribunal Administrativo e, mais tarde, da Assembleia Nacional, sendo substituído em 1961 por Mário de Figueiredo, numa disputa que significou uma vitória da ala mais conservadora do regime.

Das figuras mais próximas de Salazar, Albino dos Reis é talvez aquela que fez uma transição mais suave para Marcelo Caetano. Caetano emerge como novo chefe do governo, designado pelo presidente da República, na sequência de um Conselho de Estado em que Albino dos Reis defendeu a substituição imediata do ditador doente, sendo conhecida a sua preferência pela solução adoptada. Segundo José Silva Pinto, num artigo que li algures, deve-se a Albino dos Reis a indicação de Melo e Castro para presidente da Comissão Política da União Nacional, gesto que não é de somenos, atento o "abanão" que esta figura provocou nas escolhas mais polémicas de Caetano, até ser afastado.

Conto agora uma pequena história pessoal. 

Numa tarde de 1970, na sala de estar do Hotel Suíço-Atlântico, junto ao Palácio Foz, fui levado por um tio, que era deputado da União Nacional (aliás, não havia deputados de outros "partidos"...) na recém-eleita primeira Assembleia Nacional da era Marcelo Caetano, para junto de um grupo de deputados, instalados naquele hotel. Entre todos preponderava, com evidência, Albino dos Reis, do alto dos seus então 82 anos. Recordo duas outras figuras no grupo: Camilo de Mendonça, um "marcelista" notório que havia sido o primeiro presidente da RTP, que me parecia apenas de visita ao hotel, e um loquaz deputado de Aveiro, Homem Ferreira, que me pareceu ser um discípulo de Albino dos Reis.

A minha cooptação pontual para a conversa (não me recordo de ter dito rigorosamente nada) era um tanto estranha. Eu tinha 22 anos e devia ter ido visitar o meu tio. No outono do ano anterior, havia colaborado ativa e publicamente na campanha da oposição democrática em Vila Real, onde o meu tio fora cabeça de lista da União Nacional (a Ação Nacional Popular só nasceria mais tarde). Por essa altura, fizera já parte de uma lista associativa universitária cuja "homologação" fora recusada pelo governo. Porém, esse meu familiar e grande amigo, embora opositor político, tinha a plena certeza de que podia confiar na minha discrição e, pelo que também vim a constatar, na minha (falta de) memória. É que se me recordo muito nitidamente que Albino dos Reis, durante aquela hora, contou algumas histórias passadas com Salazar, que mobilizaram a atenção de todos, a verdade é que não fixei um único desses episódios: ou porque fossem anódinos ou porque a minha curiosidade estava centrada mais na coreografia do momento do que no "script" da conversa.

Chamo finalmente a atenção para a foto que aqui deixo. Ela tem um pormenor interessante. Foi tirada em 3 de outubro de 1969, 23 dias antes das "eleições legislativas" para a Assembleia Nacional, num contexto que desconheço. À direita está Albino dos Reis e, ao seu lado, surge António Ferreira Gomes, o bispo do Porto a quem Salazar (que, à época, ainda estava vivo) proibira, a partir de 1958, a entrada no país e a quem Caetano autorizara o regresso em julho desse ano. Ambos brindam a alguma coisa. A que seria?

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...