domingo, agosto 02, 2015

A garagem da Varina


Cada vez mais, a facilidade de estacionamento é um fator de valorização de um restaurante, quando pensamos em escolher um local para comer. A densificação do tráfego tornou algumas zonas de Lisboa locais "iníveis", isto é, onde verdadeiramente se não pode ir de carro.

(Já estou a ver os críticos: "Este tipo é um burguês, quer parar o carro à porta dos restaurantes!" Ao que respondo: "Claro que quero! Se puder!". Faço parte de quantos, com todo o orgulho, cuidam em preservar, com todo o gosto, a sua "zona de conforto").

Os parques e o estacionamento de rua estão caríssimos e já tenho visto a "fatura" do parqueamento corresponder a bem mais de 10% do custo de uma refeição. Essa é uma das razões (a outra é o desagradável mas indispensável controlo etílico) pelas quais muita gente usa hoje taxi (ou Uber, que é bem mais agradável) para ir comer fora. Esse é também o preço do comodismo.

Os bairros históricos são, neste particular, um bom exemplo do que afirmo. Recordo-me dos tempos em que se conseguia um lugar para estacionar no Bairro Alto, ou até em Alfama ou no Castelo.

A historieta que passo a contar tem a ver com a Madragoa, um bairro onde hoje também é muito difícil estacionar. Por anos, ali pelo Quelhas ou pela velha Emissora, em baixo na Esperança ou pelas Trinas, conseguia-se sempre um lugar. Hoje, nem o meu Smart tem sorte!

Por ali fica um dos meus restaurantes de culto, a "Varina da Madragoa". Criado após o regresso de África do celebrado Francisco Queirós, figura inesquecível que viria a marcar uma época de Lisboa com o seu "Sua Excelência", a "Varina" passou depois, durante muitos anos, para as mãos do meu amigo António Oliveira.

As décadas de 70 e 80 foram o período dourado do restaurante. Meia Lisboa parava então por ali. Dada a proximidade do parlamento, os políticos eram imensos aos almoços. (A saudável concorrência era a antiga "Travessa", chamada "as belgas" pelos "habitués", o que tinha a ver com a nacionalidade da Vivianne, mas nada com a da Sofia). José Saramago e Isabel da Nóbrega eram clientes fiéis aos almoços de domingo (a "Varina" ainda hoje tem a inestimável qualidade de abrir todo o domingo). Até Cavaco por lá passou, levado por Eurico de Melo, como as paredes atestam. O êxito levou então o Oliveira - que hoje vive placidamente a sua reforma num simpático lugar da "outra banda" - a abrir, quase ao lado, a "Mercearia" e, mais tarde, a "Carvoaria". Na "Varina" me despedi dos amigos quando fui para Oslo, em 1979, e para Nova Iorque, em 2001. Aí comemorei o meu meio século e fiz muitas jantaradas de amigos e família, às vezes "fechando" mesmo a casa. Na vizinha "Mercearia" disse adeus aos próximos antes de partir para Londres, em 1990.

A "Carvoaria" desapareceu cedo. A "Mercearia" durou mais. Mudou entretanto de dono e de nome, chama-se hoje "Osteria", é um "conceito" (esta moda terminológica diverte-me) diferente, com uns petiscos italianos bem simpáticos e basta gente nova a dar alegria ao espaço e ao bairro.

A "Varina" lá continua, com a eterna simpatia do meu amigo Veiga no serviço às mesas, às vezes com clara dificuldade para, sozinho, aguentar as salas, noutras (vou ser sincero) para justificar algum evidente declínio de uma cozinha que, sem nunca ter sido soberba, chegou a ser bastante recomendável e agora, com frequência, tem falhas. A relação qualidade/preço continua, no entanto, aceitável.

Uma noite, já há muitos anos, andei bastante tempo até conseguir um local para estacionar perto da "Varina". Abri o guarda-vento do restaurante, que estava praticamente cheio. O Oliveira recebeu-me com um sorriso, lá do fundo. Fui avançando por entre as mesas e, à distância, lancei-lhe: "Foi um inferno para conseguir estacionar! Tem de pedir aos seus clientes para apertarem melhor os carros na vossa garagem". E, discretamente, pisquei-lhe o olho! O Oliveira não se "descoseu". E respondeu: "Aquilo é sempre difícil. Também são só oito lugares..." Recordo os olhares surpreendidos de vários dos presentes, entre os quais o meu saudoso amigo Eduardo Azevedo Soares. Afinal, a "Varina" tinha garagem e eles não sabiam! Prolongámos a graça por uns minutos mais, até tudo se desfazer em risos.

Até hoje, ainda tenho "saudades" da garagem da "Varina"! 

5 comentários:

Anónimo disse...

Mas à esquerda não é uma garagem?

Anónimo disse...

Azarito, pá.

Outros também prezam zona de conforto e chegaram ao estacionamento primeiro

Levantasse-se mais cedo, para ter onde estacionar.

opjj disse...

Dizia Vasco Santana; chapéus há muitos. Eu diria, ladrões há muitos. Muitos querem sacar a qq preço.Hoje ás 6h fui ao aeroporto de Faro levar uma pessoa próxima, olhei para o placar e dizia 0,60€ cada 15min. Tenho via verde e a conta virá a seu tempo.
Cumps.

Anónimo disse...

Madragoa é linda e as Varinas também.

Zé da Adega o da Esperança

Luís Lavoura disse...

Também há uma canção do Quim Barreiros sobre a garagem da vizinha.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...