sexta-feira, abril 25, 2014

O herói


Quando abrimos a porta, o "Ramos" dormitava numa sala de instrução, cabeça sobre a mesa, barba por fazer. Horas antes, tinha sido detido. Ele era o oficial de dia e, não estando no segredo do golpe, sendo imprevisível a sua reacção e não havendo tempo para operações de recrutamento por convicção, foi essa a decisão que os responsáveis pela tomada da unidade militar assumiram como a melhor, até para sua própria defesa, se algo corresse mal.

O "Ramos" era um tenente miliciano que decidira integrar a carreira profissional, uma facilidade a que o corpo militar recorria com cada vez mais frequência. Era um homem jovial, um pouco “militarão”, mas boa pessoa, com excelente relação com todos nós. Nada indicava que pudesse ser hostil à nova situação. Ora as coisas começavam a serenar, a unidade estava sob total controlo, Marcello Caetano estava cercado no Carmo, não havia razão para lhe prolongar o sofrimento. Foi solto.

De início ficou um pouco confuso, mas foi-lhe explicado o que acontecera, as razões da sua detenção e que, naturalmente, se contava com ele, dali em diante. Ficou outro. Foi tomar um banho e juntou-se-nos, com uma alegria genuína.

Perdi-o de vista durante o dia mas, ao final da tarde, venho a encontrá-lo na RTP, objectivo estratégico que a nossa unidade ocupara nessa noite. Tinha sido, entretanto, encarregado da segurança da entrada dos estúdios de televisão, com um grupo de soldados cadetes.

Quando se aproximou a hora da chegada à RTP da Junta de Salvação Nacional, para fazer a sua proclamação ao país, o "Ramos" montou aquela que viria a ser a guarda de honra para a chegada de Spínola, Costa Gomes e os outros membros do novo poder. Por curiosidade, confesso, para poder estar presente nessa ocasião com laivos de histórica, juntei-me a ele na entrada da RTP, onde, à época, havia uma bomba de gasolina. Como eu era aspirante e ele tenente, fiquei sob o seu episódico comando, para o exercício de protocolo militar que se iria seguir.

O grupo de cinco ou seis soldados cadetes que compunham a “tropa” do "Ramos", que passei a “subcomandar”, estava num estado de cansaço que não augurava uma grande dignidade ao momento que se iria seguir. Bom conhecedor da poda militar, o "Ramos" relembrou a todos a forma de proceder na cerimónia de apresentação de armas.

Todos os soldados tinham G-3. Eu, porém, ainda hoje estou para saber porquê, tinha andado todo o dia com uma metralhadora FBP (na qual eu tinha “forçado”, por lapso, um carregador de balas errado, creio que de uma Vigneron, o que, mesmo que fosse preciso, me teria impedido de dar um único tiro durante todo o 25 de Abril...), arma que exigia um gestual protocolar diferente. Mas que lá aprendi, graças ao "Ramos".

Chegado o grande momento, o "Ramos" afina a guarda de honra à Junta. Do primeiro carro, que me recordo de ser acinzentado, saiu Spínola, grave como sempre. O "Ramos", com garbo, deu as vozes de comando necessárias e lá fizemos a melhor “apresentação de armas” que nos foi possível organizar.

Spínola perfilou-se face ao "Ramos", fez continência, fixou o monóculo e olhou-o, por um imenso instante. O resto dos membros da Junta pararam, um pouco atrás, expectantes do momento. Spínola lançou então, para o perfiladíssimo "Ramos", sempre em continência:

- "Eu não o conheço da Guiné, nosso tenente?".

O "Ramos" só conseguiu balbuciar, esmagado de comoção:

- "Meu general, efectivamente tive a honra de servir com V. Exa. na Guiné".

Spínola grunhiu algo, do tipo "logo vi!", e afastou-se, de capote e pingalim, rampa acima, a caminho dos estúdios.

Aí, o "Ramos" virou-se para mim, impante:

- "Estás a ver, pá, ele reconheceu-me, lembra-se de mim. Este gajo sempre foi o meu herói!".

E continuou a sê-lo, a partir daí. Para o "Ramos", claro.

O comandante (historieta que dedico ao António)

António Alves Martins

As ordens, nessa manhã de há precisamente 40 anos, tinham sido claras: os portões da unidade ficavam fechados e ninguém entrava sem uma autorização, dada caso a caso. A surpresa foi, assim, muito grande quando vimos o comandante da unidade, em passo lento mas firme, arrastando o corpo pesado, a subir a ladeira que levava à parada onde nos encontrávamos. O sargento de guarda ao portão ter-se-á amedrontado com a aparição da sua figura e, perante um berro hierárquico, lá o teria deixado entrar.

Ao ver surgir o comandante, o capitão do quadro que assumira as funções de oficial de dia, desde as primeiras horas do golpe, ficou lívido.

- Ora bolas! E agora, o que é que fazemos? - voltando-se para o António Alves Martins e para mim, que o acompanhávamos na parada.

Não deixava de ter a sua graça: nós, meros aspirantes a oficial miliciano, a aconselhar um profissional que era o responsável máximo de uma unidade militar amotinada.

Entretanto, o comandante ia-se aproximando, tínhamos poucos segundos para reagir.

- Prenda-o de imediato, mal ele chegar ao pé de nós - disse-lhe eu, em tom baixo, delegando comodamente a minha coragem.

Ainda era muito cedo, nesse dia 25 de Abril, não fazíamos a mais leve ideia de como estava a situação pelo país, não sabíamos mesmo se não seríamos das poucas unidades amotinadas.

- Você está doido, então eu ia lá prender o homem!. Pela disposição do capitão, eu e o António percebemos que as coisas não iam ser nada fáceis.

O comandante aproximou-se de nós e estacou, aí a dois metros. Trocámos as continências da praxe, com o António, dado que tinha a boina displicentemente no ombro, a fazer um mero aceno com a cabeça.

- O que é que você está aí a fazer de oficial de dia?, lançou o comandante, em voz bem alta, ao vê-lo com a braçadeira encarnada da função. Não era o "Ramos" que estava de serviço? E o que é que andam os cadetes a fazer pela parada? Porque é que a instrução ainda não começou?.

Eram aí oito e meia da manhã e, desde as oito, os soldados cadetes deveriam, em condições normais, estar a ter aulas. O capitão, sempre ladeado por nós os dois, estava, manifestamente, sem saber o que fazer, com o quarteto já sob os olhares gerais.

- Ó meu comandante, é que houve uma revolução…, titubeou o capitão, em tom baixo, como que a desculpar-se. Não explicou que o oficial de dia, que ele substituíra, havia sido detido nessa madrugada e estava fechado numa sala.

O comandante, sempre ignorando-nos olimpicamente, olhou o capitão nos olhos e atirou-lhe, com voz forte e bem audível à volta:

- Qual revolução, qual carapuça! Você está-se é a meter numa alhada que ainda lhe vai arruinar a carreira! Ouça bem o que lhe digo!.

O momento começava a ser de impasse. O comandante olhava já em redor, num ar de desafio, consciente de que recuperara algum terreno, mas também sem soluções óbvias para retomar a autoridade. Não havia mais militares do quadro à vista, alguns tinham ido para a missão externa que a unidade tivera a seu cargo, outros ter-se-ão prudentemente esgueirado, para evitar a incomodidade deste confronto com o comando legal. O capitão quase que empalidecia de crescente angústia.

É então que o António, com o ar blasé de quem já estava a perder paciência, lança um providencial:

- Ó meu capitão, vamos lá acabar com isto!.

O comandante olhou então finalmente para o António e para mim, dois meros aspirantes, com uma fácies de extremo desprezo, como se só então tivesse acordado para a nossa presença em cena.

Aproveitei a boleia da indisciplina, aberta pelo António, e fiz das tripas coração:

- Ó meu coronel, e se fôssemos andando para o seu gabinete?.

O coronel olhou-me, com uma raiva incontida:

- Coronel? Então já não sou comandante?.

A crescente nervoseira deu-me um rasgo, com uma ponta de sádica ironia:

- Não, não é, ainda não percebeu? E a conversa já vai muito longa, não acha, meu capitão?.

Mas o capitão continuava abúlico. O impasse ameaçava prosseguir.

- Então você deixa-se comandar por dois aspirantes?! - lançou o coronel, numa desesperada tentativa de puxar pelo orgulho do pobre oficial.

Mas o vento já tinha claramente mudado e achei que tinha de aproveitar a minha inesperada onda de coragem, até porque, no fundo, já pouco tinha a perder:

- O meu coronel quer fazer o favor de nos acompanhar até ao seu gabinete? É que, se não for a bem, tem que ir a mal e era muito mais simpático que tudo isto se passasse sem chatices.

Confesso que me espantei com a minha própria firmeza mas, pronto!, o que disse estava dito. O António sorria, deliciado. O capitão não reagiu, para meu sossego. O coronel entendeu então, talvez pela primeira vez, a irreversibilidade da situação. A sua voz baixou para um limiar de resignada humilhação:

- Então eu estou preso, é isso?, disse, num tom muito menos arrogante.

- Mais ou menos. Vamos andando, então - cortei, rápido, dando o capitão por adquirido, mas sem fazer a mais pequena ideia se ele queria ou não prender o coronel.

Nesse segundo, dei-me conta que, se tudo acabasse por correr mal, o meu futuro iria ser complicado. E lá fomos para o gabinete do comando. Duas horas depois, mandámos um carro levar o coronel de volta a casa.

Só o voltei a ver, anos mais tarde, ao entrar no Café Nicola. Recordo o olhar gélido que me lançou, com porte ainda altivo, barriga saliente, muito na reserva. Já com toda a liberdade, pedi uma bica.

A cabine


A cabine no dia 25.4.14

Estava-se nas primeiras horas do dia 25 de Abril de 1974. Todo o pessoal que dormia no quartel tinha sido acordado e mandado formar no escuro da parada. De megafone na mão, o capitão que liderava a revolta, anunciou que a unidade ia integrar um movimento militar que tinha como finalidade “acabar com a ditadura”, competindo-lhe atacar um determinado objectivo. 

Os soldados, quase todos ensonados, alguns ainda a despistar a hipótese de se tratar de um mero exercício, ouviram em silêncio as palavras do capitão: quem quisesse alinhar que fosse buscar a sua arma, os restantes podiam voltar para a cama. 

Mas já ninguém conseguiria dormir. Ouviram-se alguns comentários e apartes mais entusiastas, de milicianos com tarimba das lutas do associativismo universitário, alguns dos quais já previamente contactados, para o que viria a ser uma das primeiras operações militares que o Movimento das Forças Armadas iria efectuar nessa madrugada.

O pessoal foi mandado destroçar e, em pequenos grupos, regressou, cochichando, às camaratas, em busca da arma ou do travesseiro para a vigília. 

Foi então que um soldado, discretamente, se aproximou da cabina telefónica que existia num canto da parada. Abriu a porta e, nessa altura, alguém, mais atento, atirou-lhe um berro: 

- Eh! pá, o que é que vais fazer?.

O rapaz olhou, meio apalermado, largou a porta da cabina já entreaberta e disse, com toda a candura, que só queria avisar a família, não fossem ficar em cuidados quando ouvissem as notícias. 

- Nem as penses! Pira-te daí!, ouviu logo. 

Desapareceu de imediato, rumo à camarata. Alguém entrou na cabina e arrancou o fio do telefone. 

Como se faria hoje uma revolução, na era dos telemóveis?

quinta-feira, abril 24, 2014

Retratos do 24 de abril (4)


Miguel Portas

Há dois anos, a 24 de abril de 2012, desapareceu Miguel Portas. Conhecia-o pela leitura do que ele escrevia, por alguns programas de televisão e por correspondência por email que trocámos, vai para dez anos. Um dia, quis falar comigo pessoalmente sobre a Europa (como já referi aqui). Queria conhecer a minha perspetiva sobre o papel efetivo que Portugal poderia desempenhar nesse contexto.

Tivémos um longo e agradável almoço, rodeados por muitos olhos do MNE que prescrutavam, no espaço da "Tasca da Armada", ali em Alcântara, nesse tempo de "chumbo" de 2003, a conversa entre um embaixador então muito pouco ortodoxo e um conhecido deputado do Bloco de Esquerda. Depois, a vida de cada um trocou-nos as voltas. Nunca mais nos voltámos a encontrar, embora trocássemos breves mensagens.

Miguel Portas deixou natural saudade em quantos o conheceram bem, mas igualmente em outros que, como eu, apenas apreciávamos, à distância, a sua figura de homem livre, nada sectário, ansioso da vida que, por um azar, lhe iria fugir breve.

Nesta data, deixo o nosso abraço sentido à Helena e ao Paulo.

Retratos do 24 de abril (3)


O regresso das praxes?

A tragédia ontem ocorrida em Braga, envolvendo vários estudantes, que resultou em três mortos e diversos feridos, decorreu final de atos de praxes ditas académicas. 

Depois do Meco e de tantos outros incidentes que levaram à morte, à incapacitação e a repetidas violências e humilhações sobre estudantes, só a cobardia das autoridades, públicas e universitárias, justifica que se deixe prolongar este medievalismo. Por aqui, ainda continuamos no 24 de abril.

EPAM

Amanhã, dia 25 de abril, pelas 11.30, terá lugar a cerimónia de afixação de uma lápide no edifício da antiga Escola Prática de Administração Militar, na avenida das Linhas de Torres, 179, ao Lumiar, onde hoje funciona o Instituto Superior de Educação e Ciências (ISEC). 

Trata-se de assinalar, nestes 40 anos do 25 de abril, aquela que foi a primeira unidade militar a sair para a rua nessa data, sob a chefia do capitão (hoje coronel) Teófilo Bento, que também vai estar na ocasião. É uma pena que figuras importantes nessa movimentação da EPAM, como Manuel Geraldes ou António Reis, ausentes no estrangeiro, não possam estar conosco. Foi a sua determinação e a sua liderança, nomeadamente na condução da operação de tomada das instalações da RTP, nessa madrugada, que contribuiu para o sucesso da operação.

Serão muito bem vindos nesta celebração todos quantos andaram pela EPAM e pelas subsequentes "guerras" na RTP, depois dessa data. Quatro décadas passadas, seria uma alegria reencontrá-los.

O meu dia 24 de abril

O meu dia começou cedo. Ido de Santo António de Cavaleiros, onde vivia desde que casara, poucos meses antes, entrei de carro na Escola Prática de Administração Militar (EPAM) onde, às 9 horas iniciei a primeira aula de "Acção Psicológica" aos ensonados soldados-cadete. Às 11 horas, recolhi à biblioteca que orientava (além de "oficial de Ação Psicológica" da unidade, era coordenador do próprio curso de formação de oficiais milicianos nessa especialidade, bibliotecário e também diretor do jornal da unidade, "O Intendente"). Foi aí que fui procurado pelo António Reis.

Um parêntesis para explicar que o António Reis, hoje um consagrado historiador e professor universitário, era o contacto privilegiado dos milicianos da unidade com os oficiais do quadro, para o conjunto de movimentações político-militares que, desde há meses, acompanhávamos. Conhecia o António dos tempos da luta da oposição democrática, onde ele tinha tido um papel destacado, nomeadamente como candidato oposicionista por Santarém. Para surpresa de muitos de nós, em especial para meu grande espanto, António Reis surgira, meses antes, integrado na especialidade de Ação Psicológica, que eu orientava. A máquina das informações militares, na sua articulação com a PIDE (que, nessa altura, já era designada por DGS), tinha algumas lacunas e só semanas mais tarde, já muito próximo da data da Revolução, mandara "reclassificá-lo", devendo regressar a Mafra, onde iria ser Atirador de Infantaria. Esta determinação tinha sido por nós sonegada ao comando da unidade, através de cumplicidades burocráticas internas, pelo que não viria a ter qualquer efeito prático até ao 25 de abril. O António pôde, assim, assumir o importante papel que desempenhou nesse dia.

Regressemos à biblioteca. Com um ar conspirativo, nesse final de manhã, o António pediu-me para reunir alguns oficiais milicianos já previamente "apalavrados". Juntámo-nos na sala e ele informou que o golpe militar estava previsto para essa noite. Ficámos tensos, confrontados com a gravidade da informação recebida. Só mais tarde iríamos saber o que de cada um de nós se esperava. Aos pedidos de detalhes que colocámos, nomeadamente no tocante à dimensão da ação militar (o fracasso da tentativa de golpe de 16 de março ainda estava muito "fresco"), o António adiantou explicações naturalmente vagas.

Depois, só me recordo da tarde, já após a saída da unidade. Encontrei-me com António Franco, hoje embaixador aposentado, que tinha feito a especialidade de Ação Psicológica comigo, mas que fora requisitado pelo MNE. Tomámos um café no snack-bar "2000", ao Campo Pequeno, e revelei-lhe a iminência do golpe. Não havia nenhuma razão especial par eu cometer essa indiscrição, mas esse gesto (que hoje posso ver como algo irresponsável) foi espontâneo, face a um amigo em que eu confiava em absoluto.

Dei a informação também ao meu pai, que estava de visita a Lisboa. Democrata dos sete-costados, o meu pai alimentava uma desconfiança persistente sobre a capacidade dos militares derrubarem o regime que ele sempre detestara. Recordo-me o comentário depreciativo que ele fez sobre "a tropa", à saída do hotel "Suíço Atlântico", onde fomos juntar-nos com um tio meu, então deputado do regime... Acabámos todos a jantar em casa de outros familiares, nos Olivais. Foi uma ocasião estranha: se a operação militar que iria decorrer, horas depois, tivesse sucesso, o futuro desse meu tio - um grande amigo de todos nós, a começar por mim - iria sofrer uma grande mudança. À mesa, apenas eu, o meu pai e a minha mulher estávamos a par dessa forte possibilidade, pelo que a conversa, para nós os três, não deixou de ter sempre isso como pano de fundo.

Acabado o jantar, deixei os meus pais na Feira das Indústrias, à Junqueira, onde havia uma exposição de antiguidades. Pretextei algo para regressar a casa. À saída da exposição, ao deparar com o Bentley que transportara o presidente da República para a inauguração do evento, o meu pai disse para a minha mãe uma frase enigmática, que ela lembraria até ao fim da vida: "Se uma coisa que o nosso filho hoja me disse vier a acontecer, a partir de amanhã o Américo Tomaz não volta a entrar neste carro". E mais não adiantou. O dia 24 de abril de 1974 estava a terminar. 

quarta-feira, abril 23, 2014

Brasil

Ontem jantei com um empresário brasileiro, de passagem pela Europa. Hoje à tarde, participei num grupo de estudos sobre as relações Portugal-Brasil, de que faço parte, no âmbito do Instituto de Defesa Nacional. Acabo de ler as notícias sobre os graves incidentes que tiveram lugar em Copacabana, com um potencial de (novo) efeito-dominó que não deve ser descurado.

O Brasil vive um momento complexo. Devo confessar que, quando deixei o posto diplomático naquele país, em fins de 2008, estava longe de pensar que, meia dúzia de anos depois, a situação interna do país iria evoluir como evoluiu. A meu ver, o Brasil é vítima do seu sucesso recente, isto é, um presente menos brilhante é agora comparado com a vaga de esperança que se tinha criado, alimentada pelo bem-estar crescente registado nas últimas décadas, responsável por um forte movimento de ascensão social, agora muito longe da vitalidade de outrora. Por outro lado, a ideologia algo libertária que o "petismo" gerou no comportamento das classes mais pobres, de questionamento da autoridade (como natural libertação de um país que se emancipava do colete de forças do autoritarismo histórico - político e social) e de exigência crescente de direitos, acaba por ser menos compatível com o "petismo II", titulado por Dilma Roussef, que, além de não ter o carisma do seu antecessor, se defronta com uma economia que marcha a taxas de crescimento muito mais baixas que a generalidade dos seus vizinhos. Se a isto somarmos uma classe política pouco propensa a abandonar hábitos comportamentais chocantes, do fausto material a desvios patrimonialistas, muito mais chocantes para quem vive no lado negro da sociedade, perceber-se-á melhor o escândalo que suscitam os gastos em iniciativas como a "Copa". Lula ensinou os brasileiros a serem cada vez mais exigentes com o Estado e Dilma Roussef está a sofrer os efeitos do êxito dessa pedagogia.

Discriminação

Ao tempo da ditadura, as proclamações anti-fascistas de feição mais radical conclamavam, muitas vezes, à revolta dos "soldados e marinheiros", tidos como "o povo em armas", aliados "objetivos" do proletariado. 

A chegada do 25 de abril não atenuou o tom dessas proclamações, antes pelo contrário. Muitos dos movimentos de extrema-esquerda ganharam, a partir dessa data, uma ainda maior visibilidade nos meios de comunicação social, nomeadamemente nos seus apelos ao fim da guerra, à recusa do embarque para as colónias e até à deserção. As paredes do país ecoaram também essas palavras de ordem.

Após outubro de 1974, trabalhei no Estado-Maior General das Forças Armadas, numa repartição que se dedicava à análise e acompanhamento da atividade dos diversos grupos políticos. Um dos nossos colaboradores, que tinha a seu cargo tarefas administrativas, era um cabo da Força Aérea, com menos de 20 anos. A ele lhe cabia arquivar toda a parafernália de comunicados que iam surgindo, depois de lidos e analisados.

Um dia, ao receber uma dessas proclamações radicais, em cujo título se apelava uma vez mais à revolta dos "soldados e marinheiros", o rapaz não se conteve e, numa afirmação de orgulho do ramo militar a que pertencia, perguntou-me:

-  Ó meu aspirante. Porque é que estes tipos só falam dos "soldados e marinheiros", do Exército e da Marinha? Porque é que nunca dizem nada sobre os "aviadores", sobre a Força Aérea? Também somos gente, não?!

Nem sei bem o que lhe respondi... 

Retratos do 24 de abril (2)

http://www.youtube.com/watch?v=cPkEeYEC_BY

O lapso de Pacheco

José Pacheco Pereira é um historiador de mérito do movimento operário português. Além disso, é um celebrado observador da nossa vida política, qualidade em que se tem revelado um prolixo articulista e comentador. Oriundo da extrema-esquerda maoísta, transitou pela chamada "esquerda liberal" antes de aportar, sem surpresa, ao regaço do PSD. Por aí se manteve, sempre num registo algo inconfortado. Conheci-o nos tempos em que passou pelo Parlamento europeu. Nos últimos anos, tendo-se afastado da linha da atual liderança do seu partido, enveredou por uma linha fortemente crítica da maioria no poder. Servido por uma indiscutível inteligência, tem sido de uma bela eficácia na desmontagem do poder que temos. Para alguma esquerda, depois de ter sido um ódio de estimação, tornou-se hoje numa coqueluche: faz, por vezes, o trabalho de crítica que ela própria parece não ser capaz de fazer, com a credibilidade muito original de quem vem "do outro lado". Faz parte dos "novos camaradas", uma raça política que dá imenso jeito e é politicamente barata.

Por ocasião destes 40 anos do 25 de abril, e como colecionador reconhecido da iconografia da Revolução, Pacheco Pereira foi encarregado pela Assembleia da República de organizar uma exposição sobre cartazes políticos. Dizem-me que é uma boa mostra. De passagem, incumbiram-no ou incumbiu-se de criar um painel onde colocou 200 e poucas personalidades que, no seu entender, marcaram politicamente estes 40 anos. 

Pacheco fez a seleção que o seu critério pessoal ditou. 200 pessoas é muita gente, mas é seguramente menos do que seria desejável. Devem falhar, com toda a certeza, algumas pessoas. Mas por lá estão, naturalmente, Carmelinda Pereira e Cabral Fernandes, figuras ímpares do trotskismo luso, que abalaram politicamente estes últimos quatro decénios. Alguns incontornáveis ícones de abril, como Etelvina Lopes de Almeida ou Amândio de Azevedo, não escaparam à memória seletiva de Pacheco. Expoentes resgatados em boa hora ao opróbrio do anonimato como Mariano Pires (não me diga que não sabe quem é?) ou Manuel Cabanas, por aí se consagraram no paredão da glória. E, claro, como não podia deixar de ser, por lá estão, com indiscutível espaço, Soares, Eanes, Sá Carneiro, Freitas, Kaúlza, Spínola, Otelo, Guterres, Gama e tutti quanti.

Estão todos? Não. Neste seu rigoroso critério de probo historiador, Pacheco "esqueceu" Jorge Sampaio, que "apenas" foi presidente desta República durante 10 dos seus 40 anos, líder do movimento estudantil de 1962 que abriu o caminho à última década da revolta contra a ditadura, presente desde então em todas as lutas contra o Estado Novo.

Lapsos qualquer um tem, não é?

PS - e agora, algumas semanas passadas, o lapso foi corrigido: Jorge Sampaio integra 50 nomes complementares.

O atentado

O 25 de abril e o período que se lhe seguiu foram férteis em histórias, algumas verdadeiras, outras mirabolantes. Quem viveu essa época lembra-se, com certeza, do episódio do caixão cheio de armas, que fez as delícias das fórmulas mais imaginativas sobre o 28 de setembro. O tal "caixão", num carro funerário, terá aparecido, segundo as versões, em diversas barreiras de estrada, umas vezes em Alverca, outras vezes na calçada de Carriche, outra vez nos "Quatro Caminhos". Nunca fui muito dado a fantasias revolucionárias e, iconoclasta como sou, sempre duvidei destas histórias "demasiado boas".

No auge do "Verão quente" de 1975, uma das historietas que corriam nos meios do MFA prendia-se com a hipótese de um atentado ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves, que teria sido gorado pela "vigilância revolucionária". Segundo se contava, e os meios gonçalvistas pintavam com pormenores, um grupo "reacionário" teria tomado conta de um apartamento na calçada da Estrela, de onde pretendia atingir, com uma espingarda de mira telescópica, o gabinete de Vasco Gonçalves, com vista a assassiná-lo. Este potencial atentado teria sido evitado por uma oportuna denúncia.

Como disse, sou pouco dado a teorias conspirativas e levei a historieta à conta de uma fantasia do grupo que borboletava em torno de Vasco Gonçalves, feito da "esquerda militar", de muitos militantes ou "compagnons de route" do PCP e de uns "operacionais" gonçalvistas, alguns dos quais foram e são meus amigos.

Passaram muitos anos. Um dia, no Brasil, fui convidado por um cidadão português para almoçar. A conversa levou ao "Verão quente". O meu interlocutor sabia bem que eu tinha estado envolvido nesses tempos militares. A ele, eu conhecia-o, de nome e de fama, como uma pessoa corajosa, ferozmente anticomunista, ativista na luta clandestina contra o MFA, em 1975.

A certo ponto da conversa, revelou-me: tinha-se voluntariado, nesse "tempo da brasa", para liquidar Vasco Gonçalves. Era conhecido como um especialista de armas, de caça e de guerra, e, por essa razão, fora escolhido para a "operação" pelos seus companheiros de ideologia. Contou-me pormenores, descreveu-me os passos que tinham sido dados para montar a operação, falou-me da casa na calçada da Estrela que deveria ser utilizada para o atentado e, sem que agora me lembre bem dos detalhes, deu-me conta de uma "infiltração" no seu grupo político que levou à denúncia do complot, que assim se gorou.

Tomei boa nota e, pelos dados que me forneceu, fiquei com total confiança no relato que me fez. Vasco Gonçalves não foi objeto de nenhum atentado, mas que ele esteve planeado disso não tenho a menor dúvida.

terça-feira, abril 22, 2014

CENSURA

De hoje, até ao final do dia 25 de abril, todos os comentários reacionários ou depreciativos da Revolução que forem enviados a este blogue serão liminarmente censurados. Só se aceitarão louvores e elogios sinceros à data libertadora.

É só para ver se quem assim pensa gosta que lhe calem a voz. Era isso que acontecia até há 40 anos.

Depois do dia 25 de abril, voltaremos a aceitar aqui todas as opiniões, mesmo as mais retrógradas. Esta é a nossa diferença...

Retatos do 24 de abril (1)


O MFA e a NATO

Ontem, durante a intervenção que fiz no Congresso "A Revolução de Abril", contei uma pequena história ocorrida em agosto de 1974.

Eu era adjunto da Junta de Salvação Nacional. Pelo gabinete que partilhava com o então major (hoje general) Costa Neves, chefe de gabinete do membro da Junta, general Galvão de Melo, passavam muitos quadros superiores do MFA, vários elementos da sua Comissão Coordenadora, alguns membros militares do Conselho de Estado que então funcionava junto do presidente da República, general António de Spínola. Eram dias intensos, marcados pela emergência das primeiras grandes conflitualidades que atravessaram o MFA, com as diversas correntes militares a tomarem posições e a medirem forças, que haveriam de se tornar bem contrastantes no 28 de setembro.

Num desses dias desse primeiro "Verão quente", sentado à minha secretária, constatei que a questão da presença de Portugal na NATO era objeto de uma troca de impressões entre o José Manuel Costa Neves e outro elemento da "comissão coordenadora" do MFA, também da Força Aérea. Comentavam que um outro colega, do mesmo ramo militar, fora de opinião que a continuidade da presença de Portugal na NATO deveria merecer uma análise por parte da "coordenadora". Esse militar, pertencente a esse órgão, tinha anunciado a sua intenção de suscitar a questão numa próxima reunião. Ambos os meus interlocutores estavam preocupados com o impacto que tal iniciativa pudesse vir a ter. Perguntaram a minha opinião e eu dei-lhes toda a razão, elencando um conjunto de motivos pelos quais considerava, não apenas inoportuna mas mesmo altamente perigosa a abertura de uma discussão do tema, à luz dos nossos interesses estratégicos e da imagem que a Revolução portuguesa procurava projetar no exterior.

"Tu é que podias falar com ele", disse-me a certo passo o José Manuel Costa Neves. "Explica-lhe isso mesmo que agora nos disseste. Pode ser que o convenças!" 

Fiquei um pouco perplexo. De certo modo, era um atrevimento um aspirante a oficial miliciano, como eu era à época, ir arguir junto de um oficial superior, com fortes responsabilidades político-militares, as implicações geoestratégicas que entendia que uma questão daquela delicadeza poderia ter. Mas voluntariei-me para a tarefa.

O ambiente no seio do MFA era então muito diverso do que se pode imaginar. Eu, como muitos outros milicianos que por ali andavam, tinha grande à-vontade e tratava por tu grande parte dessas figuras cimeiras da Revolução que, acredite-se ou não, alimentavam um ambiente de grande simplicidade e camaradagem, de uma imensa informalidade, bem distante da rigidez dos quartéis de onde vínhamos. E assim se planeou uma conversa entre mim e esse oficial superior, logo para o dia seguinte. Recordo-me que ela teve lugar no gabinete que pertencia ao coronel Franco Charais, membro da "comissão coordenadora" do Exército, que estava ausente de Lisboa nesse dia. Recordo-me bem do local porque eu próprio viria a ocupar esse mesmo belo gabinete, revestido a azulejos, como subdiretor-geral das Comunidades Europeias, precisamente 20 anos mais tarde.

Já não me lembro bem de pormenores da conversa, mas ela terá espelhado o contraste entre um miliciano moderado e realista (eu que, então, estava longe de ser uma coisa ou outra, no plano político-militar...), que desenvolveu uma teoria favorável a equilíbrios geopolíticos que considerava importante preservar, perante um oficial que era membro da um órgão de grande influência e visibilidade política, que defendia uma postura de insensato radicalismo, próxima daquelas que só alguma extrema-esquerda proclamava pelas ruas e paredes do país. Uma das "peças" do meu argumentário terá sido decisiva para frear o fulgor extremado do militar: ele iria ficar praticamente isolado no seio da "coordenadora" e, a partir dessa sua tomada de posição, deixaria de ter a menor audição futura. Para além do facto dele ir atuar "sem rede", porque a sondagem que tínhamos feito, no âmbito da "coordenadora" do MFA na Força Aérea, era amplamente desfavorável à sua posição. Para o que agora interessa, o nosso homem nunca chegou a suscitar a questão e eu tinha feito o que me tinha sido solicitado, que, neste caso, coincidia precisamente com o que eu pensava.

Uma nota final. Esse militar, depois dessa deriva radical que ainda duraria alguns meses, viria a reverter por completo a sua atitude política e, após 1975, surgiria ligado, de uma forma quase limite, a algumas ações muito "complicadas", tendo desaparecido totalmente de cena.

O 25 de abril e a política externa


Texto que serviu de base à intervenção que ontem fiz, durante o painel "Portugal no Mundo", durante o Congresso "A Revolução de Abril", promovida pelo Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa:

A tentação de afirmar que tudo mudou com o 25 de abril é muito forte no que toca à política externa. E isso tem uma explicação fácil: é que, contrariamente à lenta maturação de outras mudanças que ocorreram na sequência da Revolução, no plano internacional, quase de um dia para o outro, a imagem de Portugal sofreu uma forte alteração, passámos a ser olhados de uma forma diametralmente oposta à véspera. Da ditadura obsoleta, politicamente isolada, sustentáculo de uma presença colonial perdida historicamente no tempo, emergiu uma súbita esperança democrática e de libertação, feita de alegria florida nas ruas. 

Até o surgimento das forças armadas a titular uma revolta democrática, apenas meio ano depois do Chile, constituiu uma novidade simpática e promissora.Vieram depois algumas dúvidas, o Ocidente tremeu com o curso político em Lisboa mas, para o bem e para o mal, visto das várias perspetivas, Portugal nunca mais foi igual sob olhar do mundo.

Como a Ucrânia nos prova nos dias de hoje, tal como Cuba o atestou nas últimas décadas, um país não pode fugir à sua geografia e tem de acomodar as suas ambições ao contexto em que está inserido. Assim aconteceu com o Portugal depois de abril. 

Eu costumo afirmar que o facto de não ter surgido, na convulsão política pós-Revolução, uma séria proposta no sentido de Portugal abandonar a NATO representa como que a consciência subliminar de que o país tinha condicionantes geopolíticas a que não podia escapar. Se a leitura que Moscovo fazia deste equilíbrio marcou ou não a atitude do PCP, com Angola à mistura nesse contexto, essa é uma questão que fica para os historiadores. Os factos, porém, são incontroversos: aquela que era a principal âncora geopolítica do país desde o pós-guerra não foi posta seriamente em causa, não obstante alguns apelos radicais surgidos aqui ou ali. 

Quero com isto dizer que a nossa geografia prevaleceu. Mas essa geografia também mudou. Umas vezes mudou ela própria e nós mudámos com ela, outras vezes mudou porque nós próprios fomos sujeitos dessa mudança.

A nossa geografia mudou no plano físico, com o fim das fronteiras e com os acessos rodoviários e aéreos a tornarem-nos menos periféricos. O choque de modernidade que isso teve num país até então isolado, fora das rotas de vizinhança do centro do continente, foi uma aventura silenciosa de que já ninguém tem verdadeira consciência.

A nossa geografia mudou fortemente no plano político, com a integração europeia a determinar um quadro de responsabilidades que nos alargou os horizontes e nos tornou parceiros de um projeto mais vasto, eticamente sustentado e com uma coerência global que incorporámos na nossa própria matriz de afirmação externa.

Mas mudou também na nossa atitude no quadro multilateral, "ajudados" pela aventura voluntarista por Timor, que determinou uma postura mais ativa sobre direitos humanos. E, noutra dimensão, criou-nos uma dinâmica própria em matéria de cooperação para o desenvolvimento. Por tudo isto chegámos, por três vezes e não por acaso, ao Conselho de Segurança da ONU, organizámos duas cimeiras Europa-África, temos um Alto Comissário para os Refugiados, tivémos a liderança da Aliança para as Civilizações, criámos as condições para que um português chegasse à chefia da Comissão Europeia.

E, também no campo multilateral, soubémos exportar segurança, com intervençoes de grande mérito tituladas pelas nossas Forças Armadas envolvidas em operações de paz. Essa nossa nova "geografia de segurança", que vai para além da NATO, se apoia na Europa e tem decorrências na luta anti-terrorista, é um terreno da maior importância, um teste ao nosso sentido de responsabilidade internacional

A nossa geografia mudou também no plano humano, ao ter sido possível, a partir do 25 de abril, estabelecer um modelo de enquadramento democrático da nossa diáspora, garantindo-lhe um papel na vida política interna e procurando tomá-la um ator da nossa dimensão externa. E, mais tarde, de país emissor de fluxos migratórios, tornámo-nos recetores de imigrantes, convertemo-nos num "melting-pot" onde a Europa de leste veio encontrar as muitas Áfricas, a que se somou o Brasil mais a China. Embora alguns não saibam, isto também é política externa e devo confessar que tenho um imenso orgulho em que o Portugal de hoje seja considerado positivamente lá fora, pelo modo como acolhe os mundos que estão do outro lado desta casa, do largo de S. Domingos ao Martim Moniz e à Mouraria.

A nossa geografia também mudou muito no tocante ao nosso relacionamento bilateral externo. Mudou com a normalidade com a vizinhança imediata, de Espanha a Marrocos, com a descoberta de uma vocação mediterrânica que levou à fixação de um interessante laço com um mundo islâmico que vê em nós um interlocutor atento.

Mas essa nova geografia, que também pode ser considerada 'de afetos" conduziu, desde logo, ao estabelecimento de um quadro institucional prioritário com Estados que falam a nossa língua e com os quais tentamos reconduzir a uma cooperação aquilo que foi uma longa e traumática relação colonial. Mas, igualmente, reforçámos o nosso relacionamento com Estados e regiões com os quais vivíamos a uma distância criada pela ditadura e pelo colonialismo, do centro e leste europeus à África e bastante mais além. Foi essa nova postura que nos conduziu à normalidade do relacionamento com a China, mas também com a Indonésia e com a Índia.

Mas, como disse no início, nunca saímos do Atlântico, embora apenas na retórica tenhamos uma política nacional para esse espaço. Talvez por isso, porque o Atlântico é uma constante muito forte que nos sobredetermina, foi por aí que surgiram alguns patéticos seguidismos, que devemos tomar à conta de meros episódios sem grande significado. Mas este é um quadro que mantemos como estruturante para a preservação dos nossos interesses estratégicos. E tudo indica - mas assumo que esta é uma perspetiva pessoal - que, sem abandonar o investimento fundamental no projeto europeu em que nos empenhámos, sem descurar a CPLP e outras dimensões que derivam de laços muito particulares, como é o caso dos que nos prendem à América Latina, temos todo o interesse, como país, em saber recolocar-nos, com sentido das proporções, no centro da nova relação transatlântica que se desenha.

Termino com uma banalidade, reafirmando que, graças ao 25 de abril, somos hoje um país "orgulhosamente acompanhado". Por isso, quando um dia voltarmos a ter uma política externa, depois do interlúdio de silêncio internacional que estamos a atravessar, Portugal pode e deve, com realismo e medida ambição, continuar a aproveitar as portas que, também para o mundo, abril nos abriu.

segunda-feira, abril 21, 2014

Papoilas saltitantes

São a maioria. Foram, em tempos antigos, o país em chuteiras. De encarnado, não de vermelho, levaram o nome de Portugal pelos relvados europeus. Eram, à época, os nossos rivais. Depois, as artes e a fruta levaram o poderio para o Norte. Aí se firmou a sua nova rivalidade. De tempos a tempos, espreitam a glória num país que tem sido demasiado azul. Ela ressurgiu ontem. Acreditem ou não, fico contente por ver a maioria do país bem disposta. Mesmo para quem fica em segundo lugar. Por ora.

Em tempo: acho que esta vitória pode ser dedicada a José Medeiros Ferreira, recordando o último post que deixou no seu blogue 

domingo, abril 20, 2014

E se... ?

Alfredo Cunha

E se o "E depois do adeus", o Maia, o Carmo, os tanques, a Grândola, o Otelo, a Junta, o Spínola, o cravo, a Pide, o Zeca, a censura, o MFA, Caxias, o "povo unido", Peniche, a guerra, o Cunhal, a tv a preto-e-branco e toda essa parafernália de sinais, de siglas repisadas, pingantes da nossa endémica saudade geracional, nada disserem a pessoas que passam "a salto" de Ryanair as fronteiras de Schengen, aos vidrados nos iPad, balanceantes dos iPod, logados nos iPhone, comentando as saídas para o novo desemprego, que vão para hostels em lugar de irem para Champigny? 

Será que temos o direito de lhes impor a nossa memória, sob o pretexto de que temos de os educar que "fascismo nunca mais"? Que obrigação têm eles de ouvir o que diz o Vasco Lourenço, de sofrer o Adriano, de aturar o Alegre, de adormecer com o Cília, de ouvir a história do soldado Luís no Ralis, da "frigideira" do Tarrafal, das patifarias do Botas de Santa Comba ou dos arroubos vermelhuscos do "companheiro Vasco", dos Manuel Tiago e das tipografias da clandestinidade, do Copcon ou de Tancos, dos Comandos ou do MDLP? C'os diabos, o 25 de abril não se "fez" para dar a cada um o direito de ligar um televisor ou uma rádio sem se "arriscar" a ter de escutar pela enésima vez o Furtado a ler um comunicado do "posto de comando", a Luísa Bastos a gritar o "Avante Camarada", uma enchurrada da poética neorealista com a rima cheia de "povo", a saltitante "Gaivota", o hino marcial da Intersindical, sempre a conclamar as "massas" p'ró que der e vier? E se "essa gente" (para utilizar uma elegante fórmula do atual primeiro-ministro) decidir estar-se nas tintas para as memórias da Constituinte, para o MRPP ou para o MES, para o bispo do Porto ou para o cónego Melo, para as bombas da reação (que não "passava" mas passou) ou para as do PRP? E se o Norton for hoje para eles um anti-virus informático e não um general colonialista e democrata, se lhes der para sairem para uma "bejeca" quando soarem os acordes chatotes do Moniz ou do Letria, quando lhes ameaçarem com o Tordo a cantar o imaginário cheio de verduras e hortaliças do Ary.

O que esta geração talvez gostasse que o tal "25 de abril" lhes tivesse dado, mais do que Chaimites e "reforma agrária", berros, bandeiras e paredes com cartazes, era bem-estar e qualidade de vida, desenvolvimento, emprego, educação, cuidados de saúde eficazes e, quatro décadas depois dessa data que os mais velhos comemoram quase com raiva (salvo o "tio Alfredo", que veio de Angola e lhe salta a placa quando se fala de um tal Rosa Coutinho), era uma classe política impoluta, competente, responsável e que soubesse gerir e prestigiar o país, tornando-os orgulhosos dele. O resto...

Às vezes, pergunto-me se esta nossa compulsão comemorativa anual, feita de cabelos brancos e cravos vermelhos, dos que estiveram na Fonte Luminosa ou dos que estiveram nas barricadas do 28 de setembro, não será mais do que a desesperada tentativa de nos agarrarmos ao tempo, como os republicanos que estiveram na Rotunda e não se calaram com essa história até ao dia em que o chanfalho do Gomes da Costa os pôs com triste dono, também por quarenta anos.

Eu, por mim, já optei. Apesar de toda essa "maçadoria" (volto citar Passos Coelho), viva o 25 de abril, sempre!

Notre Europe

No próximo dia 30 de abril, moderarei em Paris um debate entre o antigo presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, e a deputada europeia portuguesa, Elisa Ferreira, sob o lema "Crise de la zone euro: les souverainités nationales è l'épreuve", inserida na Conferência internacional "L'Union Européenne: quels pouvoirs, quelle démocratie". 

Trata-se de uma iniciativa conjunta da Fondation Notre Europe e da Fundação Calouste Gulbenkian. A conferência contará, nomeadamente, com intervenções de Artur Santos Silva, do novo secretário de Estado dos Assuntos Europeus francês, Harlem Désir, do antigo deputado europeu Jean-Louis Bourlanges e do ministro adjunto português Miguel Poiares Maduro. Jacques Delors fará o discurso de encerramento da conferência.

Mário Quartin Graça (1940-2014)

Morreu Mário Quartin Graça. Acabo de o saber pela nota que o Guilherme Oliveira Martins deixou no blogue do Centro Nacional de Cultura.

Conheciamo-nos mal, mas apreciávamo-nos. Vivemos em circuitos diferentes, mas tínhamos amigos comuns que nos fizeram aproximar, em especial nos últimos anos, em que trocámos diversa correspondência, onde emergiram interesses comuns, experiências partilhadas em tempos diversos. Em comentários neste blogue, deixou notas sempre agradáveis, atentas e interessantes.

Mário Quartin Graça era um homem do mundo da cultura, com passagens de muito mérito pelo espaço diplomático. Ler as suas memórias, "Páginas Amarelas", um livro que me enviou com amável dedicatória e a cujo lançamento com pena fui forçado a faltar, ajuda-nos a perceber melhor um homem que gostava muito da vida, das coisas e das pessoas, que teve o grande mérito de não se ter apenas passeado, indiferente ou lúdico, pelos lugares por onde andou e trabalhou. Estudou e interpretou, com argúcia não isenta da graça que lhe estava no nome, esses mundos que frequentou e que tão bem retratou. Comungávamos um interesse agudo pelo Brasil, eu invejava-lhe a experiência espanhola que profissionalmente me ficou a faltar.

Tenho muita pena em não ter tido o privilégio de conhecer melhor Mário Quartin Graça. Na pessoa do seu filho Luís, diplomata que há meses cruzei em Ancara e com quem falei do seu pai, deixo o meu sentido respeito a toda a sua família.

sábado, abril 19, 2014

Bouteflika

Em 1989, fui numa visita de trabalho à Argélia. Durante um jantar num hotel da capital, fiquei sentado ao lado de um diplomata de um importante país europeu, que era tido por excelente conhecedor da vida política local. Na conversa, veio a certa altura à baila o nome de Abdelaziz Bouteflika. Fora uma figura proeminente da política do país, destacara-se como ministro dos Negócios Estrangeiros e, de repente, saíra de cena. Eu seguira essa carreira e tinha alguma curiosidade sobre a sua situação, à época.

O meu interlocutor explicou-me que Bouteflika, depois do exílio a que fora forçado, regressara recentemente ao país, tinha perdido prestígio e era tido como uma "carta jogada", como uma figura do passado. Ficou-me na memória uma sua frase algo depreciativa: "coitado, anda por aí, desejoso de ser convidado pelas embaixadas". Fiquei impressionado, confesso.

Voltei à Argélia por duas vezes, nos anos 90. Em ambas as ocasiões, Bouteflika continuava numa certa obscuridade política. A avaliação do meu interlocutor de 1988 parecia confirmar-se.

Em 1999, Bouteflika foi eleito presidente da República. Ocupa o cargo há 15 e acaba de ser reeleito ontem por mais cinco anos. 

A análise política recomenda sempre grande prudência e moderação nos juízos. Em especial nos definitivos.

Assalto à embaixada

Não é vulgar, mas de quando em vez acontecem assaltos a representações diplomáticas. Raramente os crimes têm uma motivação política, sendo as mais das vezes meros roubos, idênticos aos que podem ocorrer em qualquer escritório.

Ontem, foi anunciado que a nossa embaixada em Tripoli, na Líbia, foi assaltada, tendo um vigilante sido ferido. A situação de forte instabilidade que afeta aquele país potencia este tipo de incidentes, revelando as dificuldades em que se processa o trabalho de alguns dos diplomatas que Portugal tem espalhados por esse mundo. Deixo aqui um abraço de "bon courage" para a Isabel Pedrosa, que chefia a nossa missão em Tripoli.

Um dia, em 1981, na Noruega, fui confrontado com uma situação insólita. Num sábado à tarde, passei pela chancelaria para "ver a cifra". Essa era uma prática corrente, nesse tempo: ir durante o fim de semana à zona das comunicações da embaixada, para verificar se acaso tinha chegado qualquer comunicação urgente de Lisboa. Hoje em dia, com o mundo dos emails, essa prática caiu em forte desuso.

A nossa chancelaria em Oslo é numa moradia (ver imagem), partilhada com dois outros escritórios. Subi a escada interior que levava ao primeiro andar e abri a porta de acesso à embaixada. Ainda não tinha dado um passo dentro do hall de entrada quando ouvi o que me pareceu ser um ruído de vozes, num tom muito baixo. Perguntei, em português, quem estava no escritório, não fosse dar-se o caso de algum funcionário ter decidido passar por lá nesse dia. Era uma hipótese pouco provável, mas era possível. Não obtive qualquer resposta, mas um novo "restolho" deixou-me a certeza de que andava por lá gente. Tive o bom senso de não me aventurar, porque não somos pagos para heroicidades patetas. Fechei a porta, desci as escadas e pedi a uma pessoa que vinha comigo no carro para ir avisar o embaixador, que vivia perto. Com outra pessoa, "montei guarda" à porta da moradia. 

Minutos depois, chamámos a polícia, que chegou rapidamente. Teve o cuidado em verificar bem a minha identidade, obtendo autorização para intervir, porque não queria poder ser responsabilizada por entrar numa missão diplomática estrangeira, à revelia da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. A operação de entrada teve contornos "de filme". Minutos depois, constatou-se que os assaltantes - porque se tratava de um roubo - haviam saltado pelas traseiras para a neve, fugindo através de quintais vizinhos. Provavelmente, haviam-no feito ainda antes da chegada da polícia. Tinham assaltado também um dos outros escritórios. No nosso caso, o roubo foi ínfimo, talvez devido ao facto de eu os ter interrompido.

Muita graça teve a atitude do meu embaixador. Homem dado a teorias conspirativas, que via agentes secretos por todo o lado, alimentou por dias as mais bizarras teorias sobre as motivações do assalto, chegando a sugerir a implicação de funcionários da embaixada, bem como de familiares do pessoal. A "aventura" não teria tido um mínimo de piada se não fosse essa sua especulação obsessiva e quase delirante. Debalde me esforcei por demonstrar a escassez de interesse que alguém teria de roubar os nossos "segredos". Pois sim! Quem vive vidrado em temas de serviços secretos nunca está disponível para aceitar que as coisas, na maioria das vezes, são muito simples.

O bicarbonato

Era a manhã de uma quinta-feira de Páscoa. Lembro-me bem porque, a partir da hora do almoço, o país público fechava: lojas, rádios e até os cafés passavam a regime atenuado, nesse Portugal do final dos anos 50. Eu devia ter aí uns 11 ou 12 anos.

Por esse tempo, perto de minha casa, em Vila Real, havia uma pequena tabacaria, dirigida por uma figura com aquela "gravidade" que costuma atingir alguns homens de meia idade, sempre de fácies fechado, como que para serem levados a sério, cara de "poucos amigos". Embora criança, eu era, curiosamente, um desses "amigos". Passava por lá muito tempo, à conversa, sei lá sobre quê. Não obstante as mais de três décadas de idade que nos separavam, ele aturava-me. A boa letra que então tinha convertia-me também num seu benévolo "ajudante": escrevia-lhe parte da correspondência para as distribuidoras e para os serviços de expedição dos jornais, regulando encomendas e sobras. Em implícita troca de vantagens, eu lia lá pela tabacaria revistas que não tinha dinheiro para adquirir.

"Isilda, traz o bicarbonato!", ouviu-se, nesse dia, do lado de fora da porta. Era o dono da tabacaria a chegar, montado na sua Zundapp, fumegante e ruidosa, com uma caixa de madeira na parte de trás, de onde emergiam os rolos de jornais, que tinha ido buscar ao comboio.

(Eu deliciava-me com a abertura desses rolos, sempre embrulhados em jornais antigos. Por ali vinha a imprensa desportiva, mas também os jornais diários, além do "O Século Ilustrado" e a "Flama". Para mim, à época, os interesses eram outros. Eram, essencialmente, as revistas brasileiras de histórias "aos quadradinhos", desde os "cowboys" às publicações da Disney. Do que era editado em Portugal, a minha prioridade ia para o "Cavaleiro Andante", o "Mundo de Aventuras", o "Condor Popular" e coisas assim. O "Tintim", antecedido do "Foguetão", ainda não tinha surgido e o meu gosto pela "Crónica Desportiva" e pela "Plateia" ainda estava por surgir.)

O nosso homem entrou na loja, com o boné de felpo de que nunca se separava, os rolos de jornais sob o braço. Pousou-os ao longo do balcão que enchia toda a largura da loja. A Isilda, mulher de carrapito e abundante buço, com ar mais velho do que ele, atenta e veneradora, já vinha com o copo borbulhante do bicarbonato, que iria atenuar as azias estomacais do marido, cujo excesso de álcool era por demais evidente. Coisa habitual, diga-se, sempre potenciando o seu mau génio, de que a mulher e os filhos eram um alvo regular. O homem bebeu o copo de líquido esbranquiçado de um trago.

Tempo de Páscoa, a Isilda ousou revelar: "Encomendei um folar, ali na padaria". O que ela foi dizer! Foi o pretexto de que o marido estava à espera para explodir o seu mal-estar. Um bofardo desancou a cara da Isilda, que andou uns metros para o lado, recuperando-se da dor e da vergonha pelo meu embaraçado testemunho da cena. Por entre um chorrilho de insultos à mulher, o homem mal dera por mim. Discretamente, esgueirei-me para a rua, para não assistir às cenas dos próximos capítulos. Durante uns dias, não voltei a passar por lá. Depois, o apelo das revistas foi mais forte e, uma tarde, regressei. Fui acolhido com um sorriso triste da Isilda, meio cúmplice.

Era assim, o Portugal de então. Terá mudado muito? Nunca mais esqueci esse episódio de Páscoa.

sexta-feira, abril 18, 2014

Desilusão


Nunca na vida adquiri um bilhete de lotaria, só na adolescência me lembro de ter jogado no Totobola, há muitos anos entrei uma vez ou outra no Totoloto em grupos e por forte insistência de amigos, não compro raspadinhas e não faço a menor ideia de como se aposta no Euromilhões. Não frequento casinos nem aposto rigorosamente em nada que envolva dinheiro. Não jogo na bolsa, não sou proprietário de nenhuma ação nem de uma única obrigação. O dinheiro que tenho e ganho devo-o apenas meu trabalho, não à sorte. 

Mas ontem senti um "frisson" de alguma desilusão quando vi que nenhuma das minhas faturas fora premiada com um automóvel. Porquê? Porque esperava (esperava?) que o que ainda nos sobra de Estado, depois da ação desta "comissão liquidatária" que o dirige, tivesse a dignidade, através desse sorteio, de me devolver um pouco do que me anda a espoliar nos últimos anos. Apenas por isso.

García Márquez

Há quase década e meia, circulou pela internet uma carta atribuída a Gabriel García Márquez, que era como que a despedida da vida de um homem em estado terminal. O texto era muito bem escrito, embora talvez demasiado "piegas" para ser do autor do "Cem anos de solidão", e teve um imenso sucesso no circuito (infernal) dos reencaminhamentos. No que me toca, recebi-o de vários amigos e conhecidos. Já não "podia" com a carta...

Não tardou muito a constatar-se que, afinal, o texto não era de García Márquez, era apenas uma genial invenção de alguém suficientemente dotado para poder ter uma escrita com uma qualidade suficiente para poder ser confundida com a do romancista colombiano. O próprio García Márquez veio a terreiro desmentir a autoria da carta - a qual, nem por isso, deixou de circular, de quando em vez. Só faltou a García Márquez dizer, como Mark Twain, que "as notícias sobre a minba morte são manifestamente exageradas".

Há pouco, vi nas notícias que García Márquez morreu. Alguma vez a história havia de coincidir com o boato.

A Revolução de Abril

Na tarde de 21 de abril, vou intervir no Congresso "A Revolução de Abril", organizado pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, a ter lugar no Teatro Nacional D. Maria II.

Faço parte de um painel sob o tema "Portugal no Mundo", moderado por Teresa de Sousa e integrado por Jorge Sampaio, José Fortes Bouzan, Pilar del Rio e Manuela Aguiar. José Madeiros Ferreira estava previsto para integrar este debate.

Para quem possa estar interessado, aqui fica o programa completo do Congresso.

quarta-feira, abril 16, 2014

Salazar e a emigração

Há cerca de ano e meio, em Paris, chegou ao meu conhecimento que ia ser publicada em francês uma tese universitária que refletia sobre atitude do salazarismo face à emigração. Contactei os editores e propus que o lançamento do livro fosse feito na embaixada de Portugal em Paris. Assim viria a acontecer.

Hoje, tive um grande gosto em estar presente na Fundação Mário Soares no lançamento em Portugal do livro "A ditadura de Salazar e a emigração", da autoria de Victor Pereira, tradução da obra original.

As intervenções de Irene Pimentel, que apresentou a obra, e do autor deram-nos conta de vários aspetos que o trabalho aborda, desde as ações de intimidação levadas a cabo pela polícia política portuguesa na comunidade emigrada à referência à importante questão, ainda muito pouco estudada, dos desertores e refratários da guerra colonial - uma temática que ainda vive abafada por um ambiente de incompreensível "incomodidade", que urge romper.

Uma nota final. O autor fez uma análise às intervenções públicas de Salazar, procurando nelas encontrar referências ao tema da emigração. E fez a impressionante constatação de que o ditador, perante uma realidade incontornável da vida portuguesa de então, manteve sempre um total mas significativo silêncio.

terça-feira, abril 15, 2014

Estratégia

 
Parece evidente que Portugal vive hoje sem uma estratégia nacional clara, contentando-se a vogar ao sabor da conjuntura e de agendas externas que não domina. Por essa razão, o país limita-se a reagir na base de um casuísmo que, frequentemente, torna inglórios esforços sectoriais, por mais meritórios que estes sejam. A sensação que Portugal projeta, no plano externo, é a de um país que está de tal forma condicionado pela urgência financeira que colocou todas as suas restantes opções numa espécie de "pousio", à espera de melhores dias. Um país assim é uma presa fácil para o oportunismo externo.

Com a ausência de um pensamento orientador para o país e a aparente falta de vontade de o promover, a crispação e a clivagem criadas face aos sectores políticos alternativos, bem como às forças económicas e sociais, veio agravar esta imagem de desorientação, de mera "navegação à vista", que é a forma mais lamentável de se exercer a responsabilidade de Estado. 

O que se passou com a "discussão" dos fundos do novo QREN foi bem revelador: em escassas semanas, pretendeu-se substituir, através de um modelo de "pareceres" e "consultas", um trabalho que deveria ter partido do cruzamento das novas disponibilidades com uma estratégia de Estado, previamente consensualizada, projetada no médio e longo prazos do novo quadro financeiro comunitário, que será o essencial do investimento público disponível para os próximos anos. 

A responsabilidade essencial desta falta de orientação pertence, como é óbvio, ao governo. Mas não só. Desde logo, parece insólito que o presidente da República, em face de uma grave situação de crise, não tivesse tido, durante os últimos anos, a iniciativa de promover uma reflexão nacional sobre as grandes opções para o futuro do país, para ela convocando as forças políticas, económicas e sociais. Nada disto tem a ver com o patético Conselho de Estado para discutir o "pós-troika" ou com a bizarra semana de conversas entre a maioria e o PS, numa espécie de recado de "entendam-se!" 

Num tempo tão turbulento, marcado pelo imediatismo da conjuntura, uma realização deste género - eventualmente apoiada no "conceito estratégico nacional" que uma comissão preparou para o governo em 2012 - poderia ter sido um valioso contributo para tentar consensualizar uma orientação para o país, válida para além dos ciclos políticos. E não se diga que o chefe do Estado não pode "meter-se" neste tipo de iniciativas: pelo contrário, a sua legitimidade política própria exige que exerça o seu papel para além da "espuma dos dias". Caso contrário, ficará condenado a que seja questionada a necessidade do presidente ser eleito pelo voto popular, bastando-lhe ser uma simples emanação da maioria parlamentar.

Termino com um reflexo externo desta evidente falta de estratégia. Na Europa, "ouve-se" há três anos o silêncio de Portugal, nota-se o olhar oficial angustiado para Berlim, a preocupação em furtar-se a qualquer política de alianças que possa ser menos bem vista pelos detentores da "safety net" que o governo acredita que os alemães nos estenderão, se alguma coisa "correr mal". No mundo, retraímos o dispositivo e a ação diplomática e hoje apenas "vendemos o país", limitados a uma imagem de "Oliveira da Figueira". É pouco e é triste. Portugal merecia melhor.

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, abril 14, 2014

Gdansk

Olhando para a coleção de selos que, durante anos, me ajudou a desenhar a geografia política do mundo em que ia viver, o meu pai falava-me de Dantzig, a cidade mártir, do seu "corredor", cuja ocupação pelos alemães lançou a 2ª Guerra mundial. Dantzig tinha selos próprios, como "cidade livre" que chegou a ser. Ainda possuo alguns.

Decorreram uns anos. Dantzig já era designada pelo nome polaco de Gdansk. Vivia eu na Noruega e, em 1980, a cidade passou a ser o lugar onde nasceu o Solidarnosć, onde surgiu Lech Walesa à frente de uma revolta que iria abalar, ainda mais, os alicerces do muro que estava prestes a cair em Berlim. 

Quase duas décadas depois, acompanhei Jorge Sampaio numa viagem de Estado à Polónia. No roteiro figurava, como não podia deixar de ser, uma deslocação a Gdansk, a capital da Pomerânia polaca, onde nasceram Schopenhauer e Gunter Grass. Confesso que cuidei mesmo em que passássemos pelo estaleiro "Lenin", onde a revolta tivera o seu início.

(Devo dizer que então estranhei - e disse-o - que Lech Walesa não tivesse sido associado a nenhuma das cerimónias oficiais, como antigo presidente do país. A minha estranheza foi, contudo, recebida com uma reação por parte dos nossos anfitriões: Walesa já não era uma figura muito popular, a imagem "heróica" que dele sobrevive no imaginário oficial internacional não parece ser acompanhada internamente, um pouco ao jeito da de Gorbachev, na Rússia de hoje. "Vocês convidam o Otelo para as cerimónias oficiais?", perguntou-me ironicamente um amigo polaco com alguma memória lusitana.)

Estou desde ontem por Gdansk. Já ninguém fala de Walesa. Só me falam da Ucrânia, aqui já ao lado. A uma escassa centena de quilómetros da cidade está o enclave russo de Kalininegrado. A Polónia é hoje um país a que a sua trágica geografia induz preocupações bem concretas. Mesmo que eu próprio possa discordar de algumas avaliações que por aqui são feitas (ouvi-as, idênticas, na passada semana, em Varsóvia), em torno de certas opções geoestratégicas do Ocidente, tenho sempre um profundo respeito pelo sentimento de quem sofreu "muita História".

domingo, abril 13, 2014

MRPP

Existe uma "fórmula" quase imbatível para avaliar o destino dos antigos militantes do MRPP: os que ingressaram no partido antes do 25 de abril, estão em geral à esquerda; os que aderiram post-25 de abril estão à direita. 

Façam o teste com os vossos amigos e conhecidos.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...