Ontem, surgiu na televisão o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Roland Dumas, a propósito de um livro de memórias que acaba de lançar.
Nesse instante, veio-me à ideia um episódio que teve lugar nos nossos primeiros tempos nas instituições europeias, numa reunião que decorria sob a sua responsabilidade, durante uma presidência semestral francesa.
O debate prolongara-se já muito pela noite dentro, nessas horas que a Europa guarda para as grandes decisões. A temática eram concessões em matéria de produtos agrícolas, incluídas num acordo com países terceiros, menos desenvolvidos. Tratava-se de matéria de grande sensibilidade, porque o peso do lóbi agrícola em vários Estados condiciona muito a liberdade dos governos para poderem fazer gestos de sentido político. Ao mesmo tempo, porém, esse era, como sempre é, o setor onde a abertura de facilidades por parte da Europa se revela mais interessante para esses países. O que estava em causa, naquele caso particular, era aquilo que em Portugal se designa por "produtos hortícolas".
A Espanha era, do lado europeu, o país com maiores dificuldades para aceitar o acordo, nos termos em que este era proposto pela Comissão Europeia. Com eleições dois dias imediatamente após essa reunião, o governo de Madrid entendia que permitir aberturas no seu mercado com impacto na economia agrícola do país poderia ser aproveitado pela oposição para acusar de fragilidade a sua nóvel política europeia. O representante espanhol na reunião, o embaixador Carlos Westendorp, estava "de mão atadas". Por um lado, toda a então CEE já tinha dado luz verde ao pacote de concessões, o que se traduzia numa grande pressão sobre a sua delegação. Esta, por seu turno, embora revelasse uma vontade para se juntar ao consenso, sentia que fazê-lo naquele momento poderia configurar um suicídio político.
O debate prolongara-se já muito pela noite dentro, nessas horas que a Europa guarda para as grandes decisões. A temática eram concessões em matéria de produtos agrícolas, incluídas num acordo com países terceiros, menos desenvolvidos. Tratava-se de matéria de grande sensibilidade, porque o peso do lóbi agrícola em vários Estados condiciona muito a liberdade dos governos para poderem fazer gestos de sentido político. Ao mesmo tempo, porém, esse era, como sempre é, o setor onde a abertura de facilidades por parte da Europa se revela mais interessante para esses países. O que estava em causa, naquele caso particular, era aquilo que em Portugal se designa por "produtos hortícolas".
A Espanha era, do lado europeu, o país com maiores dificuldades para aceitar o acordo, nos termos em que este era proposto pela Comissão Europeia. Com eleições dois dias imediatamente após essa reunião, o governo de Madrid entendia que permitir aberturas no seu mercado com impacto na economia agrícola do país poderia ser aproveitado pela oposição para acusar de fragilidade a sua nóvel política europeia. O representante espanhol na reunião, o embaixador Carlos Westendorp, estava "de mão atadas". Por um lado, toda a então CEE já tinha dado luz verde ao pacote de concessões, o que se traduzia numa grande pressão sobre a sua delegação. Esta, por seu turno, embora revelasse uma vontade para se juntar ao consenso, sentia que fazê-lo naquele momento poderia configurar um suicídio político.
Roland Dumas utilizou toda a sua habilidade de advogado para colocar os espanhóis face à responsabilidade política de serem eles a boicotar a decisão europeia, tanto mais que esta era aguardada com ansiedade pelos países contrapartes. Destacou que esta singularização negativa ia refletir-se, com toda a evidência, no modo como Madrid passaria a ser visto pelos Estados potenciais beneficiários das concessões.
Lembro-me que Portugal acompanhou a Espanha tão longe quanto foi possível. Mas, a certo ponto, o facto da Comissão Europeia ter acedido a colocar de fora da lista de concessões alguns produtos que, para nós, eram os mais sensíveis, bem como a importância política do acordo para o nosso quadro de relações externas, deixou-nos sem argumentos para continuarmos a nos opor ao entendimento.
A Espanha estava, assim, completamente isolada. Roland Dumas apelou a uma derradeira flexibilidade política dos espanhóis, dando a palavra a Westendorp. Este ensaiou um discurso dramático, perante o silêncio pesado e tenso que envolvia toda a sala. As 12 delegações nacionais (viviam-se então os tempos da Europa "a doze"), a Comissão Europeia e o secretariado-geral do Conselho bebiam as palavras do representante de Madrid, esperando uma cedência no último minuto, o que permitiria a todos regressarem ao descanso nos seus hotéis.
A Espanha estava, assim, completamente isolada. Roland Dumas apelou a uma derradeira flexibilidade política dos espanhóis, dando a palavra a Westendorp. Este ensaiou um discurso dramático, perante o silêncio pesado e tenso que envolvia toda a sala. As 12 delegações nacionais (viviam-se então os tempos da Europa "a doze"), a Comissão Europeia e o secretariado-geral do Conselho bebiam as palavras do representante de Madrid, esperando uma cedência no último minuto, o que permitiria a todos regressarem ao descanso nos seus hotéis.
Como mandam as regras dos Conselhos de Ministros europeus, Westendorp falou em espanhol, com a delegação portuguesa a não necessitar, naturalmente, de tradução. Não mostrou qualquer flexibilidade. Pelo contrário, fez uma chamada à compreensão de todos pela difícil posição em que se encontrava.
A certo passo desse discurso, disse: "Ustedes deben entender que en España la cuestión de las hortalizas es una cuestión de Estado". A pausa que Westendorp fez suceder a esta frase, aguardando o impacto da interpretação simultânea que ia chegar aos ouvidos das restantes delegações, foi subitamente interrompida por risos surdos, oriundos da nossa delegação, assim como da meia dúzia de técnicos portugueses que faziam parte das delegações da Comissão e do secretariado.
Para nós, portugueses, ouvir a expressão "hortalizas" (que é palavra espanhola para designar "produtos hortícolas") ligada ao conceito de "questão de Estado" havia desencadeado uma imparável e embaraçante epidemia de risadas, que se ia agravando à medida que olhávamos uns para os outros. Essa atitude, que soou pela sala como uma nota de desprezo pelo problema espanhol, tornava-se tanto mais grave quanto era muito difícil de explicar - desde logo aos espanhóis, que nos miravam com um fácies furioso, mas igualmente às outras nacionalidades, que tinham recebido com naturalidade a tradução de "produtos hortícolas". Ficámos, assim, sob um perplexo olhar coletivo, tentando, de modo esforçado, atenuar o nosso contágio de risadas.
Já não me lembro como aquilo tudo acabou, apenas sei que nunca mais esqueci aquela madrugada europeia de risota lusa. Porque há leitores regulares deste blogue que estavam nessa nossa delegação, deixo-lhes a tarefa de confirmarem ou infirmarem os pormenores desta minha recordação. Talvez o (então) jovem chefe da delegação portuguesa, que ora circula pelos mais altos corredores de Bruxelas, tenha entretanto sido confrontado por alguém com as razões por que comandou esse pelotão imparável de riso, já lá vai quase um quarto de século.