quarta-feira, março 10, 2010

Partidas

A morte de um familiar que há muito não visitava projetou-me na memória um filme rápido com todas as recordações que sobre ele alimento. São imagens de tempos diversos das nossas vidas, nas quais se cruzam, entretanto, várias outras figuras do passado, mais próximas ou mais distantes, que estes momentos acabam inevitavelmente por convocar. Nestas ocasiões, atravessa-me sempre uma sensação de um tempo que se desperdiçou, de conversas que poderia ter tido e deixei de ter, de um convívio que poderia ter alimentado, de outra forma e com outra intensidade. Sei tudo isso, como também sei, muito bem, que outros familares e amigos estão precisamente nas mesmas circunstâncias e que, por esta inércia e comodismo que me marca os dias, em alguns casos acabarei por os não rever. E sei também que, quando desaparecerem, terei uma reação em tudo idêntica. Às vezes, dou comigo a desculpar-me de tudo isto com a vida errante que levo, quando se trata apenas de um imperdoável descuido com os afetos. Mas regresso sempre à justificação auto-complacente: não acontece isto a toda a gente?

Europa

A Europa esteve no centro de duas conversas diferentes e bem distintas que tive: um jantar ontem com o escritor Amin Maalouf e um almoço hoje com o conselheiro para os assuntos europeus do presidente Sarkozy, Fabien Reynaud.

Duas gerações, duas inteligências brilhantes e duas perspetivas que se cruzam na existência de interrogações - embora não as mesmas - que também partilho.

A sensação que, quase sempre, retiro das conversas que por aqui vou tendo é que a Europa e o seu futuro são hoje muito mais um menu de interrogações de que um manual de respostas credíveis para os problemas que temos perante nós. E que o grau de euro-entusiasmo, para aqueles que o partilham, varia na razão direta da fé que cada um coloca na eficácia das novas instituições, cujo dealbar - todos concordam - se mostra algo titubiante . 

terça-feira, março 09, 2010

Futebol

Embora eu navegue por outras ondas futebolísticas, gostava de deixar claro que não me comprazo minimamente com o naufrágio portista perante o Arsenal. A derrota de equipas portuguesas no plano internacional reflete-se sobre todo o futebol português, degrada a nossa imagem desportiva coletiva e - embora haja quem talvez não saiba isso e que tal pode vir a afetar, no futuro, o seu clube - conduz à redução da quota de equipas nacionais nas competições europeias.

Pode ser que eu esteja enganado, mas é minha convicção que o futuro dos clubes portugueses nas altas competições internacionais tenderá a ser, cada vez mais, sombrio. Com efeito, tendo em atenção a progressiva perda de capacidade financeira dos clubes nacionais, que lhes não permite manterem em Portugal os seus melhores valores, apenas na seleção nacional será possível depositar alguma esperança de uma boa representação do nosso futebol . Tal como já sucede com o Brasil, os melhores jogadores tenderão, no futuro, a ser cativados pelos campeonatos estrangeiros, mais ricos e mais atrativos.  

O Futebol Clube do Porto foi, nos últimos anos, uma exceção a esta regra - que se aplica já, de há muito, ao Benfica e ao Sporting. Infelizmente, parece hoje destinado a segui-la.

África(s)

Notei que a cara do nosso embaixador não era das mais felizes. Vim a saber que o ministro dos Negócios Estrangeiros o tinha informado, logo no início da nossa visita oficial ao país africano onde estava colocado, que o seu próximo destino seria... um outro país africano. Curiosamente, um país onde, anos atrás, estivera já em posto por quatro anos.

Ter passado, em duas vezes, oito anos em África, com a perspetiva de um período idêntico numa capital africana onde já servira, aliás bastante distante de Portugal, era uma ideia que não agradava, compreensivelmente, àquele meu colega. Não obstante o grande interesse profissional dos postos, a vida em África acarreta quase sempre problemas específicos, pessoais e familiares, pelo que, muito legitimamente, ansiaria ter agora um outro destino geográfico. O ministro, contudo, não lhe dera qualquer alternativa.

À noite, no jantar na residência oficial do ministro africano que nos recebia, a conversa derivou, a certa altura, para a Revolução do 25 de Abril. Pedagógico, o ministro português explicou ao anfitrião, com algum detalhe, as motivações subjacentes à revolta contra Marcello Caetano. Dentre essas razões, elencou os problemas de carreira e as pulsões democráticas que atravessavam a tropa, para concluir: "Além do mais, os oficiais portugueses estavam cansados de fazer várias comissões de serviço em África".

Foi aí que se ouviu, num sonoro aparte em português, a voz do meu colega em posto: "Como eu os compreendo!". Dei uma gargalhada de solidariedade, cujo significado poucos entenderam, com exceção do nosso ministro. Do outro lado da mesa, o António sorriu.

segunda-feira, março 08, 2010

Música na Embaixada

O dia 8 de Março, dia internacional da mulher, foi ontem comemorado com um concerto musical na Embaixada.

A soprano Eduarda Melo (na foto), acompanhada pela pianista Joana David, apresentou a um público de cerca de 100 convidados um recital variado, iniciado por canções de António Ramos Rosa com música de António Pinho Vargas, seguidas de peças de diversos compositores - Debussy, Mozart, Puccini, Menotti, Bizet, Lehar, Britten, Cole Porter e Gershwin.

Foi a 6ª sessão do programa musical Entre Partituras/Entre Partitions, organizado pelo Instituto Camões/Embaixada de Portugal, que tem vindo a apresentar talentos portugueses em diversas áreas musicais.

domingo, março 07, 2010

Franqueza

A linguagem diplomática internacional tem alguns códigos que importa conhecer, para melhor se entender o que pode estar por detrás de algumas declarações públicas.

Uma dos conceitos-chave em que convém atentar é a eufemismo "franqueza". Se acaso se depararem em algum comunicado, relatando um encontro internacional, a nota de que, durante uma reunião, houve um "debate franco" ou uma "franca exposição de posições", podem ficar cientes de que o ambiente foi tenso, confrontacional, muito duro e sem cedência de posições.

Não se pense que esta realidade se restringe a negociações a níveis técnicos. Muitas vezes, em discussões políticas a nível ministerial, ou mesmo primo-ministerial, as tensões sobem a patamares impensáveis. Mesmo entre aliados. Por exemplo, dentro da União Europeia, para quem não saiba.

Uma noite, no auge de um processo negocial complexo, estava com o meu amigo e deputado europeu Elmar Brok, democrata-cristão alemão, algures num bar de hotel, quando vimos passar um responsável político europeu, saído de um jantar "informal" com os seus pares. A nossa curiosidade sobre esse jantar era grande, porque, do resultado da discussão que nele deveria ter lugar, poderiam depender algumas importantes decisões no dia seguinte.

Pela cara carregada dessa figura política, depreendemos que o debate havia sido tenso. Não imaginávamos, contudo, quanto o fora. Convidámo-lo a sentar-se, desejosos de saciar a nossa curiosidade. Disse-nos que necessitava de um bom "Armagnac" duplo, para se recompor. Nunca lhe fora dado assistir a uma discussão tão divisiva dentro da União Europeia. Ao que nos contou, e perante um comentário que ele próprio fizera, recebera de um seu par, de uma grande potência europeia, a "elegante" reação: "A tua opinião sobre isso não interessa. Se voltasse a haver uma guerra na Europa, o teu país quase não teria tamanho para sepultar todos os mortos dessa guerra". Não recordo a resposta que ele teria dado a essa provocação, talvez porque eu me tivesse fixado obsessivamente nesta chocante frase.

Lembrei-me ontem da questão da "franqueza", ao ler a dura e justa resposta dada pelo primeiro-ministro grego, Georgios Papandreou, perante os bem lamentáveis comentários surgidos na imprensa alemã, a propósito da corrupção no seu país, realidade que não enjeita mas que se recusa - e muito bem! - a assumir como identitária do seu país: "os gregos não têm a corrupção nos seus genes, da mesma maneira que os alemães não têm o nazismo nos seus".

Costa Martins (1938-2010)

Morreu José Costa Martins, um dos grandes heróis da madrugada de 25 de Abril. Com um fantástico "bluff", tomou sozinho e neutralizou o funcionamento do aeroporto da Portela, convencendo tudo e todos que tinha imensas tropas sob o seu comando. As quais só chegariam bem mais tarde.

Era um figura seca e determinada. Conheci-o mal. Recordo-me apenas de ter estado em algumas reuniões com ele, no Palácio da Cova da Moura, em Agosto/Setembro de 1974, quando eu era assessor da Junta de Salvação Nacional e ele confrontava, com coragem, o general Galvão de Melo, com o (hoje general) José Manuel Costa Neves, chefe de gabinete deste último, a procurar construir entre ambos cada vez mais impossíveis pontes. 

Viria a ser ministro do Trabalho, cargo em que foi alvo de um miserável processo de calúnias, que a justiça viria a desmontar, mas de que, na opinião pública, nunca se libertaria, situação que ele sofria com estoicismo.

Na sequência dos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, episódio durante o qual teria um comportamento no mínimo muito controverso, fugiu para Angola, onde acabou por envolver-se nos conflitos de 27 de Maio de 1977. Escapou então, por muito pouco, a ser fuzilado.

Morreu ontem num acidente com um monomotor, ele que tinha sido um orgulhoso oficial da nossa Força Aérea.

Orfeão

Acabo de saber, pelas notícias, que faleceu o maestro Gunther Arglebe. 

A memória dizia-me algo sobre o nome. Tinha razão: a ele se deve, numa infausta tarde de 1967, o "chumbo" que eu e o Albano Tamegão tivemos, naquela que seria a nossa comum e promissora entrada para o Orfeão Universitário do Porto. No meu caso, recordo, com o muito audível argumento de que não tinha "uma voz que interessasse" ao Orfeão. 

O maestro tinha, claro, toda a razão do mundo. A verdade, porém, é que, a partir daí, se perderam duas inestimáveis vocações...

Aqui fica, para compensação e por boa sugestão, o "Desafinado" por  João Gilberto ou, a pedido de outras famílias, por  António Carlos Jobim.

sábado, março 06, 2010

Agricultura

Não deixa de ser impressionante a importância que a agricultura mantém ainda no imaginário francês. A realização do Salon de l'Agriculture, que termina este fim-de-semana em Paris, é a mostra de um mundo com uma identidade fortíssima, cujo peso político, embora de declínio, é ainda considerável. O modo como os políticos, com natural favorecimento dos setores conservadores, exercitam a sua coreografia entre os agricultores presentes, é prova de que, por aqui, a "lavoura" está viva e recomenda-se, não obstante também alimentar um recorrente discurso de queixas. 

Como português e como europeu, continuo a ter sérias dúvidas sobre o equilíbrio, racionalidade e justiça do atual desenho da Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia, até porque ela foi estruturada num outro contexto histórico-económico, ligado às preocupações de autonomia alimentar europeia, bem presentes no pós-guerra. E estas minhas dúvidas, estendem-se, bem entendido, ao modo como as ajudas da PAC se distribuem pelos bolsos portugueses que delas beneficiam. Devo, porém, confessar que, ao viajar pela França e ao verificar que o ordenamento do seu território e os estímulos à fixação da sua população devem muito aos apoios dados à agricultura, questiono hoje algumas das minhas antigas objeções à aplicação da PAC. 

Nada disto implica que não devamos debater, com seriedade e firmeza, a questão da hierarquização e do posicionamento relativo das despesas agrícolas dentro do orçamento comunitário. Não podemos admitir que, por supostos e contestáveis direitos históricos adquiridos, seja o dinheiro europeu a contribuir para a existência de duas Europas agrícolas.

sexta-feira, março 05, 2010

Nostalgia?

A publicação simultânea de vários livros sobre o general De Gaulle suscitou ontem um curioso debate televisivo entre os quatro autores. Nas diferenças que projetaram, ficou claro que todos entendem que se vive em França um tempo de nostalgia, para alguns de regresso a num ambiente de um certo "défaitisme", em que a invocação do general, pela direita e certos setores da esquerda, pode aparecer como um reflexo de uma crise de identidade que o país estará a atravessar, agravada pelo confronto que faz entre a realidade contemporânea e a ideia que sempre alimentou do seu papel no mundo. (Para um português, para quem o "sebastianismo" é identitário, foi uma sensação de "déjà-vu").

Para os autores, a algumas questões de raiz europeia, como a relação desigual que a França hoje sofre com a Alemanha unificada ou a deslocação do controlo normativo ("em inglês") para Bruxelas, somam-se agora tensões internas de natureza nova que levam à discussão da sua própria identidade, originando, cada vez mais, discursos nacionalistas de raiz protecionista e "autarcista", com crescentes laivos de rejeição de aberturas ao exterior.

Os escritores foram unânimes em considerar que, no fundo, esta "degaullo-nostalgia" pode ser lida como um implícito voto de desconfiança na capacidade dos políticos atuais. Valha a verdade que, cada um convocando os seus fantasmas históricos próprios, a maioria dos países europeus parece sofrerem de um "malaise" similar, face ao qual - e isso é indiscutível - a ideia europeia não tem constituído um bálsamo com um mínimo efeito atenuador. Bem pelo contrário.

Michael Foot (1913-2010)

O Tim Tim no Tibete, atento como sempre a certas memórias, trouxe-me, há pouco, a notícia da desaparição de Michael Foot. Não se deve dizer isto, mas eu pensava que ele já havia morrido.

Não sei a quantos este post possa interessar, dado que Foot, nos dias de hoje, não será muito conhecido. Porém, ele foi uma figura interessantíssima da vida política britânica, que chegou à liderança do Partido Trabalhista, num registo ideológico tão radical que acabou por ajudar a manter o seu partido longe do poder.

Em 1983, o seu programa eleitoral, com 700 páginas, foi crismado por Gerald Kaufmann como "the longest suicide note in history"... Incluía: saída das Comunidades Europeias, desarmamento militar unilateral, nacionalizações várias, subida drástica de impostos, extinção da Câmara dos Lordes, etc. Ficou "à porta" da abolição da monarquia! 

Quase tão ácido como Kaufmann, o conservador Chris Patten chamava a Foot "a kind of walking obituary for the Labour party", o que levou Kempsell à caricatura que abre este post.

Michael Foot teve uma longa e brilhante carreira como jornalista, durante a qual sempre manifestou, de forma enfática, as suas ideias, abertamente tributárias do marxismo, bem patentes nos seus múltiplos e muito bem escritos livros (a sua biografia de Aneurin Bevan é magnífica e dizem-me que a de H.G. Wells também, numa perspectiva política). Como parlamentar, foi um orador notável, tendo estado presente de forma muito ativa em momentos importantes da história do trabalhismo britânico. Foi ministro de Harold Wilson e sucedeu a James Callaghan como líder, durante a chefia conservadora de Margareth Thatcher. A sua vitória arruinou as muito mais fortes hipóteses de Denis Healey chegar a primeiro-ministro, contribuindo assim para o irónico título que este iria ganhar entre os socialistas britânicos: "the best prime minister we never had"... Deixou o partido a Niel Kinnock, o qual começou a abrir caminho à "modernização" que levaria o "Labour" ao poder, com Tony Blair.

Numa nota (concedo) digna da imprensa cor-de-rosa, gostava de dizer que a morte de Foot não ajuda a resolver o eterno "mistério" que atravessa os exegetas da vida íntima da esquerda do trabalhismo britânico: o seu suposto romance de juventude, durante umas famosas férias em França, com a também antiga ministra Barbara Castle, já há anos desaparecida. Quem, como eu, leu há muito as referências feitas por Foot ao facto e as memórias de Castle ficou sem confirmação absoluta desse "affaire", cuja hipotética existência, por si só, pode ajudar a explicar tanto algumas "políticas de aliança" como certos dissídios no seio do "alto" Labour.

quinta-feira, março 04, 2010

Tristeza

Uma análise de duas páginas que o "Libération" ontem trouxe sobre Portugal foi ilustrada pela fotografia de três jovens. Como o texto foca o problema  das condições de precariedade no nosso mercado de trabalho, é natural que as caras não se mostrem sorridentes e bem dispostas - ou melhor, que o jornal tenha optado por fotografias que não contrastassem com o sentido do texto.

Com todo o subjetivismo que esta minha análise possa ter, sou de opinião, porém, que o "Libération" se sentiu subliminarmente tentado a seguir uma ideia estereotipada, que, sobre os portugueses, subsiste no imaginário de muitos franceses: gente grave, de ar sério, um tanto formal e reservada, que às vezes parece "assustada" com o mundo. Como todas as caricaturas, esta minha leitura também vale o que vale.

Ficou-me desde sempre na memória a capa da 2ª edição (ver supra) do livro "Portugal", de Franz Villier, publicado na Petite Planète, a seguir ao 25 de Abril, que figura na imagem. O que nela se vê é revelador: uma jovem portuguesa de ar vagamente suburbano, já com alguns traços de modernidade na discreta maquilhagem, num fundo tradicional, marcada por uma quase endémica tristeza, que a luz ambiente como que sublinha. A graça - se é que isto tem alguma graça - é que a capa da 1ª edição do mesmo livro (ver infra), feita ainda ao tempo do Estado Novo (1957), era igualmente caricatural: uma mulher rural, xaile negro, olhar neutro e parado, com um pálido roxo pascal a atenuar o branco-e-preto original. A rue Scribe, que então controlava a "diplomacia pública" portuguesa em França, tinha feito o seu trabalho...

Comprazemo-nos, historicamente, a contrariar o "les portugais sont toujours gais", da opereta de Lecocq, que foi buscar a imagem a Alphonse Allais, ao espalharmos, como Mariza o canta tão bem
 
"sempre que se ouve um gemido, 
numa guitarra a cantar, 
ó gente da minha terra,                
agora é que eu percebi,
esta tristeza que trago,
foi de vós que a recebi.

Depois, não nos podemos queixar do "Libération"...  


Greve

Uma greve é um gesto coletivo de protesto que resulta do usufruto dos direitos que a democracia a todos concede. Quem a faz fá-lo por razões que considera importantes e, só por isso, essa sua atitude deve ser respeitada e ponderada.

Desde que cheguei a Paris, há mais de um ano, esta é a terceira vez em que a Embaixada quase se esvazia, pelo exercício do direito à greve do pessoal administrativo.

Esta nota não se prende com as razões invocadas, liga-se ao efeito sobre o quotidiano do serviço.

Para quem não tem razões para fazer greve, a Embaixada, nestes dias, muda completamente de perfil, nos seus corredores instala-se um silêncio ou um mero rumor, como que se os passos dos que ficam fossem dados sobre veludo.

quarta-feira, março 03, 2010

Rússia

Ao saudar, protocolarmente, o presidente russo Dmitri Medvedev, nos salões da Mairie de Paris, não pude ontem deixar de me interrogar sobre o que faz com que a França e a Rússia mantenham, desde há muito, uma espécie de fascínio mútuo, que sempre atravessou titulares muito diversos do poder político nos dois países.

Várias explicações de natureza estratégica podem ser avançadas, no quadro internacional de forças das últimas décadas, desde aquelas que têm os EUA na equação até quantas não esquecem o posicionamento relativo da Alemanha. Mas, pela certa, deve haver algo de mais permanente.

Em 2010, França e Rússia levarão a cabo uma imensidão de realizações culturais, para benefício dos respetivos públicos, para um melhor conhecimento das suas realidades e, de caminho, mostrando a grandeza dos seus patrimónios históricos. Pergunto-me se, há exatamente 110 anos, quando Alexandre III ofereceu a Paris a sua mais bela ponte (na imagem) não estaria a ter consciência de que, com esse ato, ajudaria a ligar ainda mais estes dois poderes europeus.

E volto a Medvedev. Os faustos dos Kremlin ou do Hermitage não estão muito distantes dos dourados e espelhos de Versailles e de outros palácios franceses. Por isso, e contrariamente a outros líderes que visitam Paris, pressenti Medvedev, de certo modo, "em casa", nos espaços do Hotel de Ville. Os franceses fizeram a Revolução, mas guardaram bem o património da monarquia e adaptaram a ele as liturgias da República. Os russos liquidaram o regime dos Czars, mas nem Lenine, Staline e os sucessores, tal como o novo poder russo, dispensaram o usufruto e o prestígio decorrente das amenidades imperiais. 

Clima

Claude Allègre é um cientista e político francês que não teme a polémica. Ministro da Educação no governo socialista de Lionel Jospin, saiu em conflito com o setor. Recentemente, foi dado  praticamente como certo que poderia integrar o governo do presidente Sarkozy, mas isso acabou por não ter lugar.

O carácter mais polémico de Claude Allègre advem, contudo, da sua posição altamente reticente em aceitar alguns dos pressupostos vulgarmente avançados sobre o tema do aquecimento global. Não sendo necessariamente um "negacionista", Allègre tem dúvidas sobre o bom fundamento das teorias de relação causa-efeito que estão em moda e, recentemente, expô-las num livro.

Hoje, no "Le Monde" (de amanhã...), sintetiza em cinco pontos o que pensa:

- o painel da ONU designado GIEC (grupo intergovernamental de peritos sobre as alterações climáticas) é culpado por "erros científicos graves" e o seu método de decisão por consenso, que silencia as opiniões minoritárias, é "incompatível com a ética da ciência".

- o planeta pode estar ameaçado de um aumento a 1 ou 2 graus centígrados de temperatura... mas dentro de um século. Mas pode, igualmente, estar ameaçado de uma baixa das temperaturas.

- o CO2 é uma ameaça quando "em excesso", porque acidifica os oceanos e também porque é de boa política economizar as energias fósseis. Mas é errado imputar-lhe todos os males.

- há uma "ideologia do aquecimento climático" promovida pelos ecologistas. É necessário reencontrar, neste tema, as leis elementares do debate científico - aberto, contraditório sem apriorismos.

- em Copenhague, a "rebelião" dos países emergentes ficou a dever-se à recusa de um "neocolonialismo rastejante, encostado a interesses financeiros de que um dos principais porta-vozes é Al Gore", representando um "ecobusiness" que também existe em França.

Este é um debate sobre o qual não tenho conhecimentos que me levem a dar a menor opinião, mas que sigo com interesse. Tenho, contudo, uma curiosidade: há quantos dias terá sido enviado este artigo para o "Le Monde"? Posso estar enganado, mas suspeito que terá sido antes das recentes cheias...

terça-feira, março 02, 2010

Mindlin

Recebi, há pouco, a notícia da morte, em S. Paulo, de José Mindlin. Tinha 95 anos e, desde há cerca de quatro, era membro da prestigiada Academia Brasileira de Letras (ABL). Era proprietário de uma fantástica biblioteca, a mais importante coleção privada do Brasil, recheada de preciosidades, as quais, por decisão do próprio e da família, estavam destinadas a ocupar um edifício próprio na Universidade de S. Paulo.

Em 18 de Março de 2006, fui com o professor Jorge Couto, diretor da nossa Biblioteca Nacional, e o meu colega Luis Barreira de Sousa, ao tempo cônsul-geral em S. Paulo, fazer uma visita à biblioteca de Mindlin, guiada pelo próprio. Era uma moradia no bairro residencial de Campo Belo, com uma área climatizada, dedicada aos seus cerca de 40 mil livros raros, manuscritos, provas tipográficas anotadas, gravuras, etc.

José Mindlin era um advogado e empresário, filho de um casal de russos emigrados para o  Brasil no século XIX, que teve a fortuna de sempre ter dinheiro no momento em que outros vendiam coisas importantes. Estava nas "mailing lists" permanentes dos grandes leilões internacionais e, como nos disse, "eles sabem aquilo de que eu ando à procura". Com uma memória vivíssima e sem falhas, ciceroneou-nos por imensas estantes recheadas de alguns documentos únicos, muitos dos quais ligados a personalidades ou tempos da história portuguesa, de que era um apaixonado. Lembro-me dos olhos "gulosos" de Jorge Couto, um dos nossos maiores especialistas em história luso-brasileira, ao avistar algumas raridades, comentando, com pena, a sua ausência no nosso acervo, em Lisboa: "De facto, este não temos lá!"

No fim da visita, de algumas horas, José Mindlin, acompanhado pela sua mulher Guita (que faleceria um ano depois) ofereceu-nos uma cachaça, com a recomendação: "Não deixem de beber cachaça! Enquanto a beberem é sinal que não morreram..."

À despedida, José Mindlin, que mais tarde passei a encontrar nas minhas frequentes visitas à ABL, teve ainda a simpatia de me oferecer, com uma generosa dedicatória, o livro "Destaques da Biblioteca InDisciplinada de Guita e José Mindlin, Vol I - Brasiliana" (haverá um volume II?), que inventaria o mundo maravilhoso dos seus livros e onde figura o ex-libris que usava, extraído de Montaigne: "Je ne fais rien sans gaité". Notava-se.

Aqui deixo a minha comovida homenagem a este homem que deu aos livros um lugar central na sua vida.

"Público"

O jornal "Público" faz 20 anos. Quando apareceu, o diário representou uma lufada de ar fresco no panorama jornalístico português, com uma importância quase similar àquela que o "Expresso" teve nos estertores da ditadura - e não será por acaso que o "Público" foi criado por gente saída do "Expresso". O "Público" passou a ser o nosso "Le Monde", o nosso "El País", o nosso "La Reppublica". Era, manifestamente, era um corte cultural com a prática de imprensa diária em que, até aí, Portugal tinha vivido.

Sempre tive no "Público" pessoas que mereceram a minha estima e amizade, ao longo destas duas décadas em que, com as limitações da distância, acompanho regularmente o jornal. Devo ao "Público" a simpática atenção que deu às diversas atividades que desenvolvi, em todo o tempo do seu percurso. Nele publiquei  vários artigos, por ele fui entrevistado algumas vezes. A todos os meus amigos do "Público"-  mesmo àqueles que dele se afastaram há muito, como é o caso do seu fundador e idealizador, Vicente Jorge Silva - deixo aqui um forte abraço coletivo de parabéns. Por muita água que tenha corrido sob as pontes, por muito que o "Público" tenha mudado, uma  realidade é indiscutível: há uma imprensa portuguesa antes do "Público" e outra depois da sua aparição.

Dos depoimentos que o jornal pediu a personalidades de grande relevo na vida portuguesa, e que tem vindo a divulgar no seu site, há um que quero destacar em particular, o do meu amigo e embaixador português junto da OCDE, Eduardo Ferro Rodrigues. Concordo, em absoluto, com tudo o que ele disse, a propósito destes 20 anos do "Público".

Imigrantes

Um grupo de ativistas pelos direitos dos imigrantes lançou em França um movimento sob o lema "24 horas sem nós: um dia sem imigrantes". A ideia era simples: organizar, no dia 1 de Março, uma greve de imigrantes neste país, com vista a dar uma imagem de quanto a economia do dia-a-dia francês deles depende.

Não tenho conhecimento do grau de sucesso da iniciativa e até duvido muito que ela se tenha concretizado de forma visível. Os imigrantes são, entre todos os assalariados, aqueles que, por regra, têm maior precariedade no seu vínculo laboral, vivem numa dependência económica que os torna presas fáceis do seu patronato e, finalmente, raramente têm uma consciência política capaz de os conduzir a ações reivindicativas desse género.

Esta iniciativa tem, pelo menos, o considerável mérito de nos levar a uma reflexão: o que seria das sociedades europeias contemporâneas sem o trabalho dos imigrantes?

segunda-feira, março 01, 2010

Telejornais

Impressiona-me imenso a incapacidade dos canais televisivos portugueses para limitar a extensão dos seus telejornais. Não sei o que se passa na generalidade dos países do mundo, mas, em todos quantos vivi, os períodos noticiosos das televisões de referência têm sempre uma duração bem limitada, raramente excedendo os 30 minutos.

A adoção rigorosa desse modelo ajuda a priorizar a importância das notícias, facilita a que o tratamento dos temas seja feito com sintetismo e limita aquelas palavrosas ligações "ao local", onde os repórteres apenas repetem o conteúdo das peças, alimentam os "manifestantes das oito" ou dão voz a transeuntes que pouco viram. 

O que mais impressiona nos telejornais portugueses é a total ausência do conceito de "tempo", o qual, aparentemente, é um bem muito escasso em televisão. Muitas vezes, num debate temático, os moderadores interrompem, com facilidade, uma exposição interessante, por falta de um minuto disponível. Porém, num telejornal, um acidente de estrada ou um incidente desportivo tem direito a longo tratamento, com pormenores e comentários cheios de inanidades perfeitamente dispensáveis. O que mais me preocupa é que, pelos vistos, toda a gente acha isto natural...

Este meu comentário vem a propósito do profissionalismo com que ontem vi tratada, ao longo do dia, na televisão francesa, a imensa tragédia provocada pela tempestade, que aqui causou largas dezenas de vítimas. Cada telejornal dos principais canais da televisão francesa, públicos e privados, não alterou o seu formato de meia-hora, tendo, no entanto, tratado o assunto com profundidade, em peças curtas, com notas humanas,  diretos breves e concisos, opiniões de especialistas e - muito importante! - com escassíssimas e muito curtas declarações de entidades oficiais. Tudo isto sem deixar de referir outros temas da actualidade francesa e mundial. E, repito, apenas em 30 minutos.

Tragédia

Depois da Madeira, também a França foi ontem alvo das intempéries, com um número de vítimas mortais a ascender a cerca de meia centena.

O que se torna impressionante é que, contrariamente ao caso da Madeira, esta tempestade estava prevista e as previsões acertaram nas regiões que seriam mais atingidas. A França é, além disso, um país altamente organizado e tinha montado um dispositivo de alerta nacional, normalmente bastante eficaz. Não obstante, a violência do clima ultrapassou tudo o que era possível esperar.

Ontem à tarde, na catedral de Notre-Dame de Paris, onde o cardeal André Vingt-Trois teve a simpatia de dedicar uma missa às vítimas da Madeira, num gesto para com a comunidade portuguesa que pessoalmente lhe agradeci, as palavras do celebrante e o pensamento das largas centenas de presentes alargaram-se naturalmente aos acontecimentos da própria França e, também, ao fatídico terramoto no Chile.

Uma semana para esquecer. Ou melhor, para lembrar.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...