terça-feira, março 02, 2010

Mindlin

Recebi, há pouco, a notícia da morte, em S. Paulo, de José Mindlin. Tinha 95 anos e, desde há cerca de quatro, era membro da prestigiada Academia Brasileira de Letras (ABL). Era proprietário de uma fantástica biblioteca, a mais importante coleção privada do Brasil, recheada de preciosidades, as quais, por decisão do próprio e da família, estavam destinadas a ocupar um edifício próprio na Universidade de S. Paulo.

Em 18 de Março de 2006, fui com o professor Jorge Couto, diretor da nossa Biblioteca Nacional, e o meu colega Luis Barreira de Sousa, ao tempo cônsul-geral em S. Paulo, fazer uma visita à biblioteca de Mindlin, guiada pelo próprio. Era uma moradia no bairro residencial de Campo Belo, com uma área climatizada, dedicada aos seus cerca de 40 mil livros raros, manuscritos, provas tipográficas anotadas, gravuras, etc.

José Mindlin era um advogado e empresário, filho de um casal de russos emigrados para o  Brasil no século XIX, que teve a fortuna de sempre ter dinheiro no momento em que outros vendiam coisas importantes. Estava nas "mailing lists" permanentes dos grandes leilões internacionais e, como nos disse, "eles sabem aquilo de que eu ando à procura". Com uma memória vivíssima e sem falhas, ciceroneou-nos por imensas estantes recheadas de alguns documentos únicos, muitos dos quais ligados a personalidades ou tempos da história portuguesa, de que era um apaixonado. Lembro-me dos olhos "gulosos" de Jorge Couto, um dos nossos maiores especialistas em história luso-brasileira, ao avistar algumas raridades, comentando, com pena, a sua ausência no nosso acervo, em Lisboa: "De facto, este não temos lá!"

No fim da visita, de algumas horas, José Mindlin, acompanhado pela sua mulher Guita (que faleceria um ano depois) ofereceu-nos uma cachaça, com a recomendação: "Não deixem de beber cachaça! Enquanto a beberem é sinal que não morreram..."

À despedida, José Mindlin, que mais tarde passei a encontrar nas minhas frequentes visitas à ABL, teve ainda a simpatia de me oferecer, com uma generosa dedicatória, o livro "Destaques da Biblioteca InDisciplinada de Guita e José Mindlin, Vol I - Brasiliana" (haverá um volume II?), que inventaria o mundo maravilhoso dos seus livros e onde figura o ex-libris que usava, extraído de Montaigne: "Je ne fais rien sans gaité". Notava-se.

Aqui deixo a minha comovida homenagem a este homem que deu aos livros um lugar central na sua vida.

8 comentários:

Anónimo disse...

"Homem que deu aos livros um lugar central na sua vida."

Aí está
Um Sr. que também me Interessa...

Porque a morte
É a Vida
Que reside já no habitáculo
Do coração
Vida que precisa de espaços vivos
Vivos no pensamento da realidade Ilusão
É a vida
Que já precisa do infinito
Para espraiar
Um silêncio obsceno dissimulado
De razão...
Isabel Seixas

PS Ainda bem que o espólio é para uma biblioteca.

margarida disse...

Associo-me à sua comoção pela dimensão humana que relata, já que não tive o privilégio de conhecer a individualidade.
Felizes aqueles que deixam herança emocional.
Sortudos os que com eles se cruzaram.
Esse é que é o real enriquecimento. E por osmose.

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador, hoje invejei-o. O que não sendo bonito, quando confessado, estará meio perdoado. Que sorte - ou será destino? - a sua, de ter podido ver/conhecer alguém como Mindlin, de quem sempre ouvi falar como se de um mito fosse!
Muito obrigada por mais esta partilha. Daqui a pouco já poderei dizer que o nosso Embaixador em França "é muito cá de casa".
Já agora permita-me que pergunte à Isabel Seixas, para quando um livro de poesia?

Unknown disse...

Além de todas as qualidades intelectuais e a figura humana que foi Mindlin, ele teve para nós brasileiros uma grande importância. Ele e Antonio Ermírio de Morais foram os únicos empresários paulistas que, ao serem procurados pelos militares durante os duros anos da repressão, se recusaram a patrocinar a Operação Bandeirantes - OBAN, reponsável pela implantação da prática de tortura e execução durante o regime militar.

Anónimo disse...

Oh! Dra. Helena

Pois está convidada para prefaciar o meu quarto livro, em parceria claro...
Primeiro e sempre o Sr. embaixador, por competências óbvias, mas essencialmente pelo espírito livre e sem medos castradores...
Depois e em igualdade de circunstâncias pelo estilo literário manifesto que me cativa também, a Sra, a Margarida do criativemo-nos e o P. Rufino.

Chama-se "A Taverna" é um tributo a um dos homens que mais amo o meu Pai, e sinceramente não sei se obedece aos critérios rigorosos da poesia erudita, mas é escrito em versos dispostos em degradé na mancha gráfica, agora subjectividade tem qb, ainda estou a ultimá-lo.

Isabel Seixas

PS Agora... Não garanto valor comercial... Mas isso nem a mim

margarida disse...

:) Isabel, fico penhorada pela sua gentil menção.
E desde já lhe endereço parabéns pela façanha! Quarto livro! "Forbidable!"
Boa inspiração, é o que carinhosamente lhe desejo. :)

Helena Sacadura Cabral disse...

Isabel
Eu bem desconfiava dessa veia poética!
E agradeço, sensibilizada o convite.
De facto, um dia, o Senhor Embaixador, nas suas memórias, decerto vai recordar estas suas comentadoras fiéis!

Anónimo disse...

E por falar em fiéis, não é que um estudo revelador afirma e corrobora o que sinceramente sempre pressenti...

Os homens mais inteligentes tendem a valorizar que é como quem diz neste contexto tendem a praticar a exclusividade sexual.

Sendo que os homens que traem as companheiras tendem a ter um QI mais baixo..."Revista social Psychology Quarterly"

Claro que ...Pronto é passível de debate...Mas convenhamos que desde logo é visível a inteligência Emocional, Relacional,Espiritual, Cultural(Pelo menos europeia)e Pragmática.
(Revista Sábado de 4 de Março 2010 pág. 19)
Isabel Seixas

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...