Na parede de uma paragem de autocarros na aldeia de Lixa do Alvão, ontem, ao final da tarde.
sábado, março 31, 2012
quinta-feira, março 29, 2012
Protocolo
O meu colega e amigo embaixador José Bouza Serrano publicou, há poucas semanas, o "Livro do Protocolo".
Muitos de quantos se interrogam, por vezes de forma irónica, sobre a "liturgia" do cerimonial oficial teriam vantagem em visitar esse volume, como forma de entenderem melhor a importância do protocolo na vida dos Estados e nas relações internacionais. E também para aprenderem algumas coisas básicas, que ajudam à convivência, permitem superar equívocos e facilitam as relações, dando indicações preciosas sobre comportamentos e práticas adequadas.
De Gaulle, bem atento aos símbolos, dizia que o protocolo era a "ordem da República". Na minha vida profissional, sendo embora muito atreito a olhar as coisas da forma mais simples e desformalizada que for possível, aprendi a ter um grande respeito pelas regras protocolares, porque elas são, imensas vezes, o esqueleto que permite manter - de forma muito distante do caráter fútil que se lhes atribui - um equilíbrio saudável na vida oficial. Também me dei conta, em muitas ocasiões, que essas regras são, muito para além disso, um modo discreto de suprir faltas de educação de muita (dita boa) gente.
Para olhares menos atentos, o protocolo surge uma atividade marcada pela "ligeireza", pelo "maneirismo", pelo snobismo impositivo. Não é nada disso. Nas relações internacionais, não damos conta do protocolo até ao momento em que uma falha nesse âmbito tenha lugar. Quanto tal acontece, é um "aqui d'el rei!" geral, um mal estar das personalidades políticas, comentários jocosos da imprensa, olhares enviezados de colegas menos atentos, por vezes com sensíveis efeitos na substância das relações políticas. Desde há muito que criei um profundo respeito pelos diplomatas e técnicos que se encarregam do protocolo de Estado português. E eles sabem-no.
Para olhares menos atentos, o protocolo surge uma atividade marcada pela "ligeireza", pelo "maneirismo", pelo snobismo impositivo. Não é nada disso. Nas relações internacionais, não damos conta do protocolo até ao momento em que uma falha nesse âmbito tenha lugar. Quanto tal acontece, é um "aqui d'el rei!" geral, um mal estar das personalidades políticas, comentários jocosos da imprensa, olhares enviezados de colegas menos atentos, por vezes com sensíveis efeitos na substância das relações políticas. Desde há muito que criei um profundo respeito pelos diplomatas e técnicos que se encarregam do protocolo de Estado português. E eles sabem-no.
Quando entrei para o serviço diplomático, a nossa "bíblia" protocolar era "o Serres", o "Manuel pratique du protocole", uma obra de Jean Serres, de 1965. Mais tarde, na tradição francesa que fez muita escola em Portugal, tornou-se-me útil (e mais divertido, pela sua escrita solta) o "Guide du protocole et des usages", de Jacques Gandouin, que até já tem uma "édition de poche". Mas, devo dizer, até porque tem uma vertente importante em matéria de Direito internacional, que continuo a ser um incondicional fã do britânico "Satow's guide for diplomatic practice", que já vai em muitas e renovadas edições, desde a original de 1917. Tenho, além disso, umas boas dezenas de outras obras sobre protocolo diplomático, em outras línguas - para além das que já encomendei, à luz da bibliografia citada neste novo "Livro do protocolo".
Havendo regras internacionais que enquadram as práticas protocolares, a verdade é que cada país cria também o seu próprio protocolo, pelo que as "liturgias" variam de Estado para Estado, para além de, naturalmente, evoluírem com os tempos. Em Portugal, o livro "Regras do cerimonial português", do embaixador Hélder Mendonça e Cunha, foi, durante muito tempo, a obra referencial. Todos tínhamos "o Hélder" nas nossas estantes, para resolver questões de precedências, colocação e ordem de condecorações, regras para os lugares à mesa em cerimónias, cartões e tipo de convites, etc. Mais tarde, o embaixador José Calvet de Magalhães, com o seu magnífico "Manuel diplomático" (uma espécie de "Satow's" em português), trouxe uma atualização sensata ao "Hélder", para além de ser uma obra com outro fôlego e justificada ambição.
Agora, o José Bouza Serrano, com cultura, inteligência e um insuperável bom-gosto e elegância, transpõe para livro o caldo da sua longa (e muito bem sucedida) experiência como diplomata e, em especial, como chefe do Protocolo do Estado. Por isso, este seu livro passa a ser uma nova "bíblia", embora talvez não tão laica e plebeia como eu gostaria que fosse (e ele sabe porque digo isto...). Mas trata-se, sem a menos sombra de dúvida, de uma obra muito importante, uma incontornável (como agora se diz) referência na matéria, cuja consulta - mesmo para gente fora "dos Estrangeiros" - fortemente recomendo.
Termino com uma frase significativa de Jaime Gama, no prefácio deste trabalho: "Vencer o preconceito em torno do protocolo é um ato de maturidade que aperfeiçoa as sociedades e lhes confere um acrescido grau de liberdade, porque lhes acrescenta civilização".
Termino com uma frase significativa de Jaime Gama, no prefácio deste trabalho: "Vencer o preconceito em torno do protocolo é um ato de maturidade que aperfeiçoa as sociedades e lhes confere um acrescido grau de liberdade, porque lhes acrescenta civilização".
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Há dias, foi-se o Chico Anísio. Agora, desaparece o Millôr Fernandes.
Deixa-nos tristes gente que nos punha alegres.
Deixa-nos tristes gente que nos punha alegres.
quarta-feira, março 28, 2012
Proibições
Recordação que, há semanas, trouxe de Sloane Street, em Londres
(Declaração de interesses: não fumo nem nunca fumei)
segunda-feira, março 26, 2012
O adido
MNE, há mais de 30 anos.
O diretor-geral, à secretária, de óculos na ponta do nariz, lia lentamente a informação de serviço que o adido de embaixada tinha preparado. De pé, o chefe de repartição e o jovem autor do texto mantinham-se num reverente silêncio, esperando o veredito.
Acabada a leitura, o diretor-geral levantou os olhos, deu um leve suspiro, olhou para o adido e disse: "Deixe ficar o papel", com uma implícita indicação de que o funcionário poderia retirar-se.
Quando ficou a sós com o chefe de repartição, este último, pressentindo algum desagrado no modo como o seu superior tinha acolhido o texto, perguntou: "Não gostou da informação? Posso mandar refazê-la...".
O diretor-geral não respondeu logo. Levantou-se, caminhou para a janela e ficou a ver a ponte sobre o Tejo. Segundos depois, voltou-se, encarou o chefe de repartição, deu um suspiro ainda mais longo e inquiriu: "Você sabe quando é que este tipo entrou na carreira?".
- Julgo que foi no concurso de há cerca de dois anos. Porquê?
- Por nada. Ele não tem culpa nenhuma, é apenas um incompetente que não sabe escrever português e que vai demorar alguns anos até se tornar num funcionário sofrível. Até lá, quem sofre é o Estado. O que eu gostava de saber é quem foram os cretinos dos membros do júri de admissão que o não chumbaram...
domingo, março 25, 2012
Classes
Encontrei-o há dias. Careca, mais gordo, mais velho, reformado, mas sempre com aquele sorriso jovial, o mesmo que tinha quando andávamos envolvidos nas "guerras" políticas radicais dos anos 70. Falámos do país e dos dramas caseiros.
- Felizmente que pertencemos a uma geração realizada, comentou. Lembras-te quando lutávamos por uma sociedade sem classes?
Eu lembrava-me, mas não percebia onde ele queria chegar.
- Pois bem. Conseguimos o que queríamos: temos por aqui uma sociedade sem classe nenhuma...
Continua um exagerado.
sábado, março 24, 2012
Isolados
Sporting "isola-se" (!), provisoriamente (!) no 4º (!) lugar, depois de bater o ameaçado de descida de divisão Feirense (!), por 1-0 (!), de penalti (!)- leio num site qualquer, que também regista os "bocejos dos adeptos, uma contradição de emoções, felizes por ganharem, mas cansados com a monotonia".
Caramba! Que alegria deve ser, a julgar pela imagem junta! Porque será que, embora assumido "leão", não me apetece comemorar (muito)?
O norte e a diplomacia
Era a minha primeira viagem a Portugal, como embaixador em França. Estava na sala de executiva de Orly e, a certo ponto, perguntei à simpática senhora da TAP se não era já hora do meu voo. Sossegou-me, dizendo que ainda tinha muito tempo. Minutos depois, com um vago pressentimento, levantei-me e fui ver o quadro eletrónico na parede: o voo já estava em "dernier appel". Agarrei as minhas coisas e, de forma apressada, encaminhei-me para a porta. A senhora da TAP interrompeu-me:
- Mas olhe que ainda tem muito tempo! Ainda não chamaram para o embarque.
- Essa agora! Está ali bem claro, no voo para o Porto, que já é a última chamada.
- Ah! mas vai para o Porto!? É que o embaixadores portugueses vão sempre para Lisboa...
A senhora ficou a saber que a regra tinha algumas exceções: também há embaixadores do norte.
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sexta-feira, março 23, 2012
Clubites
O Futebol Clube do Porto apresentou uma queixa contra uma professora que, nas suas aulas, divulgou uma corruptela do "Atirei c'o pau ao gato", a qual acaba dizendo: "“vai-te embora pulga maldita/batata frita/viva o Benfica". Azul de indignação, o pai de uma criança "violentada" por esta terrível distorsão educativa, terá mobilizado a atenção da agremiação nortenha para o que se considerou serem os novos "fascistas do gosto". Para o clube, em severa declaração pública, "mais grave é que a
adulteração da letra é prática diária e repetida três vezes ao dia, não
só no jardim-infância da Ericeira, mas também em todas as escolas do
pré-escolar do agrupamento e noutras de Lisboa e Cascais".
Sendo este blogue - por insuperável e endémico "lagartismo" - totalmente insuspeito da mais leve simpatia por ambas as partes envolvidas neste decisivo conflito - desde os "lampiões" do Colombo aos "andrades" do Pérola Negra -, apetece deixar aqui uma imensa gargalhada informática face a estes sintomas de ridícula clubite, só possíveis num país que ainda se permite levar a sério uns maduros que, com ar grave e espaço mediático, transformam um divertido espetáculo, em que uma maioria de estrangeiros dá uns pontapés e umas cabeçadas numa bola, vestidos com camisolas atulhadas de publicidade e com "patrióticos" emblemas que a maioria dos "artistas" só traz no coração porque andam junto ao peito, num severo "casus belli" educativo. Só espero que ninguém, dos lados de Alvalade, venha a lembrar-se de subscrever este protesto contra o "outro lado da segunda circular".
Serei eu que estou a ver mal as coisas ou anda tudo doido?
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quinta-feira, março 22, 2012
Argélia
É muito interessante acompanhar o modo como a França de hoje, 50 anos depois da independência da Argélia, reflete sobre esse passado relativamente recente, feito de uma guerra sangrenta e de grandes sacrifícios humanos, de parte a parte.
A guerra da Argélia mudou a França e colocou-a, a partir de então, sob uma herança histórica muito particular. Pode dizer-se que, durante muitos anos, houve por aqui como que um esforço, nunca abertamente assumido, de afastar o país desse tempo, talvez numa consciência subliminar de que a sua evocação arriscaria acordar velhos fantasmas. Curiosamente, terá sido o agravamento das tensões político-religiosas dentro da própria Argélia, a partir dos anos 90, que provocou, na França, o início de um surto de reflexão sobre aquela que foi a mais traumática das independências dos territórios sob sua administração. Dezenas de livros e muitos filmes passaram a trazer a um melhor conhecimento pelas novas gerações desse período convulso. Ouvindo testemunhos do período de confrontação, de ambos os lados do Mediterrâneo, fica uma clara sensação de que ainda há feridas bem abertas que, quem sabe?, talvez só possam ter a ganhar com este exorcismo de memória. É que a vida também prova que meter o passado sob o tapete só aumenta o risco de, um dia, nele tropeçarmos.
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quarta-feira, março 21, 2012
Sondagens
Amigos e conhecidos (alguns bem conhecidos...) interrogam-me, algo perplexos, sobre o caráter algo errático das sondagens em torno das eleições presidenciais francesas. Umas contrariam as outras e as suas linhas tendenciais não são claras. Além disso, se tivermos em conta as margens técnicas de erro, então as coisas ficam ainda mais confusas.
Para quem quiser acompanhar, com algum rigor, essa estranha dança das sondagens, aqui deixo um precioso "link".
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Crise académica de 1962
Comemoram-se, por estes dias, os 50 anos do movimento de agitação universitária que ficou conhecido, entre nós, pela “crise académica de
Em Lisboa, nesse início de 1962, o mundo universitário iniciou um ciclo de inquietação que, com surtos irregulares, nunca mais iria parar, até ao 25 de Abril. Era essa a juventude que o regime ia utilizar como tropa de choque nas guerras coloniais, inicialmente em Angola (1961), depois em Moçambique e na Guiné (1964). Atravessada pelos ventos de liberdade que haviam soprado forte aquando da candidatura de Humberto Delgado (1958), com o “putchismo” militar a espreitar nas Revoltas da Sé (1959) e de Beja (fim de 1961), a “crise" de
A crise académica de
Basta olhar para as lideranças académicas de 1962 para podermos entender o que aí vinha. Ao lado de Jorge Sampaio, de uma esquerda marxista não-alinhada, apareciam nomes como Vítor Wengorovius, ligado à nova “inquietação” católica (nascida, organizativamente, depois da “carta do Bispo do Porto” e do "documento dos
A crise académica de
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terça-feira, março 20, 2012
Arbitragens
Não faço parte de quantos acham que há por aí uma permanente conspiração no mundo da arbitragem. Nem de quantos, por regra, consideram que as derrotas (ou as vitórias) se devem essencialmente aos árbitros.
Mas há uma coisa que nunca entendi: por que razão um jogador, um treinador ou um dirigente não têm o direito, no final de um jogo, de considerar que a arbitragem foi péssima ou que o árbitro e os seus auxiliares foram, pura e simplesmente, incompetentes ou profissionalmente incapazes? Percebo que, sem provas, não devam acusá-los de desonestos ou corruptos, mas nunca entendi por que diabo um ator do jogo não pode manifestar, abertamente, a sua livre opinião sobre o trabalho desenvolvido por uma equipa de arbitagem, sem ser, de imediato, alvo dessa coisa patusca a que chamam "justiça desportiva".
De tudo isto resulta a sensação de que o futebol é uma espécie de um Estado dentro do Estado... a que isto chegou.
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segunda-feira, março 19, 2012
Paris, março de 1973
Naquele mês de março de 1973, vim a Paris, por cerca de uma quinzena de dias, para "ver" as eleições legislativas desse ano. Eu entrava no serviço militar obrigatório no final desse mês, por um período de tempo que poderia vir a ser superior a três anos, pelo que havia decidido oferecer a mim mesmo umas curtas "férias políticas", tiradas no banco onde então trabalhava.
Paris fervilhava. A "rive gauche" aparecia, a essa nossa geração lusitana de então, como o centro de um mundo do futuro, do qual a ida para a "tropa" nos iria afastar, por muito tempo. O dinheiro disponível era escasso, os livros eram a nossa principal perdição, com a "Joie de Lire", a que sempre chamávamos "a Maspero", a surgir como a principal "meca", embora, para um familiar maoísta que me acompanhava, o destino de eleição fosse então a livraria Fenix, no boulevard Sebastopol (que hoje ainda existe, contrariamente à primeira). Para além dos comícios políticos, na "Mutualité" e em certos teatros de bairro, ia-se obsessivamente (e quase por "obrigação" cultural) a algum cinema que não passava em Portugal, frequentava-se espetáculos musicais ou teatrais gratuitos, comprava-se o "Le Monde" como uma espécie de ritual vespertino, ia-se pelas universidades onde tínhamos amigos como estudantes. Verdade seja que, para além da muita conversa e do flanar, pouco mais se fazia, mas, por algum mistério, os dias estavam sempre bem cheios.
Na Cité Universitaire, por onde dormi uns dias na "Maison de Norvège", graças ao Joaquim Pais de Brito, cruzavamo-nos com cambodjanos entrapados, por aí recém-envolvidos numa trágica confrontação, fruto da deslocalização da sua guerra civil, com mortos e feridos em Paris.
Uma tarde, na universidade de Vincennes, fui ouvir uma aula de Nicos Poulantzas. O seu "Fascismo e ditadura" era então uma "bíblia" laica, muito em voga entre nós. A certa altura, e para minha grande admiração, vejo-o interpelado por uma figura de bigode farfalhudo, que lembrava o "pai dos povos": "Cher Nicos, je suis tout à fait en désaccord avec toi...". Alguém me esclareceu: o interpelante era português e chamava-se Silva Marques. Não o conhecia, mas logo me recordei da famosa "carta aberta" que, anos antes, Silva Marques enviara aos militantes do PCP, demitindo-se, com fragor ideológico, do lugar de principal responsável do partido na margem sul. (Mais tarde, vim a reencontrá-lo como deputado do PSD, nos anos 90). Nessa mesma tarde de Vincennes, depois da aula, fui-lhe apresentado. Na conversa, perguntei-lhe por um amigo, que presumia comum e que sabia estar por Paris. Grave, retorquiu-me: "Você é da PIDE?". Fiquei supreendido com a reação. E indignado. E disse-lho, logo apoiado por quem mo apresentara. Silva Marques, didático, explicou: "Só os provocadores é que costumam perguntar assim por alguém que está na clandestinidade". Fiquei a saber. Mas imaginava lá eu que o meu amigo andava clandestino...
Num outro dia, também em Vincennes, o José Carlos Serras Gago, com quem muito andávamos nesses dias de Paris, começou a afastar-se de nós num corredor, dizendo que ia a ver uma outra aula: "de quem?", já que aquilo parecia uma parada de vedetas da cultura. "Bachelard", foi a resposta. E lá desapareceu, numa esquina. Uáu! O Bachelard! O homem da epistemologia, de quem eu tinha folheado alguns textos, nesse tempo em que julgávamos poder "ir a todas". Mas logo me surgiu a dúvida: o Bachelard ainda seria vivo? Não havia ainda o Google à mão para tirar teimas mas, tinha quase a certeza!, o Bachelard, com a sua patriarcal barba branca, já deixara este mundo há uns anos. O Serras Gago levara-nos, "à certa". Horas depois, à saída, confrontei-o: "Com que então, o Bachelard!? Foste à campa?". O José Carlos, sereno, esclareceu que ele nunca tinha dito que era "o" Bachelard. Ele fora à aula de filosofia de Suzanne Bachelard, filha do filósofo e, também ela, filósofa (morreu em 2007). E, comigo mais calado, partimos, de metro, de volta à Cité universitaire, onde o Zé Carlos pousava na "Maison du Danemark".
Sem surpresas, a política continuava a andar à nossa volta, muito para além da campanha eleitoral. Através do João Fatela e do António Gomes, por indicação do António Massano, fomos uma noite a um apartamento a Colombes, conhecer outros "amigos de amigos". À volta de umas garrafas de vinho, falámos por algumas horas do Portugal distante de que se haviam exilado e de que sentiam evidentes saudades. O tempo dessas pessoas era contado: não havia noitadas, porque começavam a trabalhar de madrugada. Sem que isso desse origem a perguntas, recordo que havia lá por casa pilhas de documentos da LUAR (Liga de União e de Ação Revolucionária), que então tinha Palma Inácio, preso em Portugal, como figura cimeira. Onde estará hoje toda essa gente dessa noite de Colombes?
Foi também assim esse meu mês de Março, em Paris, em 1973. Há 39 anos, quase dia por dia.
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Ramos Horta
O presidente de Timor-Leste, José Ramos Horta, que se candidatava a um novo mandato, foi ontem eliminado, pelo voto popular, da segunda volta das eleições.
Conheci Ramos Horta em 1992, em Londres, apresentado (por quem havia de ser?) por Ana Gomes, desde sempre a "alma" da mobilização diplomática portuguesa em favor da autodeterminação timorense. José Ramos Horta era então o infatigável promotor internacional da causa timorense, tecendo uma importante rede de contactos - junto de diplomatas, de políticos, da imprensa e das ONG's - que foi essencial para manter acesa a chama da luta contra a Indonésia. Jovem ministro dos Negócios Estrangeiros do governo auto-proclamado pela Fretilin, em 1975, exilou-se desde então, voltando a assumir esse cargo no novo governo criado em 2002, sendo, tempos mais parte, nomeado primeiro-ministro e, depois, eleito presidente da nova República.
Já aqui contei como, em 1999, com o bispo Ximenes Belo e com José Ramos-Horta, conseguimos ajudar à condenação da Indonésia na Comissão dos Direitos Humanos, em Genebra, depois dos trágicos acontecimentos posteriores ao referendo em Timor-Leste e já depois do comité Nobel lhe ter atribuído, em Oslo, o prémio Nobel da paz. E também como, meses depois, fui testemunha, em Nova Iorque, do trabalho diplomático de Jorge Sampaio e de Ramos Horta, com vista a consolidar a mudança de atitude da administração Clinton face ao processo timorense, num almoço com Richard Holbrooke.
Tempos mais tarde, quando representei Portugal nas Nações Unidas, tive ocasião de, por várias vezes, conversar longamente, também em Nova Iorque, com José Ramos Horta, e com ele articular, em estreita ligação com Sérgio Vieira de Melo, algumas iniciativas no âmbito da ONU, em especial com vista a manter a atenção da comunidade internacional para a necessidade de preservar a sua presença militar, num Timor-Leste ainda tocado por sérias ameaças à sua segurança. Voltei depois a encontrá-lo em Brasília, em 2008, num simpático almoço, a convite do presidente Lula, já na sua qualidade de presidente timorense.
José Ramos Horta é uma personalidade cuja ação não deixou de ser objeto de alguma controvérsia. Ao longo do complexo processo de luta internacional pela libertação de Timor, nem sempre as posições portuguesas coincidiram, em absoluto, com as suas, não obstante o objetivo final da nossa comum atividade ter permanecido precisamente o mesmo. Parte dos seus amigos ficou também muito desapontada com o apoio público que, em 2003, concedeu à invasão angolo-americana do Iraque.
Mas, tudo somado, quero dizer que sempre mantive uma grande admiração pela figura de José Ramos Horta, pelo seu perfil de patriota e pela coerência global que, ao longo de décadas, sempre demonstrou, na perseverança numa luta justa em que, desde muito cedo, se empenhou. A independência de Timor deve-lhe imenso e a diplomacia portuguesa é disso uma das melhores testemunhas. A sua serena saída de cena, no auge deste novo processo eleitoral, expressa a maturidade do processo democrático pelo qual Ramos Horta sempre lutou.
Aqui deixo um abraço amigo a José Ramos Horta.
domingo, março 18, 2012
Britannica
Durante muitos anos, tive como sonho ser possuidor da famosa Encyclopaedia Britannica. Realizei o sonho na Noruega, onde adquiri, numa intocada "segunda mão", aqueles belos volumes em papel bíblia.
Ano após ano, complementava-os com a aquisição das atualizacoes anuais, uns fantásticos repositórios dos novos textos e do ano anterior, escritos com rigor e sobriedade, como os anglo-saxónicos fazem as coisas, quando as querem fazer bem.
Nos últimos tempos, para além dos problemas de espaço e de alguma desatenção, já havia deixado de comprar esses deliciosos "yearbooks". Mas a Britannica por lá anda, pelas minhas estantes lisboetas.
Leio agora que a Encyclopaedia Britannica vai deixar de se publicar em papel, passando apenas a existir nestas virtuais ondas da net. Não sei se gosto...
sábado, março 17, 2012
Interpretação
Foi numa cidade onde funcionava uma agência das Nações Unidas. Nela se iniciava uma reunião internacional, que demoraria algumas semanas.
A delegação portuguesa tinha vários membros, diplomatas e técnicos, idos de Lisboa, competindo a cada um de nós assegurar a representação nos trabalhos dos diversos comités especializados. Haveria debates e teríamos de neles intervir.
Na tarde do primeiro dia de trabalhos, porque as nossas tarefas se iniciavam mais tarde, eu e outro membro da delegação havíamos decidido passar por um determinado comité, onde um colega nosso, tido como um "barra" na temática em causa, ia iniciar a sua participação. Sentámo-nos atrás dele. A reunião iniciava-se e vimo-lo debruçado sobre o pequeno aparelho que permite escolher a língua em que se pretende ouvir as intervenções dos outros delegados. Nem sempre os aparelhos de interpretação funcionam bem, pelo que não estranhámos o esforço de sintonização que ele fazia. Mas as coisas não deviam estar a correr bem, porque, a certo ponto, se voltou para trás e, vendo-nos confortáveis, a seguir o debate com os nossos auriculares, perguntou: "Qual é o número para se ouvir em português?".
O português não é, pelo menos por ora, língua oficial das Nações Unidas e suas agências. Porque os nossos conhecimentos de árabe, chinês e russo são, em geral, fracos, todos optamos pelo inglês ou pelo francês, tendo o espanhol como alternativa pouco comum. Em poucas palavras, esclarecemos disso o nosso colega. Que logo nos disse, um pouco perturbado: "Não posso continuar aqui. Não vou chefiar a delegação neste comité. Eu não falo nem entendo línguas estrangeiras. Ninguém me disse, em Lisboa, que não se podia intervir e ouvir os debates em português".
A confissão do homem era tocante. Era oriundo de uma profissão técnica e tinha vivido grande parte da vida em África, tendo sido dos quadros do antigo Ministério do Ultramar. Geracionalmente, teria, pelo menos, obrigação de falar francês. Mas, pelos vistos, nem isso. Tinha ido ao engano...
Ao final da tarde, o problema foi colocado, de forma discreta, ao chefe da delegação portuguesa, um embaixador sereno e bem humorado. Sem dramas, logo se fez um rearranjo das delegações e esse técnico ficou a trabalhar com um de nós, que passou a assumir a titularidade do comité.
Durante a conversa em que se procedeu às mudanças, o técnico, funcionário honesto e responsável, ainda retorquiu para o chefe da missão: "Mas não seria melhor eu regressar a Lisboa? É que, de qualquer forma, vou ter dificuldade em acompanhar os debates...".
Foi então que o chefe da delegação, um coimbrão, lhe retorquiu, com um sorriso: "Você não é alentejano? Ora um alentejano, lá no fundo, é já um bocado espanhol, lá com essa coisa de Barrancos que vocês têm... Siga a reunião em espanhol, homem!".
Não me pareceu que o técnico tivesse gostado da graça, mas a fragilidade da sua posição não lhe permitiu uma réplica. E tudo se passou bem, nas semanas seguintes.
sexta-feira, março 16, 2012
Marcas
A singular iniciativa do município de Santa Comba de lançar a "marca Salazar" constitui a prova provada de que estes nossos dias de sobrevida em tempos de "troika", para além de refletirem um estado objetivo de pobreza material do país, revelam a existência de um imenso défice de pobreza de espírito, para a qual nenhum empréstimo de ética ou vergonha está por aí disponível.
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quinta-feira, março 15, 2012
Pois...
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Exclamações
Cônsul
Um cidadão português residente no Brasil, empresário sem anterior passado criminal conhecido, foi indigitado para cônsul honorário de Portugal, numa determinada cidade brasileira. Essa indigitação foi formalizada num despacho oficial, em Portugal. Porém, tal decisão só teria efeitos se e quando as autoridades brasileiras tivessem dado o seu assentimento (concessão do "exequatur") àquela nomeação, passo a partir do qual o referido cidadão poderia vir a exercer as suas funções. Instruído para apresentar às autoridades brasileiras o pedido de autorização, o embaixador português no Brasil entendeu, por razões que cabiam no âmbito das suas competências e que se comportavam no quadro do processo de conclusão da decisão interna portuguesa, suster a conclusão dessa diligência. Alguns meses depois, o referido cidadão foi detido pela polícia, sob pesadas acusações. Hoje, a imprensa anuncia que, na sequência desse processo, ele foi condenado a mais de 40 anos de prisão. Essa imprensa chama-lhe "ex-cônsul português no Brasil". É falso. Esse senhor nunca foi investido de tais funções. Sei do que falo: fui o embaixador que tomou a decisão de não dar sequência ao processo da sua nomeação.
quarta-feira, março 14, 2012
Memória diplomática
Foi um jantar bem agradável, num restaurante à beira-mar, no Pireu. O embaixador português, a pretexto da minha passagem por Atenas, tivera a simpatia de convidar alguns colegas.
A meu lado ficou um embaixador de um país amigo, mas cujo nome agora me escapa, o qual, durante todo o jantar, me falou imenso das ilhas e das praias, dos armadores milionários que conhecia, dos cruzeiros para que era convidado e outros temas com idêntica intensidade lúdica. Estava em Atenas há mais de dois anos, mas a sua vocação para assuntos mais profundos parecia limitada, a julgar pela escassa sequência que dava às questões políticas que eu lhe colocava - como as "guerras" entre o PASOK e a Nova Democracia, a questão da Macedónia, o problema negocial em Chipre ou a dimensão orçamental do esforço militar grego, fruto das tensões com a Turquia.
A certa altura do jantar, levantei-me e, ao passar por uma mesa, pareceu-me vislumbrar nela a figura de Konstatinos Mitsotakis, que havia sido primeiro ministro por mais de três anos, depois de ter assumido vários cargos governamentais. Só o conhecia de fotografia, pelo que fiquei na dúvida se era mesmo ele. Regressado à mesa, referi o facto ao tal embaixador que tinha a meu lado, que logo retorquiu:
- Mistotakis? Quem é?
- Não se lembra? Foi primeiro ministro antes de Andreas Papandreou...
- Não tenho ideia... já não é do meu tempo.
Tive a tentação de lhe responder: "Ora essa! Também a Acrópole não é!". Há gente que devia ter escolhido outra profissão...
terça-feira, março 13, 2012
Comentários políticos
Com a campanha eleitoral francesa a passar por novos e interessantes cambiantes, torna-se cada vez mais importante assistir a análises televisivas elaboradas por especialistas independentes, conhecedores dos temas, e não necessariamente vinculados a qualquer partido político. Jornalistas, politólogos, académicos ou técnicos sectoriais dão-nos a sua leitura dos factos, num contraditório enriquecedor e esclarecedor.
No nosso país, salvo exceções, prevalece uma realidade que, a meu ver, passa quase desapercebida: somos dos raros países em que a comunicação social está permanentemente ocupada por figuras do mundo dos eleitos da política, que diariamente nos debitam, com maior ou menor criatividade, as expectáveis posições das formações partidárias de que dependem.
Em todos os países democráticos em que vivi - como a Noruega, o Reino Unido, os Estados Unidos, a Áustria, o Brasil ou a França - nunca vi nenhum colunista de jornal ou comentador regular de televisão que exercesse, simultaneamente, um cargo parlamentar ou de eleito público. Essas figuras podem ser convidados esporádicos de um programa, mas nunca são debatedores regulares nesses espaços.
Aliás, volto também a lembrar que não recordo, dentre as democracias cujo funcionamento conheço, nenhuma onde os jornais televisivos, a propósito de qualquer tema, sejam obrigados a auscultar a opinião de todos - mas todos - os partidos políticos com assento parlamentar.
Percebo que, após o 25 de abril, tenha sido necessário conferir espaços de prestígio às formações partidárias, que a ditadura havia diabolizado. Mas a verdade é que, com o decorrer dos tempos, parece que caímos no outro extremo e vemos a sociedade mediática refém de regulares "tempos de antena" partidários, que se pretendem fazer passar por formas indispensáveis de expressão democrática.
Para quantos defendem o modelo em vigor em Portugal, de uma coisa podem estar seguros: somos uma espécie rara.
Para quantos defendem o modelo em vigor em Portugal, de uma coisa podem estar seguros: somos uma espécie rara.
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O défice dos futebóis
Este ano, ninguém desce da divisão principal do nosso futebol, a qual, no próximo ano, passa a ter 18 clubes. em lugar dos atuais 16.
Esta foi uma decisão há pouco anunciada pela Liga de Clubes, que tem uma nova direção, recém-eleita, quase que aposto que com os votos dos clubes que agora não descem.
É apenas Portugal no seu melhor!
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domingo, março 11, 2012
Diplomacia democrática
Exatamente há um ano, num contexto político bem diferente do atual, publiquei neste blogue o post "Diplomacia democrática" que agora vou repetir, porque me parece não ter perdido a menor atualidade:
"É nestes tempos em que o nome de
Portugal e da situação político-económica portuguesa anda nas bocas do
mundo que será talvez oportuno recordar as obrigações de uma diplomacia
democrática.
Tenho para mim que uma das menos edificantes e mais indignas atitudes que um diplomata pode assumir, perante interlocutores estrangeiros, é enveredar pela crítica às autoridades do país que representa. Mas, devo dizer, torna-se igualmente triste ouvi-los criticar, em público, as forças da oposição que, com toda a legitimidade democrática, são adversários dos poderes instituídos.
Ambas as atitudes relevam, pura e
simplesmente, de uma grave falta de sentido profissional. O
interlocutor estrangeiro respeita o diplomata que, independentemente das
suas ideias pessoais, sabe assumir uma atitude equilibrada na análise
da situação política interna existente no seu país, que é capaz de
expor, com rigor, equilíbrio e equanimidade, os sucessos ou insucessos
do Estado que lhe cabe representar, que defende com empenhamento os
interesses deste mas não camufla conflitualidades ou dificuldades
existentes no seu mundo político interno, que não edulcora, ao absurdo, o
que de negativo possa existir na sociedade que lhe cabe representar.
Já me confrontei, no meu
percurso profissional, com colegas estrangeiros de todo o tipo. Convivi
com os cegos militantes, para quem os respetivos dirigentes são o máximo
existente à face da terra, os quais, no seu parecer sectário, são
obrigados a sofrer os custos de uma oposição cuja ação quase ilegitimam,
apenas porque esta não cai no seu goto pessoal. Conheci os mal-dizentes
crónicos, que remoem em público, dia-após-dia, críticas ou ironias,
quando as autoridades eleitas não são da sua cor política, acusando-as
de todos os malefícios pátrios, suspirando por uma reviravolta que ponha
os do "outro lado" no poder. Num registo mais corporativo, dei às vezes
de caras com aqueles que acham que a política externa do seu país é
apenas um lamentável desastre, que estão condenados a representar
"malgré eux", atitude muitas vezes mobilizada por ódios acumulados ou
por queixas profissionais.
Assisti a muitas conversas com todo este tipo de gente e - garanto! - sempre pude observar a pena que a sua atitude provoca nos interlocutores, em especial em colegas de países onde a diplomacia democrática se pratica e se vive, com naturalidade e sentido de Estado. Onde esses colegas procuram exibir, de forma mais ou menos espalhafatosa, o que pretendem ser uma hiperfranqueza crítica - face a instituições, forças políticas ou figuras do quadro democrático do seu país -, os estrangeiros que os ouvem apenas nisso vêm deslealdade e ausência de um espírito profissional. Às vezes sorriem, mas, por detrás desse sorriso, está sempre um esgar de desprezo.
A diplomacia democrática é o estado supremo do profissionalismo em matéria de representação externa. Vale a pena recordar isto, nos dias que correm."
Assisti a muitas conversas com todo este tipo de gente e - garanto! - sempre pude observar a pena que a sua atitude provoca nos interlocutores, em especial em colegas de países onde a diplomacia democrática se pratica e se vive, com naturalidade e sentido de Estado. Onde esses colegas procuram exibir, de forma mais ou menos espalhafatosa, o que pretendem ser uma hiperfranqueza crítica - face a instituições, forças políticas ou figuras do quadro democrático do seu país -, os estrangeiros que os ouvem apenas nisso vêm deslealdade e ausência de um espírito profissional. Às vezes sorriem, mas, por detrás desse sorriso, está sempre um esgar de desprezo.
A diplomacia democrática é o estado supremo do profissionalismo em matéria de representação externa. Vale a pena recordar isto, nos dias que correm."
Mário Melo Rocha (1957-2012)
Mário Melo Rocha, que ontem desapareceu, era um dedicado europeísta e um homem de cultura, para além da sua profissão de advogado e especialista em temáticas do ambiente.
Foi através dos temas europeus que nos conhecemos, tendo eu participado em algumas iniciativas que organizou, nomeadamente no âmbito da SEDES e da Universidade Católica, no Porto. Lembro-me, em especial, de um interessante debate que promoveu e em que intervim com a Teresa de Sousa e o José Barros Moura, nos tempos da negociação do Tratado de Amesterdão.
Recordo-o, também, pela sua simpatia pessoal, pelo modo entusiasmado como se dedicava às coisas e às causas. Sai de cena bem cedo.
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sábado, março 10, 2012
11 de Março de 1975
A tensão fora imensa durante todo o dia. Recordo os caças a passar a meio da manhã sobre Belém (que eu via da varanda da Ciesa-NCK, onde eu tinha o meu emprego matinal), as notícias do ataque aéreo e terrestre ao regimento do RALIS, o almoço rápido e pesado na messe do Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, e uma infindável tarde, prenhe de boatos, telefonemas e dúvidas, passada entre a 2ª divisão do EMGFA, no palácio da Ajuda, e o então Instituto de Sociologia Militar, na calçada das Necessidades.
Era o dia 11 de Março de 1975. Spínola havia provocado a revolta contra o MFA em Tancos, mandara avançar forças sobre Lisboa, convencido que poderia conseguir um levantamento de outras unidades, descontentes com a progressão radical da revolução. A tensão político-militar tinha atingido o seu ponto extremo e culminaria com a patética rendição dos pára-quedistas em frente ao RALIS, com a fuga de Spínola para Espanha, a prenunciar que muita coisa poderia mudar a partir de então. Não sabíamos, porém, o quê e como.
A tarde acabou e eu regressei a casa, a ouvir a rádio e a ver, pela enésima vez, as imagens da televisão. Por um pressentimento de que algo iria passar-se ainda nesse dia, voltei ao Instituto de Sociologia Militar, depois de jantar. Começaram a aparecer por lá alguns milicianos do Exército, como eu e o Agostinho Roseta, militares da Marinha, gente vinda do RALIS, estes últimos a descrever com emoção os eventos da manhã. E apareceram algumas figuras gradas do MFA, próximas do PCP, como Ramiro Correia e Dinis de Almeida.
A tarde acabou e eu regressei a casa, a ouvir a rádio e a ver, pela enésima vez, as imagens da televisão. Por um pressentimento de que algo iria passar-se ainda nesse dia, voltei ao Instituto de Sociologia Militar, depois de jantar. Começaram a aparecer por lá alguns milicianos do Exército, como eu e o Agostinho Roseta, militares da Marinha, gente vinda do RALIS, estes últimos a descrever com emoção os eventos da manhã. E apareceram algumas figuras gradas do MFA, próximas do PCP, como Ramiro Correia e Dinis de Almeida.
De repente, como que por acaso, começou a consensualizar-se uma onda de revolta pelo facto do “Conselho dos Vinte”, que funcionava como órgão militar máximo desde a extinção da Junta de Salvação Nacional, estar “placidamente reunido nos tapetes de Belém”, como alguém disse. Aparentemente, ao que nos chegava, o Conselho estaria apenas disposto a reflectir sobre a crise, sem cuidar de afastar ou punir alguns culpados óbvios, senão por acção, pelo menos por indesculpável omissão ou complacência com os “conspiradores spinolistas”, como o nosso radicalismo simplificava os revoltosos do dia.
Para muitos dos exaltados presentes, a lista dos responsáveis já era longa, desde os serviços de informação militar até certas figuras da hierarquia militar e à "reaccionária" direcção da televisão, o que significava, para alguns, querer atingir Ramalho Eanes, o general que, meses mais tarde, seria o comandante operacional do contra-golpe de 25 de Novembro de 1975.
Aí pelas 11 horas da noite, forma-se, no seio do "pessoal" que discutia a situação, uma ideia imparável: ir a Belém, interromper o “Conselho dos Vinte” e exigir uma reunião extraordinária da Assembleia do MFA, para essa mesma noite.
Dito e feito. Aí avançámos nós rumo à Presidência da República. Entrei ao volante do meu carro pelo pátio das Damas, à Ajuda, sem nenhum impedimento dos polícias do portão, amedrontados pelo aparato da fila de viaturas. A meu lado ia o Agostinho Roseta, dois desconhecidos oficiais da Marinha de boleia no banco de trás, a quem, estranhamente, não arrancámos grandes palavras em todo o trajeto.
Depois, foi o povoléu de roldão pelos corredores, qual entrada no Palácio de Inverno, com escadas que notei que desciam e subiam de seguida, até que entrámos numa sala, onde demos de cara com o almirante Rosa Coutinho. O Conselho devia estar interrompido e o almirante, com o seu sorriso largo, olhando o nosso tom decidido e grave, lançou, divertido: “Até parece que vêm fazer um golpe de Estado!”.
Foi então que se ouviu uma voz, saída de uma cadeira à esquerda da porta por onde entráramos, e em quem não havíamos ainda reparado: “Eu não lhe dizia, meu almirante, que a rapaziada acabava por aparecer por cá?!”. Era uma figura muito conhecida do MFA, desde sempre muito ligadao ao PCP.
Nesse instante, olhei para o Agostinho Roseta e ambos concluímos, em silêncio, estarmos a fazer o papel de “inocentes úteis” numa manobra muito bem urdida pelo "partido" e pela “esquerda militar” que lhe era afeta.
Depois, as coisas precipitaram-se. Saímos para uma sala maior, os membros do Conselho acabaram por se juntar à tropa "amotinada" que nós éramos, houve uma dura troca de palavras durante um quarto de hora, com Vasco Lourenço a tentar ser a força moderadora do lado dos conselheiros, tendo o presidente Costa Gomes acedido, finalmente, à realização da Assembleia – esse areópago de cerca de 240 militares que era uma espécie de parlamento da revolução.
Meia hora mais tarde, perante o entusiasmo de muitos e o visível incómodo de alguns, estávamos a reunir, de volta à calçada das Necessidades, aquela que ficou conhecida como a “assembleia selvagem” de 11 de Março, uma Assembleia do MFA convocada em termos mais do que duvidosos e com uma composição mais do que nunca “ad hoc” – de que a melhor prova era a minha própria presença, que dela não fazia parte formal, embora, noutra qualidade, tivesse estado presente em reuniões anteriores, o que voltaria a repetir-se até julho.
Aquela foi a noite dos confrontos verbais extremos, de um apelo pateta e isolado a fuzilamentos de “traidores”, de uma imensidão de intervenções dramáticas, em que até eu não deixei de meter a minha breve colherada oratória.
Às sete da manhã, estava a tomar pequeno almoço com o José Rebelo, então correspondente do “Le Monde”, sedento de notícias, numa leitaria ao Saldanha.
O dia correu numa imensa agitação e, na noite desse já 12 de Março, ajudei a votar, numa assembleia do Exército, os nomes para o Conselho da Revolução, que a reunião “selvagem” da véspera criara. A minha legitimidade para participar nesse exercício era mais do que duvidosa, mas os tempos eram o que eram.
Antes, porém, num intervalo, fui procurado pela mesma figura que na véspera encontrara em Belém, a qual, a pretexto de felicitar-me por uma intervenção feita momentos antes, me deu a ler, para consideração e eventual apoio, uma proposta com nomes para figurarem como representantes do Exército naquele novo Conselho. O nome do próprio constava da lista.
Olhei para ele, “escaldado” pela cena de Belém, e retorqui apenas: “Não acha essa lista demasiado óbvia?”. Voltou-me as costas. Eu podia continuar a ser inocente, mas havia coisas para as quais já não me prestava a ser útil.
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sexta-feira, março 09, 2012
Mistérios
Começo a converter-me às imensas vantagens de, daqui por uns tempos, regressar definitivamente a Portugal. Com efeito, dou por mim a pensar que só se pode compreender o país quando nele se vive no dia-a-dia. Para quem habita fora, há coisas muito difíceis de entender.
Exemplos? Ver Marcelo Rebelo de Sousa apresentar um livro de Francisco Louçã ou Jorge Braga de Macedo a fazer o elogio público de Paul Krugman.
Vai ser muito divertido ver estas coisas mais de perto.
Vai ser muito divertido ver estas coisas mais de perto.
quinta-feira, março 08, 2012
Grande Eça!
Aqui está a nova placa que, daqui a alguns dias, vai ser colocada na casa onde, em Paris, morreu Eça de Queirós. A anterior, que estava muito deteriorada e era irrecuperável, havia sido inaugurada em 14 de Setembro de 1950, pelo embaixador de Portugal em França, Marcello Mathias (ver aqui). Optámos por reproduzir com exatidão do modelo anterior.
Creio que todos os queirosianos devem ficar satisfeitos com esta notícia. Oportunamente, vamos organizar, no local, uma pequena cerimónia, para celebrar a recuperação deste memorial do grande escritor.
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quarta-feira, março 07, 2012
Patrimónios
O que se aprende com uma nova afetação profissional!
Esta semana, passo alguns dias, em Portugal, em reuniões e contactos destinados a inventariar o argumentário português na defesa da qualidade de Património Mundial do Douro Vinhateiro, em face da construção de uma barragem no Tua, a preparar um projeto de candidatura de Portugal à inclusão na "dieta mediterrânica" e a atentar nos argumentos dos proponentes de classificação análoga do Cante Alentejano.
Uma das riquezas do mundo da diplomacia é a possibilidade de trabalhar uma diversidade de temáticas que podem ser utilizadas para sublinhar, no exterior, os interesses que o país entende dever proteger para alicerçar o seu prestígio.
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terça-feira, março 06, 2012
Conversa (2)
Uma cidadã brasileira comprava uma "raspadinha", à hora de almoço, numa tabacaria de Lisboa. Não percebi bem a propósito de quê, disse para a vendedora:
- Eu sou corintiana, estou habituada a sofrer.
Para logo acrescentar:
- Por isso, cá em Portugal, sou pelo Sporting.
Ah! valente!
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segunda-feira, março 05, 2012
Conversa
Conversa ouvida, na manhã de hoje, num multibanco de Vila Real:
- Então, estás a levantar paínço?
- Não, pá! Estou a pagar o IMI.
- E que tal? Foi uma conta calada?
- Foi. Gasparam-me mais de 300 euros.
Chegado a casa, esmagado pela minha ignorância lexical, fui logo ao dicionário. Nada! Razão tem o Dr. Graça Moura: não há um vocabulário atualizado da língua portuguesa, que conte já com a imparável criatividade lusitana, nestes tempos de troika.
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domingo, março 04, 2012
Bordéis
Admito que para alguns possa soar a sintoma de modernidade, pode até ser que a segurança física das prostitutas (e dos prostitutos, presumo) saia mais protegida com a sua instalação em residências próprias legalmente protegidas, que a comodidade dos utentes possa vir a corresponder aos eventuais níveis de exigência a Deco venha a estabelecer, pode ser o que quiserem que seja, mas a mim, até prova em contrário, parece-me relevar de um imenso reacionarismo social a hipótese de legalização dos bordéis.
E não venham, de forma saloia, com exemplos "do estrangeiro" como argumento, está bem?
sábado, março 03, 2012
sexta-feira, março 02, 2012
Manuel Sá Machado
Na história do Ministério dos Negócios Estrangeiros português há um nome, pouco conhecido pelas atuais geração, a quem a carreira diplomática muito ficou a dever: Manuel Sá Machado. Ontem à noite, uma amiga estrangeira falou-me dele, com grande admiração.
Manuel Sá Machado estava a trabalhar no MNE, na secção do "Pacto do Atlântico", na altura do 25 de abril. Homem de conhecido perfil democrático, tinha travado conhecimento com o oposicionista Victor da Cunha Rego, ao tempo em que servira como diplomata no Brasil. Cunha Rego acabara de ser escolhido por Mário Soares, logo em Maio de 1974, para seu chefe de gabinete nas Necessidades. E, com naturalidade, chamou Sá Machado para trabalhar junto de si.
Como relata o embaixador Calvet de Magalhães no seu trabalho "O 25 de abril e as Necessidades", Manuel Sá Machado era "um funcionário excecional. Além das suas invulgares qualidades era uma pessoa de um enorme bom-senso, trato cordial e raras qualidades de caráter. O Dr. Cunha Rego indicou-o ao Dr. Mário Soares como a pessoa idónea para o informar sobre tudo o que respeitava ao ministério e aos seus funcionários".
Em vários livros e conversas, Mário Soares já revelou que a imagem que, até ao 25 de abril, criara do MNE e, na generalidade, da carreira diplomática portuguesa, não era muito lisonjeira. Porque a diplomacia aparecia ligada à primeira linha da ação internacional de defesa da política colonial do regime e porque também se suspeitava que a polícia política utilizava certas redes diplomáticas e consulares para espiar democratas no exílio, era perfeitamente natural que o MNE surgisse, aos olhos dos opositores do regime, como um núcleo funcional merecedor de muito escassa confiança. Em vários setores políticos do novo poder cedo surgiu a ideia de proceder a uma ampla "vassourada", que afastasse um grande número de diplomatas e, em sua substituição ou para um seu eficaz enquadramento, garantisse o rápido recrutamento de uma nova classe "diplomatas da democracia", oriunda dos meios políticos vitoriosos.
Ora foi precisamente a credibilização da carreira, ou melhor, a certificação do profissionalismo da grande maioria dos diplomatas portugueses, a tarefa de que se encarregou Manuel Sá Machado. Este nosso colega terá conseguido explicar a Mário Soares que, com algumas exceções, tinha ao seu dispor, para conduzir a política externa, um corpo dedicado e qualificado de funcionários de grande lealdade à causa pública, com sólida experiência, perfeitamente preparados para sustentarem o novo tempo internacional que se abria à diplomacia portuguesa. Mário Soares acreditou em Sá Machado e a carreira soube corresponder a essa confiança.
Nunca conheci pessoalmente Manuel Sá Machado, embora talvez o possa ter cruzado nos corredores do MNE, antes da sua prematura morte, creio que em 1977. Mas a conversa que ontem tive lembrou-me o dever de deixar aqui uma nota de admiração e de gratidão pela ação desse colega, que ajudou a que a carreira diplomática portuguesa não tivesse de passar por desnecessários tempos traumáticos. E, mais importante que tudo, que a diplomacia portuguesa pudesse preservar, para além dos ciclos políticos, o seu perfil de serviço público, competente e leal.
quinta-feira, março 01, 2012
Diplomacias
"Having said that..." - já me tinha esquecido da fórmula anglo-saxónica através da qual, depois de se terem elencado, de forma habilmente fragilizante mas com um ar de quem os subscreve, todos os argumentos num determinado sentido, se parte para a sustentação da posição contrária. Sorri ao ouvi-la, hoje de manhã, na minha primeira reunião formal na UNESCO, durante a qual revisitei as velhas práticas onusinas.
A reunião foi muito bem dirigida por uma colega embaixadora, que defrontou, com sabedoria, algumas sérias dificuldades políticas, conseguindo garantir um bom ritmo aos trabalhos.
Um presidente de reunião tem de saber identificar, com precisão, os pontos potencialmente conflituais e tem de desenhar uma tática específica para ultrapassar essas dificuldades, eventualmente gizando prévias cumplicidades com certos delegados. É um exercício difícil, que combina a autoridade com a habilidade. Quando um presidente é demasiado autoritário irrita "a sala" e pode provocar intervenções que vêm complicar o debate, tornando muito difícil a sua gestão posterior. Pelo contrário, um presidente "banana", que dê a palavra a toda a gente e não procure definir limites temporais para a abordagem de temas, é pressentido como permissivo e, se acaso cair na armadilha de permitir que os "chatos" e os prolixos se excedam, abre precedentes que depois não pode reverter. Mas o pior presidente é aquele que "a sala" identifica como alguém que está a tentar enganá-la, que procura utilizar estratégias regimentais para coartar direitos, para iludir determinadas questões ou menorizar certas temáticas ou delegações. A verdadeira chave de sucesso de uma presidência é a criação de um sentimento de respeito em torno de si própria.
Tenho uma muito longa experiência de chefia de reuniões, desde assembleias gerais de associações de estudantes até conselhos de ministros da União Europeia, passando por comissões, com multidões de delegados, na ONU e na OSCE. E ainda hoje assim me aturam, no Conselho geral da UTAD. Em todas essas funções, sem exceção, cometi erros, mas aprendi muito com eles. Por azelhice (mas também por tática), deixei, por vezes, arrastar situações até a um ponto de pré-caos mas, noutros casos, consegui dar a volta ao que parecia (ou que queria deixar parecer) impossível de controlar.
Nestes últimos, conto como "glórias" o "comité de ministros" de Schengen, em Junho de 1997, no CCB, e o "conselho permanente" final da nossa presidência da OSCE, em Dezembro de 2002, na Alfândega do Porto. Em ambos as situações, a minha "habilidade" para forçar compromissos baseou-se na... alimentação. Nas duas reuniões, com temas muito delicados e posições, à partida, bem distantes, só consegui fazer vingar as propostas portuguesas (que se iam sucedendo com fórmulas diferentes, na busca de um consenso) através do prolongamento do debate. Em ambos os casos, reuniões que decorriam desde manhã acabaram por arrastar-se, por deliberada "perfídia" da presidência, até cerca das 4 da tarde, com as delegações exaustas, quase já dispostas a tudo, ansiando pelo almoço que tardava, e que eu, sadicamente, mencionava "en passant", nas minhas intervenções, como estando à nossa espera. Os vários colegas portuguesas que me acompanharam nessas maratonas devem lembrar-se bem dessa minha tática - dessa diplomacia lusa da fome.
Nestes últimos, conto como "glórias" o "comité de ministros" de Schengen, em Junho de 1997, no CCB, e o "conselho permanente" final da nossa presidência da OSCE, em Dezembro de 2002, na Alfândega do Porto. Em ambos as situações, a minha "habilidade" para forçar compromissos baseou-se na... alimentação. Nas duas reuniões, com temas muito delicados e posições, à partida, bem distantes, só consegui fazer vingar as propostas portuguesas (que se iam sucedendo com fórmulas diferentes, na busca de um consenso) através do prolongamento do debate. Em ambos os casos, reuniões que decorriam desde manhã acabaram por arrastar-se, por deliberada "perfídia" da presidência, até cerca das 4 da tarde, com as delegações exaustas, quase já dispostas a tudo, ansiando pelo almoço que tardava, e que eu, sadicamente, mencionava "en passant", nas minhas intervenções, como estando à nossa espera. Os vários colegas portuguesas que me acompanharam nessas maratonas devem lembrar-se bem dessa minha tática - dessa diplomacia lusa da fome.
quarta-feira, fevereiro 29, 2012
Lóbi
Ontem, um comentador protestou contra a utilização do termo lóbi, para designar o "hall" de um hotel. Confesso que estava mais à espera de uma reação quanto ao aportuguesamento da palavra "lobby", mas tudo bem. E é a propósito de um lóbi de hotel que me lembrei de uma historieta.
Estávamos na Zâmbia, a meio de uma longa viagem governamental por vários países africanos. Não faço ideia a quem, naquele caso, competia a responsabilidade pelas reservas, mas a verdade é que, chegados bastante cedo ao Hotel Intercontinental de Lusaka, idos de Harare, naquele final dos anos 80, nos demos conta de que faltavam dois quartos para a delegação portuguesa. Arrumados os membros da delegação mais afortunados, eu e o Duarte Ivo Cruz constatámos que, para nós, não havia quartos. Ou melhor: havia uma vaga promessa de poderem "aparecer". Para utilizar uma expressão que o então chefe da delegação portuguesa viria, décadas depois, a tornar popular noutro contexto, nós podíamos dizer que sabíamos que íamos ter um quarto, só não sabíamos é quando e em que condições!
A visita oficial comportava, entretanto, alguns "números", entre os quais uma visita ao presidente Kenneth Kaunda, bem como reuniões e uma multiplicidade de contactos. Intercalando tais eventos, havia passagens pelo hotel onde a delegação se acolhia. A delegação, não! A maioria da delegação! Porque eu e o Duarte continuávamos com as nossas malas recolhidas em quartos alheios e, nesses intervalos, contactávamos, com progressivo desespero, a receção ou a direção do hotel, metíamos "cunhas" através de empresários locais e da nossa embaixada, sempre em diligências cada vez mais ansiosas, porque a noite se ia aproximando. E, perante o olhar descansado (e demasiado sorridente, parecia-nos) dos nossos colegas, que se regalavam com bebidas no bar e conversavam entre si relaxados, nós os dois andávamos, de um lado para o outro, labutando verbalmente por uma cama onde descansar a noite.
O jantar oficial nem nos caiu bem, porque, acabado este, lá voltámos nós, ansiosos, ao lóbi do hotel. E seria já depois das 11 da noite que, numa taquicardia angustiada, finalmente, recebemos as chaves dos nossos quartos, para logo constatarmos, com forte choque, que deles haviam sido literalmente "despejadas" duas famílias africanas, com filhos, que foram dormir sabe-se lá para onde. Mas, àquela hora da noite, o nosso limiar de solidariedade estava já ultrapassado pela lei da sobrevivência.
Foi nessa altura, culminadas que haviam sido as dezenas de diligências feitas, junto de imensos interlocutores, que o Duarte Ivo Cruz, que comigo brindava o mútuo "sucesso" com um merecido whisky, se saiu com uma frase que recordo até hoje: "Só agora percebi, verdadeiramente, por que razão a esta área dos hotéis se chama "lóbi". Foi isso mesmo que andámos o dia inteiro a fazer..."
terça-feira, fevereiro 28, 2012
Códigos
Há quase três décadas, no lóbi de um hotel estrangeiro, assisti a uma conversa, em que participou um então responsável político português, cujo tom me marcou para sempre. A discussão centrava-se nas políticas do futuro Banco Central Europeu e, muito em particular, nos termos de referência que essa nova instituição deveria seguir, com vista a assegurar o objetivo central da sua ação - a estabilidade dos preços.
Essa figura, homem que, aliás, prestou assinaláveis serviços ao país, afirmava, com toda a serenidade e certeza, que a nova instituição deveria limitar-se a seguir uma espécie de "breviário" técnico, independente de quaisquer juízos pessoais de valor, à luz da "sabedoria" acumulada pela doutrina económica, ao longo de décadas: "Perante uma evolução no sentido X, deve proceder-se a uma correção na direção Y. Mais nada!". E deu, como exemplo similar, os códigos jurídicos que, para uma determinado comportamento, estipulam uma certa pena.
Sou sempre muito cético perante este tipo de "sapiência" e automatismo. A assim ser, um destes dias colocamos um computador a tomar decisões e vamos todos para a praia... A história tem, quase sempre, muito maior imaginação do que os homens - como se vê bem pelo destino caricato das previsões económicas, a médio e longo prazo. Por isso, nessa noite, guardei modestamente as minhas reticências, mas "fiquei cá na minha".
Porque é que falo disto hoje? Porque acabo de ler, com algum cuidado, as observações da troika ao comportamento da economia portuguesa, que hoje vive sujeita aos seus particulares métodos de cura e que bebe, com ânsia e impaciência, a "nota" das "frequências" a que está sujeita, antes de estipendiar, para nosso cíclico alívio, a paternal "mesada" trimestral. E dei comigo a pensar que parece subsistir naquelas instituições, bem como nos técnicos que coreograficamente as representam, uma matriz de receituário que, na metodologia, não se afasta muito da observância de "códigos" similares àqueles de que nos falava aquele nosso político.
Embora nada disto seja especialmente novo, e sei lá bem porquê!, acho que hoje não vou dormir muito descansado.
Embora nada disto seja especialmente novo, e sei lá bem porquê!, acho que hoje não vou dormir muito descansado.
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Limites
Eram os primeiros meses de 1976. "Desterrado" pelo MNE no então "Ministério da Cooperação" (de cuja existência poucos se lembrarão), no edifício em que hoje funciona o Ministério da Defesa, tinham vindo almoçar comigo, num restaurante à zona do Restelo, dois colegas das Necessidades, tal como eu recém-entrados na carreira. Acompanhava-nos à mesa um outro amigo com quem eu trabalhava e que lhes havia apresentado na ocasião, oriundo de uma área técnica.
A certo passo, um dos colegas vindos do MNE mencionou que estava colocado na então "Comissão Internacional de Limites com Espanha", estrutura que se ocupava das temáticas de fronteira. Ironizámos em como deveriam ser "fascinantes" alguns temas com que lidava nesse serviço, de que era exemplo notório a escaldante questão do regime de utilização dos mouchões aluviais. Mas o meu amigo técnico, para grande surpresa de todos, deu estranha nota de estar interessadíssimo na temática, fazendo imensas perguntas ao meu colega.
Devo dizer que, a certo ponto, comecei a ficar com a sensação de que, na realidade, ele estava apenas a "fazer a folha" ao jovem diplomata, tais eram as atenções, de uma quase afetividade, que lhe ia dirigindo. Achei divertida a cena e, confesso, acabado que foi o almoço, mais curioso fiquei quando vi os dois a trocar cartões e a combinarem contactos futuros. "Caramba, foi tiro e queda!", pensei, então já surpreendido com a minha naïveté, à qual tinha escapado a aparente propensão mútua para aquele tipo de afinidades eletivas.
Passaram-se umas semanas e, ao cruzar-me no MNE com o meu colega diplomata, não resisti: "Então, voltaste a encontrar aquele amigo que te apresentei há tempos?". Com a maior naturalidade, o meu colega respondeu: "Sim, sim! Almoçámos, há dias. É muito simpático" e, talvez detetando um brilho de discreta ironia no meu olhar, adiantou: "Sabes o que ele queria?". Nem me deixou no embaraço de presumir e, com um largo sorriso, logo esclareceu: "Queria que eu me inscrevesse na Liga dos Amigos de Olivença, de que é diretor. Como eu estou na "Comissão de Limites", achou que, um dia, eu poderia "dar um jeito", sabe-se lá!...". Rimo-nos a bom rir. Afinal, eram apenas essas a afinidades que andavam no ar.
Lembrei-me disto a propósito da encenação da "Guerra das Laranjas", em Olivença, tema que agora deu para mobilizar alguns amigos meus, algo agitados no seu pousio.
segunda-feira, fevereiro 27, 2012
Jornalismo
"Árvore caiu sobre automóvel que circulava perto de Mafra há um ano" - este elucidativo exemplo, de fino recorte estilístico, fazia parte, há minutos, do texto de uma notícia da SIC.
Anda por aí muita gente preocupada com as consequência da entrada em vigor do novo Acordo Ortográfico. Não os vejo, contudo, tão pressurosos em denunciar a iliteracia de quantos, com calinadas deste jaez, põem em perigo a salubridade da escrita pública.
Aproximamo-nos a passos largos dos tempos, recordados pelo João Paulo Guerra, num almoço que há meses tivémos com Baptista-Bastos, em que um inspirado plumitivo escrevia: "Era meia noite e, no entanto, chovia..."
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domingo, fevereiro 26, 2012
"Football"
Há muitos anos, na nossa rádio, havia a "Tarde desportiva" da Emissora Nacional. Era anunciada com esta célebre marcha de John Philip Sousa e abria umas horas de "relatos", feitos por fantásticos locutores, por cujas descrições éramos forçados a imaginar, sem direito a "replay", se, afinal, tinha sido ou não penalty no 28 de maio, em Vidal Pinheiro ou no Alfredo da Silva. Não sei como andam os relatos futebolísticos, mas imagino que a televisão os tenha desqualificado.
Ontem, fiz uma "tarde desportiva" um pouco menos típica, mas nem por isso menos clássica. Nada como uma gripe para umas boas horas de futebol televisivo, esse saudável desporto de bancada almofadada. E, claro!, que melhor do que excelente futebol britânico para alegrar quem gosta do espetáculo? Um "darjeeling", trazido há dias do londrino Brown's, substituiu a "pint" de cerveja que o momento impunha, mas que a terapia não aconselhava.
Pude assim assistir, em paralelo, ao golpe de asa do "velho" Ryan Giggs, que segurou o Manchester United de sir Alex na perseguição citadina ao City, bem como à ampla vitória de um Arsenal do historicamente "tremido" Arsène Wenger, já fora do título, perante um Tottenham sem chama. Ao apreciar este clássico "North London derby", lembrei-me das minhas errâncias pelos estádios da capital britânica, nos anos 90. "Hooligans" à parte, respirava-se já então por ali, como em nenhum outro lugar, o fascínio do mais belo espetáculo desportivo do mundo.
Em miúdo, ouvia falar de Wembley com o pico do Everest futebolístico. A vida deu-me o feliz ensejo de por lá assistir a algumas "cup finals", no tempo em que a cobertura do estádio era ainda sustentada por colunas, que chegavam a tapar a vista. Por lá assisti à lesão que foi o princípio do fim trágico de Paul Gascoigne. O velho Wembley já se foi, mas o seu lugar de "catedral" imbatível não se perdeu.
Perto da minha casa, fui duas ou três vezes a Stamford Bridge, esse estádio que mais tarde se "aportuguesou" com Mourinho e os jogadores que ele consigo levou para o Chelsea. Pena agora por lá o "special two", Villas Boas, que ontem adiou contra o Bolton a saída que o Abramovich lhe deverá fazer em breve pelo portão da Fulham Road.
Vi outros "portugais" por relvados de Londres. Tive o prazer de assistir à vitória do Benfica, em Highbury Park, sobre o Arsenal - o meu clube londrino. Estava-se nos anos gloriosos de George Graham e, se alguém pretender saber o que ser fã dos "gunners" significa, leia o delicioso "Fever Pitch" de Nick Hornby. Também em White Hart Lane, numa noite triste de 1992, assisti o Porto perder contra o Tottenham, por 3-1, para a Taça das Taças.
E, "last but not the least", devo dizer que foi com algum orgulho que, ao lado do então líder trabalhista britânico John Smith, ao tempo em que eu chefiava interinamente a nossa embaixada, dei o pontapé de saída formal no jogo amigável em que o Sporting bateu por 2-1 o Millwall, em agosto de 1993, nas inauguração do seu novo "The Den".
Tenho saudades, confesso, de voltar a um jogo ao vivo num estádio londrino, no meio daqueles cânticos que, não sendo de fraternidade, nos remetem para uma Inglaterra de outro tempo. A mesma, afinal, onde nasceu o "football".
Em tempo: a minha tarde terminou a ver o Sporting a ganhar ao Rio Ave. Sou um " leão" atípico: ainda hesitei entre a forte vontade de ver Sá Pinto perder o lugar, tão cedo quanto isso for possível, e o salvar do que resta da época. Mas, claro, gostei do resultado. Convençam-se, porém, os sportinguistas: há vitórias que nos vão sair caras...
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