segunda-feira, março 19, 2012

Paris, março de 1973

Naquele mês de março de 1973, vim a Paris, por cerca de uma quinzena de dias, para "ver" as eleições legislativas desse ano. Eu entrava no serviço militar obrigatório no final desse mês, por um período de tempo que poderia vir a ser superior a três anos, pelo que havia decidido oferecer a mim mesmo umas curtas "férias políticas", tiradas no banco onde então trabalhava.

Paris fervilhava. A "rive gauche" aparecia, a essa nossa geração lusitana de então, como o centro de um mundo do futuro, do qual a ida para a "tropa" nos iria afastar, por muito tempo. O dinheiro disponível era escasso, os livros eram a nossa principal perdição, com a "Joie de Lire", a que sempre chamávamos "a Maspero", a surgir como a principal "meca", embora, para um familiar maoísta que me acompanhava, o destino de eleição fosse então a livraria Fenix, no boulevard Sebastopol (que hoje ainda existe, contrariamente à primeira). Para além dos comícios políticos, na "Mutualité" e em certos teatros de bairro, ia-se obsessivamente (e quase por "obrigação" cultural) a algum cinema que não passava em Portugal, frequentava-se espetáculos musicais ou teatrais gratuitos, comprava-se o "Le Monde" como uma espécie de ritual vespertino, ia-se pelas universidades onde tínhamos amigos como estudantes. Verdade seja que, para além da muita conversa e do flanar, pouco mais se fazia, mas, por algum mistério, os dias estavam sempre bem cheios.  

Na Cité Universitaire, por onde dormi uns dias na "Maison de Norvège", graças ao Joaquim Pais de Brito, cruzavamo-nos com cambodjanos entrapados, por aí recém-envolvidos numa trágica confrontação, fruto da deslocalização da sua guerra civil, com mortos e feridos em Paris.

Uma tarde, na universidade de Vincennes, fui ouvir uma aula de Nicos Poulantzas. O seu "Fascismo e ditadura" era então uma "bíblia" laica, muito em voga entre nós. A certa altura, e para minha grande admiração, vejo-o interpelado por uma figura de bigode farfalhudo, que lembrava o "pai dos povos": "Cher Nicos, je suis tout à fait en désaccord avec toi...". Alguém me esclareceu: o interpelante era português e chamava-se Silva Marques. Não o conhecia, mas logo me recordei da famosa "carta aberta" que, anos antes, Silva Marques enviara aos militantes do PCP, demitindo-se, com fragor ideológico, do lugar de principal responsável do partido na margem sul. (Mais tarde, vim a reencontrá-lo como deputado do PSD, nos anos 90). Nessa mesma tarde de Vincennes, depois da aula, fui-lhe apresentado. Na conversa, perguntei-lhe por um amigo, que presumia comum e que sabia estar por Paris. Grave, retorquiu-me: "Você é da PIDE?". Fiquei supreendido com a reação. E indignado. E disse-lho, logo apoiado por quem mo apresentara. Silva Marques, didático, explicou: "Só os provocadores é que costumam perguntar assim por alguém que está na clandestinidade". Fiquei a saber. Mas imaginava lá eu que o meu amigo andava clandestino...

Num outro dia, também em Vincennes, o José Carlos Serras Gago, com quem muito andávamos nesses dias de Paris, começou a afastar-se de nós num corredor, dizendo que ia a ver uma outra aula: "de quem?", já que aquilo parecia uma parada de vedetas da cultura. "Bachelard", foi a resposta. E lá desapareceu, numa esquina. Uáu! O Bachelard! O homem da epistemologia, de quem eu tinha folheado alguns textos, nesse tempo em que julgávamos poder "ir a todas". Mas logo me surgiu a dúvida: o Bachelard ainda seria vivo? Não havia ainda o Google à mão para tirar teimas mas, tinha quase a certeza!, o Bachelard, com a sua patriarcal barba branca, já deixara este mundo há uns anos. O Serras Gago levara-nos, "à certa". Horas depois, à saída, confrontei-o: "Com que então, o Bachelard!? Foste à campa?". O José Carlos, sereno, esclareceu que ele nunca tinha dito que era "o" Bachelard. Ele fora à aula de filosofia de Suzanne Bachelard, filha do filósofo e, também ela, filósofa (morreu em 2007). E, comigo mais calado, partimos, de metro, de volta à Cité universitaire, onde o Zé Carlos pousava na "Maison du Danemark".

Sem surpresas, a política continuava a andar à nossa volta, muito para além da campanha eleitoral. Através do João Fatela e do António Gomes, por indicação do António Massano, fomos uma noite a um apartamento a Colombes, conhecer outros "amigos de amigos". À volta de umas garrafas de vinho, falámos por algumas horas do Portugal distante de que se haviam exilado e de que sentiam evidentes saudades. O tempo dessas pessoas era contado: não havia noitadas, porque começavam a trabalhar de madrugada. Sem que isso desse origem a perguntas, recordo que havia lá por casa pilhas de documentos da LUAR (Liga de União e de Ação Revolucionária), que então tinha Palma Inácio, preso em Portugal, como figura cimeira. Onde estará hoje toda essa gente dessa noite de Colombes? 

Foi também assim esse meu mês de Março, em Paris, em 1973. Há 39 anos, quase dia por dia.

10 comentários:

Anónimo disse...

Texto realista de vivencias atribuladas no seio dos militantes portugueses aqui refugiados antes de Abril. Ainda rebusquei na fotografia que o ilustra porque quase me reconhecia guedelhudo no grupo.
Do Silva Marques ainda me ecoam nos ouvidos alguns sons dele, em reuniões associativas, por exemplo na "luta" pelo controlo do "jornal do Emigrante", editado pela Liga, com suas intervenções empolgantes a quererer transformar Portugal e o mundo.
Surpreendeu-me, depois, em Democracia, ver o mesmo Silva Marques no PPD. Até pensei que se trataria de outro Silva Marques...
Mas quando vi outras debandadas naquela direção atirei com o Marx, com o Engels, com todos os Zetungs ou Zedongs para um canto inacessivel das prateleiras e fui buscar reconforto na frase do Almada Negreiros: "Quando eu nasci, todos os tratados que visavam salvar o mundo já estavam escritos. Faltava apenas uma coisa: salvar o mundo". 
Pronto, leio Almada e fico à espera!
José Barros
  
  

 

Anónimo disse...

A maioria deles achava que anarquismo era uma coisa má, de utopia não passará de facto. De politica só sabiam as cores e palavras-chave. De balanças não conheciam os pesos de contra-medida, é que de fiel só conheciam o bacalhau.

patricio branco disse...

como londres era (tambem) bonito, livre e fascinante nesses anos. quando em 1969 vi a policia inglesa a mandar parar os carros para deixar passar e ajudar uma enorme manifestação de gente do bangladesh a pedir a independencia e separação do paquistão, percebi o que era uma democracia a sério.

Anónimo disse...

Entre Outubro e Dezembro de 1967 também estive em Paris para me mentalizar que tinha de fazer o serviço militar obrigatório. Como sempre fui anarca mas não sindicalista, não frequentei os meios mais sindicalistas da época mas sentia-se uma vontade grande de mudança naquela juventude. Não sei se era uma mudança política ou de mentalidades.Discutia-se alguma cois, tentava-se encontrar saídas. Fazia-se o que se podia.Houve em Maio de 1968 os efeitos dessa efervescênci. Hoje não se vê isso. Cada um está agarrado com unhas e dentres aos seus saudosismos sem se pensar em mais nada. Vai ser bonito vai quando isto der uma grande volta.

António disse...

Senhor embaixador

Respondendo ao seu penúltimo parágrafo deste post quero informá-lo que estamos aqui. Mais amadurecidos, mais realistas, mas dispostos a defender, como então, a liberdade, a saúde, a alimentação, o bem-estar, os valores humanos e tanto mais...
Ainda bem que lembrou...!

Helena Sacadura Cabral disse...

Tem razão o comentador José de Barros. E Almada. Os meus netos quando chegarem à minha idade também estarão à espera, ainda, que o mundo seja salvo.
E tem razão também Patricio Branco quando se lembra de Londres!
E tem boa memória o nosso Embaixador, que descreve primorosamente um tempo que acabou.

Portugalredecouvertes disse...

Acho engraçado que se lembrem de Londres nesses termos, é que estive là há cerca de um ano e posso garantir que para atravessar uma rua é quase preciso rezar um pai nosso!
Ninguém pára a não ser nos semáforos, e então os carros podem vir da direita quando olhamos para a esquerda ou da esquerda quando olhamos para a direita!

Agora as palestras da juventude para mudar o mundo parece que desapareceram, talvez substuidos pelos comentadores das TV's que dizem tudo em nome dos que ouvem mas que já não escutam

Anónimo disse...

Grande texto, ó Seixas. Escreve mais destas porque nos afaga a memória

Anónimo disse...

No observatório de Meudon já estava nesta data um "bom aluno" que os pais tinham enviado para o Brasil para não ir à guerra... Do Rio de Janeiro veio para a astrophysique que reunia em Meudon cientistas de muitos países. Tive a sorte de me "cultivar" nas idas e vindas que fazia em que os pais desses meus amigos aproveitavam para eu lhes levar aquelas notas de francos do tamanho de um lençol... Apredi com eles e com os meus companheiros de viagem entre Santa Apolónia e Paris... Ainda fiz (uma vez apenas) um viagem de autocarro. No país Basco o motorista colocava um pano que dizia: somos portugueses. Bem bom, até nos saudavam. Não éramos ao tempo classificados de "pigs" mas éramos olhados como tal, porque vinhamos de um país que não era democrático... até o Eusébio, não podia ser melhor que os ingleses... Lembram-se? Quem dera que não venhamos a fazer mais esforço, para nos aproximarmos dos "pelotões da frente" pelo cansaço que isso dá e, porque é bem melhor se ficarmos apenas pelas recordações. Também houve grandes solidariedades na época; muitos estudantes menos abastados, estudavam com os livros e o pão e o yogurte e fruta que os colegas lhes traziam da cantina... Bonita foto, Senhor Embaixador!

Anónimo disse...

Livros e estas recordações inchadoras da alma de quem lutou e luta.
O grande amigo José Cardoso Pires "Delfim", no fim dos seus tempos de vida, na Costa de Caparica, quando era visitado pelos amigos mais íntimos, só falava das geniais fintas do arqueado Garrincha.
As voltas e rervoltas...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...