quinta-feira, outubro 15, 2020

É assim!

Na tarde de terça-feira, escrevi no JN um artigo, que foi publicado no dia seguinte, que terminava assim:

“A minha preocupação, olhando os últimos números mas, principalmente, lendo as tendências em vários países europeus, é saber se, perante a constatação de que podem vir a ser necessárias novas e mais fortes medidas limitativas, existe ambiente público para conseguir impor esse novo pacote de restrições, em condições de garantir a sua obediência generalizada.

É que um eventual incumprimento dessas novas medidas emergiria como um fator de corrosão da autoridade do Estado. E esse seria um drama a somar à tragédia.”

Nem eu pensava no que agora por aí vai, em termos de discussão pública.

O país que somos

Um bom teste à nossa cidadania, bem como ao grau de adesão a um sentimento de solidariedade coletiva digno de uma sociedade decente, é avaliar as reações aos constrangimentos decididos pelo poder democrático para fazer face a imperativos de segurança sanitária.

quarta-feira, outubro 14, 2020

Tempos de dúvida

 

Portugal atravessa aquele que é, porventura, o momento mais delicado da gestão da pandemia. Não me refiro à questão médica e sanitária, assunto que deixo a quem dele sabe.

O ponto que aqui me importa é a dimensão cívica e política do tema. Como questão de cidadania, essa é uma questão sobre a qual é legítimo que todos tenhamos opinião.

Em março, o país tomou um susto e confinou-se. O governo esteve bem no modo como atuou e as medidas impostas, com maiores ou menores reticências de alguns, foram genericamente bem aceites. A tragédia italiana, somada ao agravamento da situação em Espanha, criou o caldo de temor que permitiu que se tivesse ido mesmo bastante longe nas medidas coercivas.

António Costa mostrou então uma autoridade equilibrada e o país reconheceu o valor dessa liderança. No seu estilo, o presidente fez o que lhe competia, na solidariedade institucional que era indispensável. Rui Rio, acompanhado pelo país político responsável, mostrou-se à altura do momento. Os resultados eram animadores e isso ajudou, se não ao consenso, pelo menos a uma maioria de adesão.

Depois, vieram as “exceções”, para todos os gostos – das datas institucionais às manifestações cívicas, por causas ou por causa de algum partido. E, claro, Fátima. Com o progressivo retorno a alguma normalidade, surgiu o natural agravamento dos números.

O discurso oficial, que, compreensivelmente, sempre navegou um pouco à vista, entre os exemplos alheios e os números pátrios, ressentiu-se, muitas vezes, em termos de coerência. Nunca se assumiram nem se confessaram os erros praticados, o que, de certo modo, debilitou a confiança nas caras que titulavam a orientação seguida. Foi injusto, mas foi assim. E a chicana política foi encontrando espaço para operar.

Do quase consenso, algum país descolou então da narrativa oficial, duvidando da proporcionalidade de algumas medidas, ironizando de outras. Com a segunda vaga, muitas pessoas sentem-se inquietas e duvidosas do saber de quem as deve orientar.

A minha preocupação, olhando os últimos números mas, principalmente, lendo as tendências em vários países europeus, é saber se, perante a constatação de que podem vir a ser necessárias novas e mais fortes medidas limitativas, existe ambiente público para conseguir impor esse novo pacote de restrições, em condições de garantir a sua obediência generalizada.

É que um eventual incumprimento dessas novas medidas emergiria como um fator de corrosão da autoridade do Estado. E esse seria um drama a somar à tragédia.

segunda-feira, outubro 12, 2020

Taberna Ó Balcão



Chama-se “Taberna Ó Balcão”. É um caso sério, em matéria de restauração, em Santarém. Uma bela surpresa.

Soares


A construção e preservação da unidade europeia foi uma das tarefas de vida de Mário Soares. 

Neste ano letivo em que o Colégio da Europa, em Bruges, tem o nome do antigo presidente como seu patrono, a Fundação Mário Soares e Maria Barroso disponibilizam um valioso acervo documental, consultável on-line. 

Podem visitá-lo aqui: soares-europa.fmsoares.pt

O enrascanço


A palestra matinal, em Évora, a convite de uma determinada entidade, fora algo cansativa. Ou era eu quem estava muito cansado.

Por esses tempos, andava num vai-e-vem entre o país e o estrangeiro, com saídas todas as semanas, com os meus sonos ao deus-dará. Acordava, sobressaltado, em hoteis ignotos, caía como uma pedra nos assentos dos aviões, fazia refeições incaraterísticas.

Ir a Évora, essa bela capital gastronómica do Alentejo, e ir almoçar em bando, numa determinada instituição, com os integrantes do colóquio, era uma ideia que me parecia menos simpática. Inventei, assim, um pretexto qualquer, a ter lugar de seguida em Lisboa, e consegui libertar-me. 

Mas esse expediente tinha um inconveniente: não podia correr o risco de ser visto “desenfiado” no Fialho, na Tasquinha do Oliveira, no Luar de Janeiro ou no Cozinha de Santo Humberto, ou mesmo, na muralha, no Moínho do Cu Torto. (E ainda não existiam, à época, o Dom Joaquim, o Origens ou o Degust’Ar). Havia que sair da cidade. As opções eram só duas: o Chico, em São Mansos, ou o Manuel Azinheirinha, em Santiago do Escoural.

Com o meu motorista, Alberto Delgado, comparsa para a refeição, zarpámos para o Azinheirinha. Estava cheio, mas arranjou dois lugares para nós. Comeu-se bem, com o Alberto a poupar-se nos álcoóis, porque tinha de conduzir. Depois da ameixa da sericaia, que imagino tenha deglutido com acompanhamento de JB, com que, à época, ainda me dava o luxo de terminar os repastos, preparei-me para pagar e avançar para Lisboa, sonhando com uma hora de sesta, no carro.

Veio a conta, abri a carteira e saíram-me notas de francos belgas, que era então a minha segunda moeda, depois do escudo, patrioticamente ainda em vigor. Saquei do meu cartão de crédito e o Manuel Azinheirinha, com cara impassível, disse-me que não tinha cartões. O Alberto Delgado não tinha levado dinheiro consigo. Não há azar, vou ali ao banco levantar dinheiro, pensei e disse. “Não há Multibanco, cá no Escoural”, ouvi. Ó diabo!

Da mesa ao lado, onde presidia a um divertido grupo, o meu amigo António Franco, que cruzáramos à entrada e que podia ajudar-me, já tinha abalado, há muito. E abalado, ou melhor, enrascado, estava eu a começar a ficar, pela situação em que me colocara. 

O Manuel Azinheirinha não me conhecia de parte alguma e, por um momento, tive a sensação de que dizer-lhe que era membro do governo podia não ser, necessariamente, um fator credibilizante. Ter de pedir-lhe para nos “fiar” o almoço era algo que não me apetecia nada, mas foi o que tive de fazer, à falta de melhor solução. E ele, sem problema aparente, aceitou. A alternativa seria “chamar a Guarda”, mas eu teria, provavelmente, cara de quem o não iria enganar. 

E, claro, não enganei. No dia seguinte, lá foi um cheque meu para Santiago do Escoural. 

A história tem, porém, um não-evento embaraçante. No mesmo dia do almoço, passei por um Multibanco em Lisboa, para levantar dinheiro. O meu cartão de crédito estava caducado... 

Voltei ao Manuel Azinheirinha algumas vezes, nos anos seguintes. Nos últimos tempos, por várias razões, tenho ido menos. Uma nota do José-Paulo Fafe, no seu portal do Facebook, hoje lembrou-me este amável “dissidente” do Fialho. Que confiou em mim.

sábado, outubro 10, 2020

Os filhos ilegítimos de Trump


Não sei como se chamam, nem sei como chamar-lhes. É uma raça política estranha, que vive num registo cheio de contradições, se calhar em sintonia com este estranho e novo tempo – o qual, no discurso ácido de que agora se alimentam, chega a parecer velho. Às vezes, parecem de uma esquerda radical, outras vezes chegam a tresandar a uma direita velha e relha.

O fim do mito soviético, enterrado nas pedras do muro derrubado em Berlim, tornou muitos deles órfãos de um passado político do qual, curiosamente, nem sempre haviam sido seguidores incondicionais. Mas a desaparição ou falência de um certo tipo de partidos, em países onde a esperança já teve melhores dias, acabou por conduzi-los à “terra de ninguém” onde hoje vivem.

É difícil catalogá-los numa mesma prateleira, sendo que o único denominador comum entre todos parece ser a sua sedução por modelos autoritários, a recusa da globalização e a identificação caricatural que fazem das democracias liberais com o neo-liberalismo mais maléfico. Têm dois alvos de eleição: a Europa integrada, tida como símbolo do regresso da Alemanha ao lugar de comando, e um mundo ocidental sob a matriz da NATO.

O principal farol que os ilumina é a figura de Vladimir Putin, visto como o chefe da resistência a um mundo que diabolizam. Alguns alimentam uma discreta sedução por figuras como Orbán. Se lhes perguntarem por Lukashenko, dirão que é para manter no lugar, quase apenas e só porque o líder bielorrusso desagrada àqueles que eles detestam. O Donbass é um seu lugar de culto e o teste do algodão é a resposta à pergunta sobre se a Crimeia é ou não legitimamente russa.

Erdogan é simpático a muitos. Maduro a outros tantos. Apoiam quem mantiver Cuba “do outro lado”. Olham com bonomia divertida a Coreia do Norte, pela irritação que provoca em quem eles não gostam. No Médio Oriente, protegem Assad e o Irão. Mas não é isso contraditório com a simpatia por Ancara? A lógica não é o seu forte e mandam às urtigas a coerência.

A irónica novidade é que Donald Trump é o grande culpado da sua reconciliação episódica com os Estados Unidos – depois de uma vida que alimentaram contra o satã yankee. Por isso, detestam a América de Biden, os democratas, tidos por cúmplices de uma Europa feita à medida dos interesses que desprezam. Se pudessem, davam cabo de Schengen, recuperavam o sentido nacional, último bastião do novo “no passarán”. Por essa razão, bateram palmas ao Brexit, vendo o afastamento do Reino Unido como uma oportunidade para diluir uma União Europeia que já não têm como projeto redentor.

É bem revelador do estado a que chegaram as coisas ouvir e ler esse discurso de sobrolho cerrado, adjetivando duramente os adversários, numa onda de desespero que, há que reconhecer, deixou de ter um porto político seguro de abrigo. Alguns andam pelas graves trincheiras das redes sociais, outros palestram declarações chocantes.

Uma coisa me parece evidente. Esses órfãos políticos são hoje os filhos ilegítimos de Trump. Pelo menos, até ver.

sexta-feira, outubro 09, 2020

Os sucessores


Raramente, numa eleição presidencial americana, se olhou tanto para os candidatos à vice-presidência. O único debate entre Mike Pence e Kemala Harris foi observado à luz do que seria a eventualidade de qualquer deles poder vir a chegar à titularidade da Casa Branca.

Verdade seja que nunca, como hoje, a questão da idade de um presidente dos Estados Unidos tinha assumido uma tão grande importância. Com a evidente fragilidade física de Joe Biden, somada à questão da pandemia que atingiu Donald Trump, suscitou-se como que uma atenção pouco usual às figuras que, em caso de uma crise limite do estado físico dos presidentes, poderiam ser colocadas no seu lugar.

Como observadores exteriores, só poderemos imaginar o que significa, em termos humanos, o exercício das funções de um presidente dos Estados Unidos. Sendo um Chefe do Estado que acumula com a direção executiva do país, qualquer líder americano concentra em si, além de responsabilidades globais que usualmente têm vindo a ser as suas no quadro internacional, um poder de recorte muito singular.

Lendo-se os muitos livros que relatam o dia a dia da Casa Branca, em várias encarnações presidenciais, pressente-se as tensões que por ali habitam, os jogos políticos, as mais das vezes de natureza nacional, que nele recaem. Nos Estados Unidos não existe um governo, no sentido colegial do termo. A gestão sectorial do pais é assegurada por figuras designadas pelo presidente, mas é este que surge como a cara do poder político.

Serve isto para dizer que num presidente americano assenta um peso de responsabilidades que, muito dificilmente, pode ser exercido por alguém que não esteja na plenitude de uma condição físico-anímica forte e capaz.

O primeiro debate Trump-Biden revelou um contraste. O antigo vice-presidente de Obama, que joga nestes tempos a necessidade de se mostrar como uma alternativa credível a Trump, revelando um perfil presidenciável, deu de si mesmo uma imagem frágil, aqui e ali hesitante no discurso, suscitando legítimas interrogações sobre a sua capacidade para estar à altura de um exigente mandato de quatro anos.

Trump, por seu turno, ao assumir o seu estilo “bully”, terá confortado os seus tradicionais apoiantes. Em face de um Biden fraco, com voz débil, com um fácies onde as marcas da idade não iludem, Trump foi ali a afirmação da força e do vigor.

Só que a vida traz surpresas: pouco tempo depois, Trump viu-se afetado pela pandemia e, de um instante para o outro, o forte passou a fraco. Trump percebeu este reverter de posições, pelo que o modo quase “macho” com que procurou sair daquela situação revelou que a dimensão física do poder faz parte integrante da sua imagem de marca. Se acaso viesse a ser vencido pela pandemia, isso seria muito mais do que uma doença: seria um estilo e uma presidência que estariam em causa. O que os factos e os debates subsequentes nos trouxerem será, assim, algo de decisivo.

Numa segunda linha, Harris e Pence tentaram mostrar-se como opções dignas no “banco” dos suplentes, para usar uma imagem do futebol, no caso de uma substituição vir a ser necessária.

Para os democratas, a prestação de Kemala Harris pode ter ficado um pouco aquém daquilo que estariam à espera: um “arrasar” do vice-presidente, colando-o à imagem desastrosa do presidente, ao mesmo tempo apresentando-se com uma imagem de alternativa, não apenas a Trump mas, igualmente, ao próprio Biden. Sem ter sido excecional, Harris esteve bem.

Pence não apresenta a imagem “afetiva” de Kemala Harris. É um politico profissional, com um discurso conservador estruturado, passando, embora de forma monocórdica e inexpressiva, uma mensagem coerente e arrumada. Quem tiver visto o debate terá reparado que, ao contrário de Harris, nunca por ali se falou de Pence, da sua figura. O vice-presidente desapareceu no debate, por detrás de Trump. Nada mais ficámos a saber dele. Cumpriu o seu papel.

O “banco” de suplentes das presidenciais americanas apresenta, ao que parece, dois “safe pair of hands”, como os anglo-saxónicos costumam dizer.

quinta-feira, outubro 08, 2020

A Nobel

Querem que seja sincero? Só li dois livros de Louise Glück. Ou querem que eu seja ainda mais sincero? Nesse caso, confesso que nunca tinha ouvido falar da nova Nobel da Literatura.

A mosca


Uma mosca bem preta pousou sobre o cabelo bem branco de Pence quando ele falava de George Floyd.

Um belo silêncio


Ontem, estive, por mais de uma hora, num local onde, por lei, é em absoluto interdita a entrada de telemóveis, iPad e coisas similares.

À entrada, um envelope selado recolhe esses nossos pertences eletrónicos, que devem ficar em “modo de voo” e são guardados num cofre.

Que magnífico período de silêncio! Que bom foi ter de “puxar pela cabeça” para me lembrar de alguma coisa, sem ir ao Google! Que bela a sensação de ter a certeza de que a conversa não seria interrompida, de que, nem eu nem os meus interlocutores, teríamos a tentação de olhar os emails ou as SMS!

É claro que, à saída, no parque de estacionamento, passei um bom bocado a pôr a escrita em dia. Mas lá que foi agradável aquele intervalo digital, lá isso foi.

quarta-feira, outubro 07, 2020

Deixei de sorrir


Se a América, em ano de eleição presidencial, prometia já um tempo fascinante de observação, a pandemia deu uma inesperada ajuda a um teatro político que, com uma figura como Trump em cena, acabaria sempre por ter caraterísticas ímpares.

Vou confessar uma fraqueza: às vezes, ao longo destes últimos quatro anos, dei comigo numa atitude de divertida atenção à “performance” daquele que, não tenho a menor dúvida, a História virá a consagrar como o mais irresponsável presidente que alguma vez saiu em rifa à América.

Quando o via na televisão, ao mesmo tempo que ficava assustado com a tragédia de ter uma personalidade deste jaez à frente de destinos que condicionam os nossos, raramente conseguia não esboçar um sorriso.

Aquela figura caricata, que parece sempre estar aos ombros de si próprio, onde quer que esteja, que se acha “o máximo” e não mede o ridículo de afirmá-lo, protagoniza um arremedo de presidente que tinha o condão de, ao irritar-me, simultaneamente me divertir.

Ao vê-lo fazer aqueles “carões”, com gestos de afirmação machista, a sua pulsão por um exercício quase físico de autoridade, sentia estar a assistir a um “show” que, nem por ser de série B em termos políticos, deixava de ser curioso observar. Em alguns momentos, tinha a sensação de que Trump mimava as suas próprias imitações, numa emulação do “boneco” de Alec Baldwin.

Trump é autor do “script” para o seu monólogo de poder, carimba um registo que todos reconhecem e esquissa, a traço sempre grosso, o retrato que, a todo o momento, projeta de si mesmo. Trump é transparente: com as suas mentiras e exageros, só engana quem se dispõe a ser enganado.

O que mais impressiona é ele estar visivelmente sozinho em toda a encenação. É talvez a orgulhosa consciência dessa solidão que lhe potencia a força anímica para sustentar o espetáculo. Ele sabe que consegue obrigar-nos a assistir, como espetadores impotentes, àquela peça porque, à partida, sabe ser titular de um poder que o converte no homem conjunturalmente mais poderoso do mundo.

Na noite de segunda-feira, porém, parei de sorrir, por completo. Quando vi Trump chegar à Casa Branca e tirar, quase com violência, a máscara, metê-la no bolso com um ar de desprezo, num gesto – vou usar a palavra, porque é essa – criminoso, enviando um sinal para a morte a muitos seguidores, pensei que não tenho, afinal, o direito a usufruir de um olhar lúdico sobre uma personagem que, na sua irresponsabilidade arrogante, encarna o pior que a política nos pode trazer de maléfico.

terça-feira, outubro 06, 2020

Regresso aos restaurantes


Com todos os cuidados, pode e deve-se regressar aos restaurantes, que, em geral, então a fazer um esforço magnífico para manterem as portas abertas, garantir empregos e satisfazer os seus clientes.

No meu blogue “Ponto Come”, estou a assinalar a retoma da normalidade em muitas casas. Hoje, faço uma apreciação a cinco restaurantes visitados na zona de Sintra. Podem ler aqui.

segunda-feira, outubro 05, 2020

Aqui, Eça é que é essa!


“- E onde onde estás tu, Alencar? - perguntou logo Carlos.

- Pois onde queres tu que eu esteja, filho? Lá estou com a minha velha Lawrence. “

(...)

”Então concordaram em jantar ali na Lawrence”.

(...)

”Eu vou-me entender lá abaixo à cozinha com a velha Lawrence, e preparar-vos um “bacalhau à Alencar”, récipe meu... E vocês verão o que é um bacalhau. Porque, lá isso, rapazes, versos os farão outros melhor; bacalhau, não!”

Viva a República!

 




Os dias do HLPG


O Azerbaijão e a Arménia mantêm entre si, desde a sua autonomização como Estados, após o fim da União Soviética, uma situação de tensão político-militar, por virtude do Nagorno-Karabakh. Trata-se de um território em disputa, que já motivou uma guerra muito sangrenta entre os dois países, no início dos anos 90, com regular sucessão posterior de incidentes, mais ou menos graves. Nos últimos dias, o conflito armado reacendeu-se, ainda sem fim à vista.

O território é hoje ocupado por populações e forças arménias (há uma perigosíssima estrada da Arménia até lá, que o mapa não mostra), que reclamam um estatuto de independência, situação que os azeris, que rodeiam aquela “ilha”, não reconhecem. 

A questão tem vindo a ser tratada, desde 1994, pelo chamado "grupo de Minsk", uma entidade internacional composta por 11 países (de que Portugal faz parte, embora eu não tenha visto isto sublinhado em nenhuma notícia), cujo trabalho negocial não tem dado resultados muito visíveis, "to say the least". 

(Faço notar que há um outro “grupo de Minsk”, que nada tem a ver com este e que trata do conflito na zona leste da Ucrânia).

O Nagorno-Karabakh constitui um dos clássicos "conflitos congelados" que derivaram do fim da União Soviética, sendo os restantes a Transnístria, a Ossétia do Sul e a Abcásia. E com o Donbass a caminho de o ser.

No ano 2002, coube-me titular, em Viena, a presidência portuguesa da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), razão pela qual passei a seguir estes temas com alguma curiosidade e interesse. E participei em várias reuniões desse “grupo de Minsk”, entre 2002 e 2004.

Um dia, ainda na segunda metade de 2002, o diplomata português que seguia o dossiê na nossa presidência, José Manuel Carneiro Mendes, transmitiu-me o convite do chefe do chamado "High Level Planning Group" (HLPG), dependente do "grupo de Minsk", para que eu visitasse essa estrutura. 

Mas o que era o HLPG? A função - potencial, está bem de ver - do HLPG seria montar uma operação de "peacekeeping" posterior ao estabelecimento de um qualquer acordo entre as partes, eventualmente a ser obtido pelo "grupo de Minsk". 

Fui simpaticamente acolhido por um grupo multinacional de dez oficiais (idealmente serão 13), secretariados por uma simpática senhora, que me fizeram um "briefing" sobre a situação no terreno, a qual nada diferia das informações que o "Conflict Prevention Centre" da OSCE regularmente me transmitia. Dei-me conta de que havia uma imensa frustração naqueles militares, que ali estavam, sem fazer nada de útil.

Com exceção de algumas raras missões de observação no terreno, quando as partes assim o consentiam, o grupo vivia (e vive) encerrado num andar em Viena, com mapas desatualizados, sem um serviço mínimo de "intelligence" que o abasteça de dados relevantes, sendo as "missões" da OSCE na Arménia e no Azerbaijão os seus escassos suportes informativos. E as coisas seguiam assim desde 1994...

O encontro acabou com chá e bolos, recebi uma placa comemorativa da minha visita e um vistoso canivete suíço oferecido por um coronel dessa nacionalidade, que então chefiava o HLPG.

Na ingenuidade de que a razão podia prevalecer, sondei discretamente os "major players" da OSCE, bem como as duas partes diretamente interessadas, com vista a tentar perceber se não seria possível fazer "destroçar" a tropa acantonada naquele dispendioso andar da capital austríaca. A minha ideia era fazê-los regressar aos respetivos países, reconstituindo-se o HLPG se e quando uma hipótese remota de acordo viesse a ser viável. A poupança orçamental seria significativa, fosse para os cofres da OSCE (que gasta cerca de 200 mil euros por ano com o HLPG), fosse para os países de onde os militares (de várias patentes) eram "seconded" (que custeiam os seus salários).

O que eu fui dizer! Com maior ou menor ênfase, não houve um só dos meus interlocutores que desse a menor abertura a essa minha "bizarra" ideia, desde logo a começar pela Arménia e pelo Azerbaijão. Para todos eles, se levada à prática, a minha proposta indiciaria um menor empenhamento internacional na resolução do conflito. E assim a minha ideia foi por água abaixo.

O HLPG permanece ainda hoje, galhardamente, no seu posto em Viena. Celebram-se assim 26 anos desde que esse grupo de oficiais, regularmente renovado, foi criado e se mantém em "funções", encerrado naquele andar, fantasiando uma "operação de paz" que terá lugar lá para as calendas gregas. A mim, queixaram-se de que nem mapas decentes tinham!

domingo, outubro 04, 2020

Há 25 anos

Tinha regressado da embaixada em Londres, um ano antes. No Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde era subdiretor-geral, coordenava, entre outras coisas, as questões institucionais da União Europeia, a caminho da revisão do Tratado de Maastricht. Esse era então um dos dossiês mais delicados da nossa ação europeia.

Um dia, creio que de maio ou junho, desse ano de 1995, o meu colega João Lima Pimentel, que eu sabia muito próximo do líder socialista, António Guterres, disse-me que este gostaria de ter uma conversa comigo. Eu não o conhecia.

Não tinha, aliás, qualquer proximidade com o Partido Socialista. Nem sequer tivera curiosidade de assistir aos Estados Gerais, um exercício de abertura que acolhera muitos independentes, preparando o partido para as eleições legislativas de outubro desse ano, onde tudo indicava que poderia vir a obter um bom resultado. 

Era patente, pelo país, um cansaço da solução política que consagrara uma década de governação de Cavaco Silva. E a imagem de António Guterres surgia cada vez mais prestigiada e eleitoralmente apelativa, sugerindo-se como alternativa possível para a chefia do governo.

Numa tarde de sábado, encontrámo-nos em casa de José Lamego, figura de relevo do PS para a área externa, pessoa que eu também não conhecia. Na conversa, constatei que, tal como o João Lima Pimentel, Guterres tinha, sobre a Europa, uma ideia federalizante que se afastava substancialmente da minha. 

Começou por me dizer algo que me agradou bastante: “A mim não me interessam nada papéis do MNE, quero apenas saber as suas ideias”. Não creio ter-lhe dito logo tudo o que pensava sobre o “sonho federal” europeu que ele acalentava. À época, eu achava aquelas ideias muito perigosas...

Semanas depois, o João pediu que ajudasse a colocar, por escrito, algumas propostas sobre as relações internacionais de Portugal, para serem tidas em conta no programa eleitoral socialista. Lembro-me de, com dois amigos, ter preparado, durante um longo fim de semana de trabalho, um texto bastante completo, cobrindo toda área externa. Foi, aliás, muito fácil de construir: a política externa e europeia não era, como em geral continua a não ser, uma área politicamente muito divisiva. E também recordo o desagrado com que, logo que foi publicado o programa, vim a constatar que não havia por ali uma linha sequer daquilo que nos tinha levado essas horas de trabalho. Tomei nota, mas não pensei mais no assunto.

No dia 1 de outubro de 1995, votei no PS, claro. Era a opção de que me sentia mais próximo.

Os socialistas ganharam as eleições, embora apenas com maioria relativa. Recordo-me que essa foi uma noite em que me senti particularmente feliz. Quase tanto como na noite mais bela da minha vivência democrática: a vitória de Soares sobre Freitas do Amaral, cerca de uma década antes. Em ambas, senti um imenso alívio. 

Ao final dessa noite, três casais fomos a Sintra dar um abraço a Ernesto Melo Antunes. Sentíamos que tínhamos de partilhar com aquele amigo essa hora de boa disposição. E de esperança.

Entretanto, a vida continuava, lá pelo MNE. Entre as eleições e a posse do governo mediaram 27 dias. Havia uma compreensível curiosidade sobre quem seria o ministro. Ajudei a preparar os dossiês para serem entregues ao futuro governo. 

Com o passar dos dias, começaram a chegar-me rumores de que o meu nome estaria a ser considerado para os Assuntos Europeus. Mas também corriam outros nomes, bem mais “pesados” do que o meu.

Comecei por não levar esses boatos muito a sério: eu não era militante do PS, tinha ideias um pouco “recuadas” na questão europeia, além de algumas outras, menos relevantes, divergências doutrinárias. Contudo, o conhecimento que tinha dos temas europeus não me conduzia à “modéstia’ de pensar não ser capaz de exercer essas funções. Achei que podia mesmo achar graça ao desafio. Mas deixei-me ficar no meu lugar, sem “mexer uma palha”, sem falar com ninguém. O que fosse, soaria!

Uma noite, quando jantava num restaurante na Pontinha, com a minha mulher e uma amiga, o João Pimentel avisou-me, pelo telefone: “O ministro vai ser o Jaime Gama. Amanhã, vais ser convidado para o governo!”. 

Falei, ainda nessa noite, com três grandes amigos, nenhum deles ligado ao PS, dois deles conservadores, perguntando o que achavam da ideia: todos foram unânimes em dizer-me que devia aceitar. A minha mulher, contudo, era muito refratária à ideia. Cada um desses amigos teve de falar com ela, convencendo-a a deixar-me aceitar o lugar, se acaso viesse a confirmar-se o convite. Se a não tivessem feito mudar de ideias, eu não teria entrado para o governo, claro.

No dia seguinte, ao fim da tarde, Jaime Gama telefonou a convidar-me. Aceitei. 

Logo se seguida, pedi para ver o secretário de Estado cessante, Vitor Martins, que tinha sido meu chefe até esse momento e com quem tinha uma muito boa relação. Recebeu-me no seu gabinete, surpreendido pelo inesperado da minha visita tardia. Disse-lhe que não queria que soubesse da minha nomeação pela imprensa. Recordo-me que foi com prazer que o ouvi dizer: “Fico muito satisfeito por ser você a substituir-me”. Viríamos a fazer uma transição exemplar. 

Por ali fiquei cinco anos e meio, tendo pedido para sair em 2001, em momento acordado meses antes e sem o menor drama, e apenas porque queria regressar à minha carreira profissional. Em perspetiva, acho que foi uma bela aventura política, embora talvez um pouco longa demais. Mas nunca me arrependi da opção que tomei nesse mês de outubro de 1995.

sábado, outubro 03, 2020

O papel dos jornais


“Jornais?! Isso só lá para a estação. Aqui já ninguém vende, nem jornais nem revistas”.

Tinha acabado de fazer uma visita ao News Museum, o excelente museu que, no centro de Sintra, no local onde já foi um museu do brinquedo, nos mostra hoje, com uma rara qualidade de apresentação, o mundo e a história contemporânea da informação - em Portugal e no mundo. E, como grande ironia, não conseguia comprar, por ali perto, um único jornal.

Zarpei para a estação. “Já houve, já! Agora, só lá para a Portela!”, disseram-me na bilheteira. Estava a ser uma fantástica e triste aventura comprar um jornal em Sintra. 

Até que me lembrei de ir a uma bomba da BP. Pronto! Aviei-me de quatro jornais, finalmente! O brasileiro de Goiânia que ali me atendeu deu-me outra dica: “Também há no Pingo Doce”. Ainda há casas de confiança, felizmente! E dali segui para Colares, onde encontrei à venda o róseo “Financial Times”. 

Pelo andar das modas, desconfio que, dentro em pouco, nem a estimável “Corneta do Diabo” se vende já em papel. Vislumbrei, aliás, o Palma Cavalão a sair do Nunes com a Concha, mas não tenho suficiente confiança com ele para lhe perguntar se é mesmo verdade o boato que ouvi de que vai passar a online o jornal de que é diretor. Nesse dia, o “Observador” que se ponha a pau!

Eça


“Com a paz das grandes sombras, envolvia- os pouco a pouco uma lenta e embaladora sussurração de ramagens e como o difuso e vago murmúrio de águas correntes. Os muros estavam cobertos de heras e de musgos. Através da folhagem faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e aveludado circulava, rescendendo às verduras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios, pássaros chilreavam de leve; e naquele simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se já, sem se ver, a religiosa solenidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cai sas penedias e o repouso fidalgo das quintas de Verão.”


Está tudo mais ou menos igual!

O mundo é pequeno e cruel

Ontem à noite, um programa televisivo elaborou sobre a tragédia de uma senhora, viúva de um antigo embaixador de Portugal em Brasilia, ao que parece vítima de uma burla que arruinou toda a sua vida.

Lembrei-me de como conheci aquela senhora.

Naquele tempo, antes de Schengen, chegados a Lisboa de avião, tínhamos de preencher aqueles irritantes papelinhos de entrada, com identificação pessoal e número do passaporte. Eu vivia ainda no encantamento "maçarico" de ter um passaporte diplomático (azul, de carneira, com os dados insertos à mão, com a letra magnífica de uma senhora do Protocolo). 

Antes da aterragem na Portela, comecei a preencher a ficha. O cavalheiro e a senhora que estavam sentados ao meu lado, com quem viajara desde Genebra, que notei acompanhado de um imensa família, nessa véspera de Natal de 1977 (eu regressava de uma visita de trabalho à Líbia), dedicava-se à mesma tarefa e tinha um passaporte idêntico. 

Olhámos um para o outro e demo-nos a conhecer: ele era o embaixador Adriano de Carvalho, nosso representante permanente junto das Organizações Internacionais, em Genebra. Apresentou-me a senhora, uma mulher bastante bonita, creio que muito mais nova do que ele.

Adriano de Carvalho era um nome consagrado na carreira. Especialista em questões económicas e multilaterais, tinha um historial de grande negociador. Três anos depois, voltaria a encontrá-lo em Oslo, quando por ali foi por questões da EFTA, a acompanhar o ministro português do Comércio. Tinha uma figura avantajada, um ar impositivo mas cordial, um à-vontade e uma autoridade profissional com que dominava claramente a delegação portuguesa. Ao que às vezes recordo, por uma imagem que guardo da ocasião, tinha o vício da fotografia. 

Uns anos mais tarde, estava eu colocado em Lisboa, Adriano de Carvalho, ia acabar a sua missão no Brasil. Creio que estávamos em 1988. Solicitou ao ministério que lhe fosse concedido o estatuto de “disponibilidade em serviço”, financeiramente um pouco mais vantajoso, que tinha de ser decidido pelo “Conselho do Ministério”, um órgão onde eu era um representante eleito da minha categoria. O secretário-geral de então informou-nos que o ministro de serviço, que tinha tido um dissídio com o embaixador, desejava que lhe não atribuíssemos esse estatuto. Achei aquilo um escândalo, atendendo à qualidade do diplomata em causa, comparativamente com outras propostas que tínhamos de discutir. 

Com o apoio de outros colegas, que concitei, informei o secretário-geral de que não podia contar com o nosso voto positivo para nenhuma outra proposta idêntica enquanto o caso de Adriano de Carvalho (que, aliás, eu nunca mais vira, desde o encontro no avião e da visita a Oslo) não fosse decidido. O assunto foi polémico, mas levámo-lo de vencida. Recebi mais tarde uma nota simpática de Adriano de Carvalho, agradecendo o meu empenhamento. Nunca o voltei a encontrar.

Passaram-se muitos anos. Cheguei a Brasília em 2005. Adriano de Carvalho saíra do cargo de embaixador no Brasil quase 20 anos antes. E, no entanto, não obstante muitos qualificados colegas que lhe sucederam e me haviam antecedido nesse posto, ele era, de longe, aquele de que mais pessoas ainda falavam, que havia deixado uma marca de qualidade e prestígio associado ao nome de Portugal. Fora, aliás, o primeiro do escasso número de portugueses a quem a Universidade de Brasília tinha atribuído um doutoramento "honoris causa". 

Em 2008, quando saí do Brasil para França, de passagem por Lisboa, com ele já bastante doente e impedido de receber visitas, tive um grande gosto em ir entregar em sua casa um livro que aí publiquei, sobre os meus quatro anos no Brasil, que depois me agradeceu com uma carta muito amável. Soube que morreu em 2014.

Ontem, ao ver a reportagem na televisão, constatei que o embaixador ainda era vivo quando parte da tragédia que se abateu sobre a sua mulher se desenrolava. 

Este mundo é pequeno. E cruel.

quinta-feira, outubro 01, 2020

IV Conferência de Lisboa


Prossegue hoje, a partir das 14.30, a IV Conferência de Lisboa, dedicada este ano à Aceleração das Mudanças Globais, tendo a Pandemia como pano de fundo.

Depois de ontem terem sido debatidas a questão demográfica e as transições energéticas, esta tarde estarão em análise as mudanças tecnológicas, os problemas do crescimento e das desigualdades, bem como as ameaças ao sistema multilateral e à democracia.

A Conferência processa-se, este ano, exclusivamente por via telemática, sendo ainda possível proceder a inscrições no site www.clubelisboa.pt .

quarta-feira, setembro 30, 2020

Quino


Confessados ou não, todos temos os nossos heróis. Eu tinha um, cuja foto não conhecia nem sabia por onde andava. Nem, ao certo, se ainda era vivo. Assim, nem queiram imaginar qual não foi o meu espanto quando, um dia de junho de 2009, num evento público na Comédie Française, em Paris, numa entrega de prémios sobre livros, ouvi ser chamado ao palco Quino, o inventor dessa magnífica Mafalda da banda desenhada. 

Devo ter sido das primeiras pessoas que, na sala, se levantaram, de imediato, a dar-lhe merecidas palmas. Não por aquilo por que era premiado, mas como agradecimento a quem tanto prazer me proporcionou. É que, para mim, se havia por aí alguns génios, Quino era um deles. 

Escrevi “era”, porque acabo de saber que morreu. A Mafalda deve estar muito triste. E eu partilho essa tristeza.

Biden perdeu uma grande oportunidade

Nunca é muito evidente e óbvio o efeito que um debate pode ter no desfecho de uma campanha eleitoral. Mas, como frequentemente acontece, há, entre dois candidatos, quem espere mais de um debate do que o outro. Joe Biden tinha absoluta necessidade de usar este seu primeiro momento para marcar uma imagem “presidencial”. Tentou-o, mas não o conseguiu. Desestabilizado por Trump, que, não obstante a sua indisciplina no exercício, demonstrou uma supreendente calma e até contenção, Biden deixou-se resvalar para o insulto fácil. Ao longo de todo o debate, Biden projetou uma imagem de fragilidade física - na voz, na expressão, nas hesitações e na própria cara - que não foi compensada pelo sorriso complacente com que aturava as provocações de Trump. O baixar de cabeça e um ar, por vezes, angustiado, retiraram-lhe a assertividade que era essencial ter projetado. Se a ideia de Biden era ali afirmar a ideia de um presidente “a sério”, por contraste com aquele que a América teve nos últimos quatro anos, a tentativa falhou. Trump soube contê-lo e, em particular, conseguiu passar para o seu eleitorado todas as mensagens que queria. Percebendo que não iria retirar nenhum voto ao campo democrático, falou apenas para “os seus”. Esta foi uma oportunidade perdida por Joe Biden e ninguém parece esperar que, nos próximos debates, as coisas lhe corram melhor. Pelo contrário, digo-o com pena.

Falando de diversidade


Com ironia, costuma dizer-se que alguma justiça, em matéria de paridade de género, apenas existirá quando mulheres incompetentes - leram bem, incompetentes - conseguirem chegar a lugares de elevada responsabilidade.

É que tendo havido, desde sempre, homens desqualificados a ocupar esse tipo de cargos, ver ascender mulheres capazes a essas posições seria apenas um reconhecimento mínimo. Mas, como sabemos, mesmo este passo está muito longe de concluído.

Alterar o "statu quo" em matéria de representação, de género ou de minorias, é um trabalho de longo curso. Durante muito tempo, vi algum paternalismo nas ações afirmativas em matéria de paridade ou na política de quotas. Hoje, estou convicto de que, nesse domínio, um certo tipo de imposição é essencial.

Há dias, a SIC colocou um locutor negro a apresentar um seu jornal. Espero que seja um bom locutor. É que, se acaso o não fosse, cairia o Carmo e a Trindade, porque se iria dizer que tinha sido escolhido por cedência ao "politicamente correto". É assim que as coisas estão, gostemos ou não.

O novo locutor da SIC não foi o primeiro negro a ler um noticiário na televisão portuguesa. Com a pele mais ou menos escura, outras figuras, homens e mulheres, surgiram, desde há anos, nas nossas televisões. Quase todos, por sinal, bons profissionais. Mas foram sempre muito poucos.

Para um país com a nossa diversidade, temos um défice muito evidente de etnias, diferentes da branca, em várias áreas da nossa vida pública: da política à diplomacia, das Forças Armadas à justiça, dos média a lugares elevados da vida empresarial. Ah! E não nos deixemos iludir pela presença de negros na música e no desporto, sabendo também que, para esta "guerra", não contam as figuras de origem indiana.

Não acho que tudo isto se deva apenas ao racismo, embora reconhecendo a óbvia presença deste na sociedade portuguesa. O racismo existiu, existe e existirá, as mais das vezes escondido, mas ressurgindo a espaços, tornando-se mais perigoso se legitimado por vozes com estatuto democrático.

As etnias não-brancas de origem africana, muito pelo modo como a nossa descolonização se processou, foram condenadas a uma exclusão económica que tem dificultado a sua plena afirmação social. Mas não nos iludamos: no dia em que essa afirmação vier a ter lugar, ela acabará por funcionar como uma alavanca para novas atitudes de sectarismo racista.

Esta é uma das lutas, talvez eternas, que não podemos perder, se quisermos garantir a sanidade da nossa vida cívica democrática.

terça-feira, setembro 29, 2020

IV Conferência de Lisboa


De amanhã, dia 30, a sexta-feira, dia 2 de outubro, sempre a partir das 14.30, levamos a cabo a IV Conferência de Lisboa, um evento bienal sobre temas geopolíticos de natureza global.

Pode assistir e participar por via informática, inscrevendo-se em www.clubelisboa.pt . A inscrição é, naturalmente, gratuita.

Esta IV Conferência tem como tema geral “A Aceleração das Mudanças Globais - e os Impactos da Pandemia”.

Contamos com especialistas oriundos de 10 países, distribuídos por oito painéis de debate.

Como presidente do Clube de Lisboa, convido os leitores deste espaço a visitarem o site que antes indiquei.

Terei muito gosto em os “ver” por lá!

“Prós e Contras” (take two)

Escrevi ontem um post sobre a minha experiência pessoal com o programa “Prós e Contras”. Verifiquei - ia a dizer, com surpresa, mas estaria a faltar à verdade - que a esmagadora maioria dos comentários ao post, nomeadamente no Facebook, acabou por derivar para o próprio programa, com a produção de alguns juízos de valor sobre a respetiva responsável, com os quais, de todo, me não revejo.

Nunca fui um telespetador muito atento ao P&C, tanto mais que vivi no estrangeiro durante anos da existência do programa. Mas vi-o, creio, um número suficiente de vezes para poder concluir, sem sobre isso alimentar a menor sombra de dúvida, que Fátima Campos Ferreira, como jornalista, o não geriu de uma forma tendenciosa, como alguns por aqui alegaram.

O facto de não gostarmos do rumo que seguem algumas coisas não nos dá o direito de lançar um labéu de suspeição sobre as motivações de quem sublinha aspetos que nos desagradam ou com os quais, definitivamente, não concordamos.

Sempre considerei uma temeridade fazer um programa desta natureza, com a intensidade semanal de edição, porque seria sempre muito difícil garantir uma qualidade razoável no tratamento dos temas, alguns deles muito complexos e de forte componente polémica. 

A minha crítica essencial ao trabalho de Fátima Campos Ferreira - e, repito, pela mera amostragem do que assisti - reside na regular tentativa de “tirar conclusões”, as quais, às vezes, me pareceram um pouco impressionistas e forçadas, tratando-se de assuntos muito delicados e dificilmente sumariáveis. Eu teria preferido que o público ficasse com as duas (ou mais) opiniões e delas extraísse a ideia que lhe aprouvesse. Mas também posso perceber que a tentação de um moderador é sempre tentar desenhar uma possível bissetriz num debate, mesmo que não fechando a porta a ulteriores contribuições.

Temas houve, tratados pelo P&C, em que aprendi bastante, pela voz de gente muito qualificada, sobre realidades técnicas muito distantes dos meus interesses habituais. E, por falar em habituais, algumas vezes pareceu-me menos adequado insistir em alguns convidados que já funcionavam como “habitués”. Mas posso imaginar que isso se deva à indisponibilidade de muitos e à fácil disponibilidade de outros, o que na convocatória de um programa desta natureza é sempre uma condicionante limitativa.

Mas, repito, nunca detetei, da parte da responsável do programa, uma deliberada orientação enviesada, no plano político ou outro. Essa é a minha sincera opinião.

Os programas de televisão nascem, vivem e, em geral, têm um momento em que se “cansam”, em que esgotam o respetivo modelo. Vi essa realidade por cá, como assisti a isso em outros países em que vivi. Acho que o P&C foi um programa de que a RTP tem toda a razão para estar orgulhosa, mas que fez o seu tempo, pelo que o formato ganhará agora em ser revisitado.

Como membro do Conselho Geral Independente (CGI) da RTP, não me parece adequado emitir em público juízos críticos sobre um determinado programa da empresa, durante o seu tempo de emissão. Mas posso agora fazê-lo, agora que o P&C fecha portas. 

E gostava de dizer a Fátima Campos Ferreira que, no que me toca, e olhando para o saldo daquilo que é o imenso património da informação produzida na RTP, considero que o seu trabalho foi marcado por uma linha de permanente seriedade, na tentativa de fazer o melhor que lhe era possível.

segunda-feira, setembro 28, 2020

O novo anormal


Esta manhã, estive a coordenar um debate. Era este o cenário, antes da chegada das pessoas. Que raio de coisa nos havia de acontecer!

Prós & Contras


O “Prós e Contras”, um dos mais conhecidos programas da RTP 1, vai acabar, tendo hoje a sua derradeira emissão. A Fátima Campos Ferreira, que o dirigiu desde o início, terão sido destinadas novas tarefas jornalísticas dentro da empresa, as quais desejo que, para ela, possam ser profissionalmente tão estimulantes como foi o “P&C”.

Consta que Salazar, nos anos finais do seu longo reinado, quando lhe falaram de alguém que só conhecia de nome, com potencial para um cargo ministerial, mas a quem ele não queria “dar a confiança” de um encontro prévio de avaliação, terá dito: “Passem-mo na televisão”.

Quantas caras, que viriam mais tarde a surgir em cargos governamentais, em democracia, não terão sido descobertas para a política porque Fátima Campos Ferreira as “passou” no seu programa? É que devem rondar as muitas centenas os seus convidados de painel, ao longo destas mais de duas décadas de programas, sem contar com os participantes na plateia.

Tive o gosto de ir, creio que por duas vezes, a edições do “P&C”. Recordo-me de ter sido obrigado a recusar, por qualquer impedimento ou inconveniência, outros tantos convites.

Porém, uma outra minha mais não participação num “P&C” tem uma história curiosa.

Uma noite, creio que há mais de 15 anos, numa ligação aérea entre o Porto e Lisboa, fiquei sentado, por mero acaso, ao lado de Fátima Campos Ferreira (que, simpaticamente, com o seu marido, me daria depois boleia do aeroporto para o hotel onde eu estava hospedado). Na conversa, perguntou-me por que razão eu não aceitara, tempos antes, um convite que me tinha formulado para ir a uma determinada edição do P&C. 

Ora eu não me recordava minimamente de ter recusado tal convite! Mas ela lembrava-se bem: fora a minha mulher quem referira, no contacto telefónico que fora feito para minha casa, que eu não estaria disponível para ir a esse programa. Quando, dias mais tarde, falei à minha mulher do assunto, ela, com o ar mais normal do mundo, comentou apenas: “Disse que não, em teu nome, porque me pareceu que não devias ir a esse debate”. É assim a vida, veem?

domingo, setembro 27, 2020

Eu e o infinito


Eu não teria mais de quatro anos. Na saleta da “casa das tias”, irmãs da minha avó que viviam nas Pedras Salgadas, alguém analisava, em pormenor, fotografias antigas, com a ajuda de uma lupa.

O meu tio Fernando tinha-me mostrado, minutos antes, no terraço, como era possível incendiar um jornal com a lupa, posta ao sol. Eu estava fascinado com o instrumento, mas ninguém me deixava usá-lo, com medo de que eu o partisse.

“Posso ir com a lupa à cozinha? É só para ver uma coisa”, pedi eu, imagino que sem grande esperança. E tinha razão: ninguém permitia que eu tocasse na lupa.

A minha mãe, que sempre recordava esta história, dizia que me viram então desaparecer lá para dentro e, instantes depois, surgir com uma lata de fermento Royal na mão. “Quero ver esta lata com a lupa, para saber quantas latas lá estão”.

Passado um instante de perplexidade coletiva, todos compreenderam. O que eu pretendia era descobrir o mistério do rótulo, onde surge representada uma outra lata que, por sua vez, traz a imagem de outra, e por aí adiante.

“Ah! Queres descobrir o infinito?”, disse o meu pai. “Aqui na lata ele acaba cedo, mas se se colocar um espelho em frente ao outro, pode-se ir muito mais longe”.

O que ele foi dizer! Nunca tinha ouvido falar do infinito, mas logo esqueci a lupa, não descansando enquanto não se montou ali uma operação com dois espelhos paralelos. Para eu ver o infinito. E vi, claro.

Do que nos lembramos quando, num restaurante, como hoje me aconteceu, a conta chega numa lata de fermento Royal!

sábado, setembro 26, 2020

“Bullying” diplomático

O embaixador americano em Portugal, numa pouco profissional entrevista ao “Expresso”, enunciou algumas nada subtis ameaças ao Estado português, no caso do nosso país não alinhar na “guerra santa” contra a China, obrigando a escolher o lado dessa nova “cortina de ferro” que Washington pretende decretar pelo mundo.

O diplomata não se deu sequer ao cuidado de disfarçar o seu desconhecimento das dimensões técnicas das questões que aborda. Já teve, entretanto, a resposta devida do ministro dos Negócios Estrangeiros português.

O mundo ocidental tem poderes diferenciados a representá-lo, mas não tem tutelas a orientá-lo. A Aliança Atlântica é uma coligação de países livres cuja leitura dos respetivos interesses estratégicos tem de ser levada em conta para a definição da posição comum, que não cabe a um único país definir e, muito menos, impor. Além disso, em prioridade, Portugal coordena com os seus parceiros da União Europeia a sua relação geopolítica com países terceiros, sejam eles aliados militares de alguns, como é o caso dos Estados Unidos, sejam as relações económicas e políticas de todos, como é o caso da China. Mas, em derradeira instância, a definição da posição portuguesa é feita em Lisboa.

Ficamos a aguardar agora a reação de quantos, deste lado do Atlântico, desde há muitas décadas têm “a voz da América” como um oráculo acima de qualquer crítica. Não nos obriguem a recordar o “catering” na cimeira das Lajes.

O “Expresso” e Balsemão


Ser leitor do “Expresso” desde o primeiro destes seus 2500 números, tendo a absoluta certeza de nunca ter falhado a leitura (muitas vezes “à vol d’oiseau”, confesso) de nenhum desses números, não me confere nenhum direito. Nem mesmo me dá a menor autoridade para emitir uma opinião autorizada sobre o papel desempenhado por esse semanário na história da imprensa em Portugal. Mas também não me impede de a ter.

O “Expresso” cavalgou uma réstia de abertura ainda vislumbrada no extertor do “marcelismo”. Se o “Expresso” tivesse aparecido em 1968/69, colado à “ala liberal” com que Marcelo Caetano procurou dar um sinal de potencial democratização, a sua história poderia ter sido outra e, quem sabe, o jornal poderia ter contribuído bastante mais para a História do país. Da forma e no tempo em que emergiu, pouco mais de um ano antes do 25 de abril, o “Expresso” acabou por ser mais um reflexo do mal-estar que então atravessava o país e, muito menos, um verdadeiro ator na mudança que se processou nessa noite de 1974.

Marcelo Rebelo de Sousa, que teve um papel importante no “Expresso”, antes e depois do 25 de abril, não parece ter razão quando, há uma semana, atribuiu ao jornal um papel relevante no desencadear da Revolução. O principal, e verdadeiramente determinante, papel do “Expresso” acabou por ser durante o processo revolucionário e, muito em particular, durante o período democrático subsequente. O “Expresso” foi um ator de grande relevo ao longo destas mais de quatro décadas - qualquer que possa ser a opinião que tivermos sobre aquilo que protagonizou.

Neste momento em que se assinalam os 2500 números do “Expresso”, um jornal que, sobranceiramente, muitos dos seus antigos leitores fazem gala de dizer que deixaram de ler, quero deixar uma mensagem de forte respeito democrático pela figura de Francisco Pinto Balsemão. 

Na história do nosso jornalismo, e na nossa história política, Balsemão tem hoje um lugar cativo, por muito que isso desagrade a muitos dos que se politicamente se lhe opõem. Portugal seria um país democraticamente bem mais rico se dispusesse de muitas mais figuras com a estatura cívica de Francisco Pinto Balsemão. É o que penso, muito sinceramente.

quinta-feira, setembro 24, 2020

Gréco


Estava de passagem por Paris, no dia de 2018 em que morreu Charles Aznavour. Recordo-me bem de estar sentado numa esplanada, ao lado de uma senhora e de uma adolescente francesas, com esta última a perguntar “esse Aznavour era quem?”. Se a miúda não conhecia Charles Aznavour, que atuou até muito tarde, com muito maior probabilidade deveria desconhecer Juliette Gréco, que já saíra dos palcos bem antes. Ou, quem sabe, talvez o modo negro de vestir de Juliette Gréco, afinal muito “à la page” com certos padrões contemporâneos, pudesse ter algum dia chamado a sua atenção e assim se tivesse preservado na sua memória. 

Posso estar errado, mas fico com a sensação de que há um maior apagamento do passado recente na memória das atuais gerações. Se isso significa que olham com mais atenção para o seu presente, invadidos que são por uma imensidade quase infinita de mensagens de informação, assim ficando melhor preparados para as coisas do futuro, então isso é, com certeza, uma coisa boa. 

quarta-feira, setembro 23, 2020

“A Imagem de Portugal”


Animada pelo Professor Luís Valente de Oliveira, existe, desde há vários anos, a Tertúlia dos Carrancas.

O nome fica a dever-se ao facto das reuniões da tertúlia terem lugar no Palácio dos Carrancas, onde está instalado o Museu Soares dos Reis, no Porto. Uma das “almas” da organização é precisamente o presidente do grupo de amigos do museu, Álvaro Sequeira Pinto.

A Tertúlia dos Carrancas não tem uma composição fixa. Dependendo das temáticas, organiza-se em grupos diferentes de pessoas, que refletem e debatem um determinado assunto. O Professor Valente de Oliveira dirige o debate e é o relator dos trabalhos, que são depois passados a livro, editados e vendidos com o jornal “Público”.

Há já alguns anos, tive o gosto de participar no primeiro daqueles exercícios, intitulado “Os Interesses permanentes dos Portugueses”, um trabalho que deu origem a um livro que, creio, está há muito esgotado. Mais recentemente, fiz parte da “formação” da tertúlia que provocou o novo volume que vai sair, “A Imagem de Portugal”.

Quem estiver interessado no livro pode adquiri-lo com o jornal “Público”, no dia 30 de setembro.

A voz da América


As arengas dos líderes nacionais, nas assembleias-gerais anuais das Nações Unidas, raramente despertam interesse. Salvo se oriundas de um "trouble-maker", costumam ser catálogos de platitudes. 

Um país "normal" diz ali o que tem de ser dito, porque se algumas coisas não forem ditas ou reafirmadas isso nota-se. Sei do que falo, porque ajudei a escrever algumas dessas intervenções.

Não é isso, contudo, que se passa com os discursos dos presidentes americanos. O que um líder dos EUA escolhe para dizer acaba por ter uma forte relevância.

A América é o grande poder "condicionador". Outros terão força regional ou setorial, mas os EUA detêm um poder único, à escala global. E isto não é uma opinião, é um facto.

Os discursos americanos começam por ter importância para a própria ONU. Engendrada pelos Estados Unidos, a organização depende da boa vontade americana para funcionar com eficácia, o mesmo é dizer que funciona mal ou paralisa quando os EUA dela se desligam ou a obstaculizam. As mensagens a este respeito são assim interessantes de seguir, embora Washington, não raramente, se sinta pouco presa à sua própria palavra, o que é típico de quem tem a força do seu lado.

Ao serem alinhadas as prioridades externas da América, o "resto do mundo" fica também a saber com o que pode contar. Amigos e adversários de Washington leem com atenção esse elenco geopolítico, sopesando as palavras e as regiões escolhidas. E notam o que não é dito, nem sequer mencionado ao de leve - como, no discurso de ontem, as palavras Europa ou Rússia. Ou África.

Num ano eleitoral como este, atente-se nas mensagens para consumo interno. Com naturalidade, no dia em que passa de 200 mil o número de americanos mortos pela pandemia, o seu presidente sublinha o "êxito" da estratégia nacional seguida.

Em contraponto, surgem notas positivas sobre o comportamento da economia. E também foi relevada a importância, inigualável, do poderio militar americano, numa espécie de nota pouco subliminar de que "não nos desafiem".

É que o desafio - da China, claro - perpassa todo o discurso, desde o "vírus chinês" às ameaças comerciais. Esse perigo esteve por toda a parte no discurso de Trump, porque este sabe que o eleitorado americano, republicano ou democrata, está adquirido para aceitar ser esse o novo desafio nacional.

Trump terminou com um "God bless the United Nations". De facto, se a sua reeleição se confirmar, o mundo multilateral ficará, definitivamente, nas eventuais mãos divinas. Só um milagre o salvará.

terça-feira, setembro 22, 2020

É verdade?

 


Então é mesmo verdade que vem por aí o outono?

O teste

Por uma rotina ligada a um exame médico, fiz o teste do Covid. Sem nenhum sintoma evidente, fui bastante confiante e desprendido, muito na lógica de um ateu que pensa para si mesmo: seja o que deus quiser!

Voltei para casa, tendo deixado o meu email, para ser informado do resultado. Dizia para dentro: não há-de ser nada! Nessa noite, dormi bem, mas acordei, confesso, a pensar no assunto. Assobiei para o ar, li jornais, vi um filme, falei com pessoas. Ao final do dia, lá surgiu o email do hospital na caixa de entradas. Não o abri, por um minuto.

O que faço se tiver sindo infetado? Tenho que me isolar, montar uma vida de auto-reclusão, recomendar o teste a quem andou à minha volta, colocar já a senha na app “Stayaway Covid”, como ato mínimo de respeito cívico. Mas a quem mais conto o que me aconteceu? E que faço? Telefono à Saúde 24 ou ao meu generalista? Com a idade que tenho, a possibilidade das coisas correrem mal é bastante elevada.

Para travar a angústia de hipocondríaco militante, passado que foi o minuto a olhar o email, sem tocar o anexo, decidi abri-lo. O teste era negativo. Não foi desta. Bebi o malte em balão, sem gelo.

segunda-feira, setembro 21, 2020

Michael Lonsdale


Era um excelente ator, embora muitas vezes se deixasse utilizar demasiado como “character”. Mas não terá sido só isso que pensaram realizadores como Buñuel, Truffaut, Resnais e até Oliveira. O facto de ser bilingue, em francês e inglês, deu-lhe imensas oportunidades. Aproveitou bem algumas, fez pela vida em outras, às vezes em papeis menos gloriosos. Para mim, contudo, será sempre o dono da sapataria casado com a lindíssima Seyrig, a quem Antoine Doinel faz a folha, ou vice-versa, no “Baisers volés”. Michael Lonsdale morreu hoje.

Tarde do dia de Consoada