domingo, maio 03, 2020

Jornalismo

Tempos houve em que fazer jornalismo consistia em apresentar factos, com rigor, precisão e sem o menor viés opinativo por parte de quem redigia o texto. Os leitores, com base nessa informação, formavam então a sua própria opinião.

Era mesmo assim, acreditem ou não. Ainda alguém se lembra?

Silêncios


Este não é um silêncio “são”. Eu sei. Mas está-me a saber muito bem este silêncio de fim de tarde lisboeta, com alguma passarada em fundo.

Os interruptores


Imagem genérica dos entrevistadores televisivos que encavalitam perguntas ou não deixam acabar as respostas dos entrevistados, com o argumento de que não “temos” muito tempo.

Das mães



Há bastantes anos, telefonei a um amigo para lhe dar um abraço de pesar pela morte da sua mãe. Recordo-me de ele me ter dito que uma das coisas de que mais se arrependia era do facto de não ter conversado com ela, até ao fim, tanto quanto deveria ter feito. Fiquei com isto na cabeça e prometi a mim mesmo vir a ter isso em atenção, no futuro. Não tive. A minha mãe morreu há quase vinte anos. Até hoje, penitencio-me regularmente por não ter falado com ela tudo aquilo que deveria ter feito, o que sempre ponho à conta da vida algo errante (e, quando o não era, muito ocupada) que fui tendo. Mas, pensando melhor, esta é talvez uma ideia sem sentido: falamos com as pessoas, antes delas partirem de nós, exatamente aquilo que teria de ser. Alterar isso, forçar conversas só para as ter, seria artificializar o que, afinal, é apenas a coisa mais natural das nossas vidas.

Há uns meses, associei-me a uma iniciativa pública onde cada pessoa lia um poema sobre mulheres. Na altura, escolhi um texto de Eugénio de Andrade, chamado “Pequena Elegia de Setembro”, que aqui publiquei.

Repito-o, lembrando-me bastante, neste dia (embora, para mim, o dia da Mãe continue a ser o 8 de dezembro), da minha mãe: 


Não sei como vieste,

mas deve haver um caminho

para regressar da morte.



Estás sentada no jardim,

as mãos no regaço cheias de doçura,

os olhos pousados nas últimas rosas

dos grandes e calmos dias de setembro.



Que música escutas tão atentamente

que não dás por mim?

Que bosque, ou rio, ou mar?

Ou é dentro de ti

que tudo canta ainda?



Queria falar contigo,

Dizer-te apenas que estou aqui,

mas tenho medo,

medo que toda a música cesse

e tu não possas mais olhar as rosas.

Medo de quebrar o fio

com que teces os dias sem memória.



Com que palavras

ou beijos ou lágrimas

se acordam os mortos sem os ferir,

sem os trazer a esta espuma negra

onde corpos e corpos se repetem,

parcimoniosamente, no meio de sombras?



Deixa-te estar assim,

ó cheia de doçura,

sentada, olhando as rosas,

e tão alheia

que nem dás por mim.

Os livros da vida (7)

Foi naturalmente a carreira diplomática o motivo pelo qual alguém, um dia, me recomendou que lesse o “Les Ambassades”, de Roger Peyrefitte. O romance tinha ligação com um anterior, que só vim a conhecer mais tarde, “Les Amitiés Particulières”, uma obra de muito melhor qualidade literária. Peyrefitte escrevia primorosamente, embora muitas suas obras posteriores (como “Les Clés de Saint Pierre”, “Les Juifs”, “Les Fils de la Lumière” e, em especial, “Les Américains”, dentre os poucos mais que dele li) acabassem por fazer cedências a um modelo deliberadamente escandaloso, que o transformaram num “escritor maldito”, que a sua assumida pederastia bem justificava. O “Les Ambassades” é um romance divertidíssimo. Passado na Atenas pré-Segunda Guerra, ali se caricatura, com ironia e maestria, o microcosmos da embaixada de França, com os conflitos internos entre os titulares das várias funções internas. Quando entrei para a diplomacia, e por bastantes anos, aquele modelo tinha ainda algumas similitudes com a nossa própria realidade. Peyrefitte viria a escrever uma sequela, “La Fin des Ambassades”, já sem o mesmo fôlego e graça. 

sábado, maio 02, 2020

Saúde


Grande entrevista de Marta Temido à SIC, perante um Rodrigo Guedes de Carvalho que tentou ser muito incisivo mas, visivelmente, não estava à espera de uma entrevistada tão bem preparada.

Quem tiver dúvidas, pode ver aqui.

Ah! Lisboa...


... não estivesses tu confinada e eu chamava-te um figo!

Tempos

Há pouco, já nem sei bem porquê, lembrei-me desta bela frase de José Saramago: ”Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo".

Bye bye Biden


É uma imensa ironia que Joe Biden, cuja campanha estava já feita em frangalhos pela impossibilidade de contrariar a sobre-exposição televisiva de Trump, venha agora a ser “apanhado” por acusações de assédio face a um presidente que nisso tem um “record” imbatível. 

É a América!

Ainda a Caixa

Terá o governo português diligenciado junto das autoridades europeias no sentido da Caixa Geral de Depósitos, nas presentes circunstâncias, vir a ter um regime de atuação mais “livre” do que o imposto aquando do refinanciamento, para apoio às politicas públicas. 

Se não, porquê?

Homenagem a quem nos traz as coisas


Saudades de gente


A descoberta do outro


A paleta de Van Gogh


Assimetria europeia

A pandemia tem efeitos económicos assimétricos. Ao facilitarem as “ajudas de Estado” em todos os países da UE, as instituições europeias estão a agravar as desigualdades, porque favorecem as economias com maior “poder de fogo” financeiro para ajuda ao seu setor privado

Aceito apostas!

Aqui, nas redes sociais, em três semanas.

Se os efeitos da pandemia abrandarem, “o governo foi alarmista, o vírus matou tanto como as gripes e se “matou” bastante foi a economia”.

Se houver um novo surto, “o governo foi irresponsável, não soube gerir o desconfinamento, foi de um desleixo criminoso”.

Desoras


Há dias, um amigo, que me vê escrevinhar por aqui a desoras, comentou: “Agora é que eu percebi o conceito de “filhos da madrugada”, na canção do Zeca!”

Os livros da vida (6)


Eu tinha nove anos de idade quando Roland Barthes escreveu as “Mythologies”. Creio que devia ter mais de 20 anos quando, pela primeira vez, li o livro, precisamente na edição que a imagem mostra. Já não sei como cheguei a Barthes, mas isso deve ter acontecido por “infeção” de grupo, algures entre a Granfina e o Montecarlo, na transição dos anos 60 para 70. “Estudei-o” depois num curso de Semiologia, no Centro Nacional de Cultura, creio em 1972, ministrado por Prado Coelho, a que eu assistia depois do meu dia de trabalho como funcionário bancário. Li muitas outras coisas de Barthes, mas guardei para sempre a impressão que me deixou este “ Mythologies”, que me ajudou a perceber como alguns objetos afirmam a sua identidade e ganham uma autonomia própria no espaço social e público. Barthes foi um génio e tem uma obra fascinante, marcada pelo seu raro poder de interpretação sobre a verdadeira complexidade de coisas que só aparentemente são simples. Há uns anos, para lhe agradecer o que me tinha ajudado a “ver”, fui ao seu túmulo, no cemitério de Urt, no sudoeste de França.

sexta-feira, maio 01, 2020

Patético


Tenho o maior respeito pelo Primeiro de Maio e bastante pela CGTP, mesmo agora que foi tomada por um curioso “management buyout”.

Mas achei o comício da Alameda uma iniciativa ridícula e pergunto-me se, naqueles autocarros de manif paga, havia algum distanciamento social...ista


Pensionistas

As pensões com “águas correntes, quentes e frias” que havia na Almirante Reis passaram a “hostels”? Não sabia...

Variações sobre uma cantiga de amigo



Sabedes que sen amigo
nunca foi mulher viçosa
Cantiga de amigo



Quando a peste nos assola
vingativa e perigosa,
e a amiga se isola,
vai-se o viço e a cor de rosa:
porque, ausente o seu amigo, 
a bela mulher viçosa,
sozinha no seu abrigo,
sente a alma vagarosa!
Sabei pois que sem amigo
nunca foi mulher viçosa
e que sem um beijo amigo,
todo o verso se faz prosa!
Se é verdade rigorosa
que o viço requer calor,
dai pois à mulher viçosa
um amigo, por favor!


Eugénio Lisboa,


que vai aproveitando a peste para ir remergulhando nos clássicos, os quais sempre nos deram boas dicas, nos dias de grande aflição.

Primeiro de Maio


Lembrar Moustaki a lembrar Chico Buarque.

Alô, alô!

Trump telefonou a Marcelo elogiando a postura portuguesa face ao vírus.

O que será que fizemos de errado?

Os livros da vida (5)


Muita gente que conheci “chegou” a marxista passando, quase obrigatoriamente, pelo Zamora ou, em versão um pouco mais sofisticada, pela Marta Harnecker. Outro estádio essencial do acesso à bela teoria absoluta do óbvio sócio-económico era ler os “Princípios Fundamentais de Filosofia”, de Politzer. Os de lágrima fácil estagiavam antes na “Mãe”, do Gorki, ou, para quem fosse dado ao produto local, na “Engrenagem”, de Soeiro Pereira Gomes, mais primário do que os “Esteiros”. Com estas referências, lidos depois o “Manifesto” e uns extratos simplificadores de Marx (“Salário, Preço e Lucro”, “Trabalho assalariado e Capital” e as “Teses sobre Feuerbach”), estava criado o substrato que permitia debitar, com garbo, um mínimo da vulgata marxista. Depois vinha o “resto”: Lenine, Stalin, Trotsky e, para quem fosse dado a coisas mais étnicas, o velho Mao. E tantos e tantos outros, que hoje jazem no meu espólio na Biblioteca Municipal de Vila Real. Se não tivesse passado pelo marxismo, a minha perspetiva da vida tinha sido outra, eu teria sido outro e, “for the record”, gosto de ser como sou. Devo a Juan Clemente Zamora, no seu simplismo às vezes muito maniqueísta, o ter-me ajudado a perceber o mundo. Depois, como dizia Marx, era importante passar à frente e conseguir transformar esse mesmo mundo. Aqui chegados, cada um fez o que pôde ou o que quis.

quinta-feira, abril 30, 2020

A notar

Sem o menor alarmismo, há uma conclusão muito simples que retiro da leitura das medidas de desconfinamento anunciadas: os riscos para as pessoas mais frágeis (em especial mais velhos) vão aumentar exponencialmente nos meses que aí vêm, em caso de optarem por fazer socialização pública.

Pronto, vou ser otimista...

Vou fazer um esforço, que vai ter de ser bastante grande, para ter uma dose de otimismo perante o impacto das medidas de desconfinamento anunciadas para maio.

O adeus do Piantella



Leio agora que fechou, de vez, o Piantella. Para quem não saiba, foi, durante décadas, o restaurante preferido da classe política de Brasília. Tinha um primeiro andar, com uma bela garrafeira, onde se realizaram reuniões históricas que, para o bem ou para o mal, iam decidindo o futuro político do país. Recordo-me da cadeira de Ulisses Guimarães, que era uma espécie de relíquia do local. No andar de entrada, onde, ao sábado, havia um buffet com uma bela feijoada, cruzavam-se, durante a semana, expatriados dos seus feudos, deputados e senadores, que se juntavam aos jornalistas e lobistas, com os ministros a fazerem aparições solenes, acompanhados dos seus séquitos. Nunca fui um “habitué” do local, quando vivi em Brasília, mas estive por lá as vezes suficientes para ter podido apreciar, com detalhe, aquela sociologia gastronómica, que encenava a coreografia do poder da capital federal. Comia-se bem? Era assim-assim, embora caro. Brasília tinha bem melhores lugares para refeiçoar, mas beber um copo, ao fim da tarde ou mesmo à noite, no Piantella tinha a sua graça. Neste dia de finados para o mais emblemático restaurante político do Brasil, deixo um pensamento para o meu amigo Toninho Drummond, por décadas representante da rede Globo em Brasília, frequentador assíduo do Piantella, autor das mais interessantes memórias políticas que nunca foram escritas.

Os ventos

Lembram-se da polémica sobre os ventiladores, que, durante semanas, entreteve as aves agoirentas do costume.

A pergunta que não vejo agora ninguém fazer é esta: faltou algum ventilador a algum doente?

Vizinhança

Duas razões para eu arriscar quebrar as leis do confinamento seriam ter o José Malhoa ou o Toy a cantar no meu bairro, como parece estar a acontecer em bairros atingidos pelo vírus pimba.

Estou convencido que, se fosse feita uma sondagem, aqui pela zona onde vivo só se ouvia o António Mourão a cantar o “Ó Tempo Volta p’ra Trás”.

Os livros da vida (4)


Em Vila Real, a poesia que tínhamos lá por casa mimetizava a que as “seletas literárias” nos obrigavam a “estudar”. Era escassa e muito clássica, em estantes dominadas pelos romances e contos, por muita História e por dicionários e enciclopédias. O meu pai, que tinha pretensões de “diseur”, gostava muito de Junqueiro, mas também de Régio e de Lopes Vieira, entretinha-se a recitar Homem de Melo, tudo num ecletismo algo bizarro. Acho que nele predominava o impacto da sonoridade dos poemas, porque “O Mostrengo” também era recorrente. No que me toca, até aos 17 ou 18 anos, confesso que fui bastante “surdo” para a poesia. Chegado à universidade, deixei-me tentar pelo neo-realismo, pelas rimas “úteis” à luta política, com algum Alegre já à mistura, muito influenciado por António Cabral. Um dia de 1968, no Café Diu, no Porto, um amigo “apresentou-me” Alexandre O’Neill. Era a reedição do “No Reino da Dinamarca”, com mais poemas do que a edição original. Fiquei deslumbrado. Foi só a partir dali que percebi que a poesia podia ser outra coisa. Tinha pouco dinheiro, comprei com esforço o livro na Unicep (a cooperativa livreira dos estudantes), li-o sem o “usar” muito e, com uma dedicatória foleira, ofereci-o, semanas depois, no dia do seu aniversário, à minha namorada de então. Como ela continua a ser a mesma hoje, consegui recuperar o livro, que ainda ali anda na estante. E a que, muitas vezes, quando me apetece sentir bem, volto.

quarta-feira, abril 29, 2020

Brasil


Esta foi a única imagem que me chegou, depois de ter sido conhecida a decisão de um juíz do Supremo Tribunal Federal do Brasil de obrigar Jair Bolsonaro a recuar na sua decisão de nomear um amigalhaço dos filhos para chefe da Polícia Federal, mantendo-o, no entanto, à frente da Abin, os serviços secretos do país. O nome do rejeitado é Ramagem.

Procurar o cretino

Estranho muito que, neste tempo em que os velhos estão “na berra”, nenhum órgão de “comunicação social” se não tenha lembrado de colher a opinião do crânio inventor do conceito de “peste grisalha”. Todos sabemos por onde ele anda...

Um banho de realidade

Num comentário no Facebook, contei hoje que, a um crédulo colega de universidade, conseguimos um dia convencer que o pequeno anúncio luminoso “Exit”, que se via nas portas de emergência dos teatros, assinalava as saídas destinadas aos atores que, no final da ”performance”, tivessem um “êxito” bem reconhecido pelo aplauso do público. O rapaz era um tanto saloio e, na hora, engoliu a patranha.

Isso passava-se no Lar Gomes Teixeira, na rua da Torrinha, no Porto, na segunda metade dos anos 60 (vale a pena dizer que era no século passado?). Aquele colega, por artes ou por antiguidade, tinha conseguido um dos poucos quartos individuais do lar, com janela para a rua, à esquerda de quem entrava.

O António Novo, que por aqui me lê e que, tal como eu, era utente dessa casa, com algum esforço de memória lembrar-se-á da personagem, que vivia sozinho e não se relacionava com ninguém.

A higiene, ao que se constatava, não era o “forte” daquele colega. Do seu quarto exalava, quando a porta se entreabria, um odor pestilento, sinal de sujeira acumulada. A Lucinda, a empregada da limpeza, terá mesmo confessado que se recusava a lá ir, destacando, para essa ingrata função, o Moisolindo, o porteiro.

Numa noite de conversa, sem esse colega presente, veio à baila o odorífico tema, tendo alguém feito notar que ele nunca tinha sido visto na zona dos banhos, que se passavam numa zona do primeiro andar. Outros adiantaram: “Ele cheira sempre mal!” Daí à constatação de que “ele nunca se lava!” foi um passo breve. E um plano de ação foi montado: ele iria ser forçado a um banho! 

Já não me recordo como é que o bisonho personagem foi atraído, no dia seguinte, ao primeiro andar, mas tenho bem presente o instante em que quatro ou cinco colegas sobre ele caíram e o arrastaram para o chuveiro. 

O rapaz berrava, urrava impropérios, o banho nem sequer foi completo, porque foi impossível arrancar-lhe todas roupas. A cena, de que fui mero assistente à distância, dado o meu estatuto de caloiro, tinha o seu quê de crueldade, de violência, com alguns de nós a termos pena da vítima, cuja rutura pessoal com a generalidade dos colegas se consumou naqueles breves instantes. 

Foram, de facto, breves mas foram imensos os minutos de humilhação que o rapaz sofreu. No termo do exercício, mais do que furibundo, silencioso de raiva, lembro-me de o ver agarrar nas roupas e descer as escadas, a refugiar-se no seu tugúrio, quiçá para recuperar os odores perdidos na ablução que lhe fora imposta. O ano letivo estava a terminar. O lar iria depois ser encerrado, por um cúmulo de variadas razões, por algum tempo. Nunca mais voltei esse colega.

Não vale a pena estar agora a perder agora tempo com juízos moralistas sobre o episódio, terreno em que os frequentadores das redes sociais são reconhecidos peritos. É óbvio que foi uma cretinice, mas os factos foram o que foram, nesse ano de 1967.

O valor das palavras

Toda a vida pensei que “calamidade” era uma situação pior do que “emergência”. Afinal, não é. Vamos sair da “emergência“ e passamos, com mais alegria, à “calamidade”.

Pergunto-me agora: no dia em que o estado de “calamidade” acabar, poderemos, enfim, vir a dar-nos por felizes quando entrarmos na “tragédia”?

A língua portuguesa é muito matreira.

Respeito pelo outro


Faço parte dos portugueses que, embora confinados em casa já para além dos 40 dias que associamos à ideia de quarentena, não estão deprimidos com a situação em que atravessam. A mim, basta-me pensar em quantos vivem em casas minúsculas, com crianças, em ambientes marcados por tensões e carências, para logo me sentir na obrigação de estar feliz.

Por essa razão, quando leio, nesse “muro das lamentações” são as redes sociais, pungentes relatos de gente que, como eu, tem a sorte de poder ter acesso a um quotidiano de relativo conforto, a clamar por “liberdade” e quase a invocar o direito de resistência para incumprirem com o que lhes é recomendado, apetece-me dizer alto algumas inconveniências.

A pandemia, na sua aparente “democraticidade” - porque o vírus pode afetar qualquer um - é um fator potenciador das desigualdades. Como referi, nem todos temos o mesmo conforto, nem todos temos garantido, no final do mês, o salário depositado na conta. Muitos ficaram, de um instante para o outro, sem emprego. As condições sanitárias em que vivem, às vezes em ambientes de convívio familiar e social muito precários, não permitem garantir um mínimo de precauções de higiene, que limitem os riscos de infeção. Os que, trabalhando, se deslocam em transportes públicos, regressando ao final do dia ao espaço familiar, que garantias de isolamento e proteção têm? Penso, às vezes, nos milhares de estrangeiros que enxameavam a restauração hoje fechada: como estarão a viver, eles que sobreviviam em camaratas de miséria, para mandarem, no final do mês, uns euros às famílias no Nepal, no Brasil ou no Bangladesh?

Sabemos que cada um vive a sua própria realidade e que não é legítimo impormos a nossa perspetiva aos outros. Acho, contudo, que é nestas alturas, em que as tensões nos põem à prova, que o pior e o melhor de cada um de nós vem ao de cima. Temos visto casos de gente preocupada com a sua vizinhança, com sentido de entreajuda e procurando ter gestos de cuidado solidário. Como também por aí se observam atitudes de egoísmo, de falta de cuidado, de desprezo pelas condições sanitárias mais elementares.

Todos prezamos a nossa liberdade, todos estamos – nem vale a pena confessar – fartos destas semanas de “prisão domiciliária”, desejosos de regressar às nossas rotinas. Mas é nestas ocasiões, em que estamos todos no mesmo barco, embora uns em camarotes e outros em camaratas, que temos obrigação de sermos estritamente iguais no respeito cívico a todos exigido.

Os livros da vida (3)


Tenho hoje a plena certeza de que o meu profundo desprezo pela competição pessoal, uma atitude de que nunca me afastei ao longo de toda a vida, saiu muito reforçado pela leitura do “Que faz correr Sammy?” Lembro-me de ter lido uma súmula da obra nas “Seleções do Reader’s Digest” (já sem “c”, porque era a edição brasileira) e que, quando um dia vi surgir o livro, nesta edição da “Ulisseia”, na biblioteca do meu avô, o devorei em pouco tempo. Foi, depois, um livro que recomendei a muita gente. Contrariamente àquilo que só vim a perceber mais tarde, não tinha ficado minimamente marcado pela origem judaica de Sammy, bem como de outras figuras do livro. O que então me perturbou, e muito, foi perceber que a América era uma sociedade onde o espezinhar do “vizinho” era uma receita para o sucesso, e que isso era tido, de certo modo, como fazendo parte do “jogo”. Sammy foi uma figura da ficção que me inoculou uma rejeição, que depois passou em mim para a política, ao capitalismo selvagem - que passei, um tanto simplisticamente, a identificar com a América e com o liberalismo, na pior face que este tem.

As aulas do professor Nogueira

Os atestados médicos falsos são um cancro no mundo do trabalho. O absentismo é uma prática tolerada, com prejuízo de quem cumpre o seu dever. Todos os governos se acobardam. 

O sindicalista Nogueira já avisou: se os professores não quiserem ir trabalhar, basta meterem atestado!

terça-feira, abril 28, 2020

De quem é o 25 de Abril

Andou para aí um debate sobre “de quem é o 25 de Abril”. 

A resposta é bem simples: o 25 de Abril é de quem o celebra, de quem o canta, de quem lhe grita as palavras de ordem, de quem, todos os anos, dá nova vida aos seus símbolos. 

E, claro, não é dos outros. 

Está percebido?

Os livros da vida (2)


Não tenho a menor dúvida de que este foi um livro fundamental na minha vida. Andei a namorá-lo durante uns dias na montra do Libório, o mais antipático dos livreiros de Vila Real - também eram só quatro, todos na Rua Direita! O preço era relativamente elevado, o que fez com que tivesse de fazer um rapapé muito insistente junto do meu pai. Eu teria uns 14 ou 15 anos. Esta “Encyclopédie” mudou-me para sempre. Tinha o mundo na minha mão, passei a saber o que ninguém, lá por Vila Real, à época, sabia. Pelo menos, era o que eu pensava. Não me falhava uma capital, localizava as cidades mais estranhas, a profundidade da fossa de Mindanao ou a altitude de bizarras montanhas. E conhecia as moedas de todos os países. Já bandeiras, isso nunca foi o meu forte! Mas, com a “Petite Encyclopédie Géographique”, eu fazia um figurão! Já me tenho perguntado se este pequeno grande livro não foi, afinal, o grande culpado pelo meu “descaminho” profissional futuro.

segunda-feira, abril 27, 2020

Vasco Graça Moura


Li algures que passam hoje seis anos sobre a morte de Vasco Graça Moura. E apetece-me transcrever um texto que, no dia da sua morte, publiquei neste blogue:

“Vasco Graça Moura, que hoje desaparece, foi uma figura maior da cultura portuguesa, um brilhante obreiro da nossa língua, uma personalidade que nunca fugiu ao confronto das ideias - ele que as tinha fortes e bem estruturadas. Havia em Graça Moura uma curiosa dualidade, que ele sustentava, parecia-me, com algum prazer. Por um lado, o poeta, o tradutor, o ensaísta e o romancista (esta é a minha ordem pessoal desses seus méritos criadores), o espírito com laivos de genialidade de um intelectual sensível, possuidor de uma cultura quase renascentista, do melhor que Portugal produziu nas últimas décadas. Mas, no outro lado do espelho, havia o actor cívico (escrevo "actor" com "c", em homenagem ao opositor do Acordo Ortográfico que VGM foi), comprometido, usuário brilhante de uma escrita polémica, onde ressoava um quase caceteirismo cívico, muito ao gosto novecentista. Se VGM era um príncipe da escrita e na cultura, era também, num assumido contraste, um ferrabraz na política, embora, falado pessoalmente, estivesse sempre muito distante da ferocidade adjectivada dos seus artigos. O homem que esteve com Sá Carneiro e dele se afastou (e que dele se mantinha bem crítico) era, contudo, o mais improvável turiferário de uma figura como Cavaco Silva, depois de ter arrastado a asa a esse ridículo projeto de moralismo político que deu pelo nome de PRD. Ora se havia coisa que, de VGM, ressaltava à distância esse era o seu desprezo profundo pela mediocridade, pela pusilanimidade, pelo oportunismo, pelo Portugal mesquinho dos que não conseguem deixar de ser bem "pequeninos". Como é que, dentro de si, ele compatibilizava os olhares, críticos ou complacentes, sobre tudo isto? Talvez nunca o venhamos a saber. Embora tivesse falado muitas vezes com VGM, estava muito longe de o conhecer bem. Muita coisa nos separava politicamente e outras opções, noutros domínios, não contribuíam para nos aproximar, pelo que sempre tivemos uma relação pessoal marcada apenas por uma educada cordialidade. Mas tinha por ele um grande respeito e uma forte consideração intelectual. Há semanas, dei aqui conta de um seu excelente ensaio "A identidade cultural europeia". Esta minha última homenagem a VGM é uma sugestão para que o leiam, porque nele está o essencial da sua visão para Portugal e para esta aventura continental a que o destino nos impele. Porque Vasco Graça Moura era, essencialmente, um patriota português e isso não se improvisa: sente-se e sofre-se.”

Os livros da vida (1)


O meu amigo Luís Castro Mendes desafiou-me a colocar no Facebook as capas de 10 livros da minha vida. Fá-lo-ei, ao ritmo de um por dia, republicando aqui os posts.

Não serão “os 10 livros da minha vida”, mas apenas 10 títulos que, em fases diferentes da minha vida, foram importantes para mim. Alguns deles, nos dias de hoje, pouco ou nada me dizem, mas nós também somos aquilo que fomos.

Aqui fica o “Platero e eu”, que um tio me ofereceu, teria eu aí uns dez anos, com uma imensa e carinhosa dedicatória. Não me foi fácil ler o livro, recordo, o que apenas fiz com a ajuda do meu pai. Só numa mais cuidada releitura, muitos anos mais tarde, percebi que Jimenez ia bastante mais longe do que aquela escrita, que então tive apenas por ternurenta, parecia indiciar.

Vítor Nogueira


Vitor Nogueira é um poeta de Vila Real. É um intelectual de muitas e diversas artes, do teatro à bibliofilia militante.

Lembrei-me agora de um poema seu, “Sapataria” de um pequeno livro de 2008, intitulado “Comércio Tradicional”.

Na leitura que dele tinha feito, ficaram-me uns versos desse poema, que ajudam a ilustrar a conjuntura:

Poderemos ser felizes
num espaço confinado?
Digamos que conheço um homem
que consegue atravessar paredes.
Pequenas coisas que se fazem para 
garantir que não estamos no inferno.”

A outra imprensa rosa


Comprei o “Financial Times”, o FT, este fim de semana. Por muitos defeitos que tenha, é um extraordinário jornal. Mas só o compro às vezes. Sai-se sempre mais “rico” depois de o ler, embora não seja barato. E, por estes dias, não é muito útil o belo suplemento dos sábados, “How to spend it”, que ajuda a perceber onde quem é realmente rico gasta o seu dinheiro.

Uma tarde, também de sábado, nos anos 90, em Londres, fui ao mítico e já desaparecido velho estádio de Wembley, para ver uma final da Taça de Inglaterra. Apanhei o metro, metido na fauna dos apoiantes das duas equipas, que, por essa hora, ainda estavam no tempo de relativo sossego que, por lá, antecede as grandes partidas. O ambiente era galhofeiro, sem agressividade, embora com muitas "bocas", a maioria num intraduzível "cockney".

Alguns, embora escassos, viajantes liam tablóides, tipo "Sun", "Today" ou "Daily Mail". Jornais pequenos, comparado com os “broadsheet”. Distraído, recostei-me num banco e deliciava-me com o FT do dia. Não me tinha dado conta que, naquele ambiente, ter nas mãos aquele imenso jornal cor-de-rosa era quase tão natural como ler "O Diabo" num "centro de trabalho" do PCP.

A certo ponto da viagem, percebi que alguns olhares convergiam sobre mim. E algumas "bocas" também. Até que um grandalhão, vestido a rigor de apoiante de clube, me espetou o dedo no jornal e inquiriu: "Hey, bud! What the hell are the pink sheets you're reading?". A situação não era fácil. Dar explicações era descabido, recolher o jornal seria cobardia. Já havia um público para a cena. Com um sorriso amarelo, saiu-me: "Wanna see the weather forecast?". Não estava seguro de ter sido a melhor deixa, mas foi o que me saiu. Para meu imenso alívio, o grandalhão sorriu. E lá seguimos para mais uma "Cup Final". No regresso, com metade do metro zangado com o mundo, viajei prudentemente com o FT debaixo do braço.

Há dias, na net, descobri que há mesmo dicas sobre como dobrar o FT do fim-de-semana, mesmo sem o suplemento! Elas aqui ficam.

domingo, abril 26, 2020

O homem da bandeira



Ontem, quando vi a fotografia do homem que percorreu sozinho a Avenida da Liberdade, no dia dela, com uma grande bandeira nacional às costas, lembrei-me de uma figura que, durante a ditadura, sempre em solene silêncio, surgia com uma idêntica bandeira nos atos públicos oposicionistas. A primeira vez que recordo tê-lo visto foi no funeral de António Sérgio, nos Prazeres, em janeiro de 1969.

Era um homem alto, magro, de cara seca e fechada. Aquela imensa bandeira, que imagino irritasse a polícia que sempre por ali andava, fardada ou travestida, era, em si mesma, um imenso berro à liberdade. Um dia, vim a saber que o homem se chamava Américo.

Ao que agora apurei, depois do 25 de abril, o Américo passou a surgir nas manifestações do Partido Socialista. Mas eu, no PREC, nunca frequentei as manifestações do PS. Andava por outras paragens...

É pena se não foi dada ao Américo a Ordem da Liberdade e não teve a bandeira nacional a cobrir-lhe o caixão, na hora da morte.

Ainda no dia de ontem, ao ver o filme de Glauber Rocha sobre o 1° de maio de 1974, surgiu-me a imagem do Américo, o homem da bandeira.

Descansem, para o ano há mais!


Hoje, alguns estarão a pensar, lá para si: “Ufa! Felizmente, lá se acabou a data! Só daqui a um ano é que vamos ter de aturar outra vez o Zeca, a Grândola, os cravos e aquela coisa dos tipos!”

É verdade! Acabou. Mas, para o ano, podem ter a certeza: cá estaremos a atazanar-lhes o dia.

sábado, abril 25, 2020

Dignidade


Uma cerimónia com grande dignidade.

Ferro Rodrigues tinha razão. 

Marcelo Rebelo de Sousa fez um notável discurso.

Viva o 25 de Abril! Sempre!

O voto


8 de novembro de 1925, foi o dia das últimas eleições para a Câmara de Deputados, sob a Constituição da República. Livres.

Depois, veio a ditadura militar, sucedida pelo Estado Novo. Não podendo fugir ao ritual do voto, a “democracia orgânica”, no fascismo de trazer por casa que nos saiu em rifa, organizou ritualmente “eleições”, umas fantochadas em que nem eles próprios acreditavam, mas que, no pós Segunda Guerra, obrigou o “manholas” de Santa Comba, num discurso que poluiu de hipocrisia o espaço nobre onde hoje se comemorou a liberdade, a garantir, “para inglês ver” e para que os aliados lhe salvassem a pele no dealbar da Guerra Fria, que elas seriam “tão livres como na livre Inglaterra”. Viu-se! Vieram depois as “chapeladas”, as falcatruas, com os Legionários a votarem em várias mesas. Até que, numa certa madrugada, os pusémos com dono.

Hoje, Eduardo Ferro Rodrigues, na sua intervenção na Assembleia da República, lembrou - e creio que foi o único a fazê-lo - que, faz hoje 45 anos, se realizaram eleições livres, que por cá não tinham lugar há meio século.

A partir daí, Portugal é tido no mundo por um dos países onde o sistema eleitoral é mais fiável, sem mácula democrática, tendo escolhido presidentes, deputados e autarcas de todas as principais tendências políticas.

Para o que hoje nos importa, o Movimento das Forças Armadas prometeu, no dia 25 de abril de 1974, organizar eleições livres para uma Assembleia Constituinte, a terem lugar um ano depois. No dia 25 de abril de 1975. Há precisamente 45 anos. E assim aconteceu. Convém lembrar.

Hotel


A grande homenagem ao 25 de Abril seria alguém criar, numa das principais ruas de Campo de Ourique, a Rua Saraiva de Carvalho, um Hotel Saraiva de Carvalho. Estou certo que a homofonia desencadearia um sucesso comercial.

Salazar, p’cebe?


Na casa ao lado da minha, aqui na Lapa, às 15 horas, alguém gritou: “Salazar!”. Foi também para estas pessoas, embora elas o não saibam, que se fez o 25 de abril.

Ai Madragoa!


Ouviu-se pouco a “Grândola” na Lapa. Ou melhor, o que se ouviu vinha da Madragoa. Nada de novo!

Cravos vermelhos, claro!


Hoje, ao almoço, a nossa mesa tinha dois cravos vermelhos.

25 de abril, sempre!

Serviço público


Sabem qual foi a única estação que, em sinal aberto, transmitiu, na totalidade, as cerimónias na Assembleia da República? A RTP.

Nos restantes operadores televisivos, só “teve” 25 de abril quem paga televisão por cabo. Chama-se a isto serviço público!

O dia mais feliz?


Vejo muita gente, com a maior sinceridade, dizer que o 25 de abril de 1974 foi o dia mais feliz das suas vidas. Embora me ficasse bem dizê-lo, não se passou assim comigo.

Passei toda essa manhã angustiado. Lembro-me de mim, nervoso, na parada da Escola Prática de Administração Militar, aconselhando, com escasso sucesso, os soldados-cadetes, nesse dia sem instrução, a manterem-se nas casernas. Porquê? Sei lá! Porque sim, porque na tropa as razões não têm necessariamente de ser justificadas.

Por essa altura, não sabíamos se o golpe tinha tido sucesso, apenas íamos ouvindo os comunicados do “posto de comando” - uma falsidade, porque o posto de comando (viémos depois a saber) estava na Pontinha e aquilo era lido do Rádio Clube, na Sampaio e Pina.

O nosso pessoal, chefiado pelo capitão Bento e pelo alferes Geraldes, com o aspirante António Reis a dar o toque “político” às hostes, estava, desde as primeira horas da madrugada, a ocupar a RTP, não muito longe dali, também na Alameda das Linhas de Torres. A nossa unidade fora a primeira a avançar na Revolução. Também só me apercebi disso dias depois.

A certa altura, inesperadamente, surgiu na parada o comandante da unidade, o coronel Fidalgo, vindo da sua residência adjacente. Já me fartei de contar a história, quase caricata, de como tivemos de o deter, vencendo grandes hesitações por parte dos militares profissionais. Depois, mandámo-lo para casa.

Ainda o assunto estava em curso de resolução, quando surgiu o segundo-comandante, o major Nogueira da Silva. Lembro-me de dar uns berros a dois soldados que começaram a insultá-lo. Uma revolução não dispensa a manutenção da disciplina hierárquica, se não passa a ser uma bandalheira. Afinal, o Nogueira da Silva, que era um “chicalhão” (sinónimo de militarão), viria a revelar-se um democrata.

A meio da manhã, chegou Marcelino Marques, um coronel antifascista, afastado pela ditadura, que vinha assumir o comando. Era um homem agradável e talvez estivesse à espera de que também o fôssemos.

Ora no dia seguinte, na biblioteca da unidade, ele iria ter de aturar uma arenga minha e do Teixeira, em nome dos oficiais milicianos, sobre a “tibieza” daquilo que era anunciado sobre a política colonial. Semanas depois, chamar-me-ia ao seu gabinete, para mostrar o seu desagrado com um meu discurso público, no juramento de bandeira, em que eu havia denunciado a postura repressiva do MFA numa greve, que tinha originado a detenção dos nossos colegas Anjos e Marvão. O meu “divórcio” com Marcelino Marques, uma jóia de pessoa, teria lugar não muito tempo depois, comigo a ser simpaticamente convidado a afastar-me da unidade, por “incompatibilidades com a hierarquia interna”, pelo facto de eu me ter recusado a solidarizar-me com uma punição a um soldado-cadete, que só me recordo chamar-se Loff. Mas eu e Marcelino Marques ficámos para sempre com uma excelente relação pessoal.

O resto do meu dia 25 de abril seria passado na RTP. Chegavam notícias de que as coisas estavam a correr bem pelo país. Pela rádio, íamos seguindo o que se passava no Carmo, onde o nome de um tal Salgueiro Maia era referido, sabendo-se que Caetano estava prestes a cair. Depois, foi uma longa espera. Primeiro, para conseguir pôr a antena de Monsanto a funcionar, operação por muito tempo boicotada por um “patriota” renitente. Mais tarde, foi o aguardar da Junta de Salvação Nacional, junto às antigas bombas de gasolina, antes do início da rampa que levava aos estúdios do Lumiar.

A escolha de Spínola para chefiar a Junta não me agradava minimamente. Vê-lo chegar, com Costa Gomes e os outros, era, contudo, o anúncio de um tempo que, fosse ele o que viesse a ser, seria sempre muito diferente. Lembro-me de ter seguido com eles pela ladeira acima. Fiquei depois atrás das câmaras, a ouvir a proclamação. Que, pelo tom, não me agradou nada. Eu, no meu radicalismo, estava já de pé atrás.

A minha noite acabou tarde. Nunca consegui perceber onde dormi, apenas me recordo de mim, logo de manhã, de novo a coordenar o piquete de soldados, junto às bombas de gasolina, na tal entrada para a RTP. Passou um autocarro e lembro-me de ter dito adeus ao Eduardo Prado Coelho que ia nele, e que eu esperava que já me tivesse perdoado pelo facto de, quatro anos antes, com o Nuno Júdice, lhe ter invadido uma aula na Faculdade de Letras.

Regressei à unidade e fui entregar a pequena metralhadora FBP com que tinha andado nas últimas 48 horas. O sargento armeiro que a recebeu deu uma gargalhada: eu tinha levado um carregador errado, que era de uma metralhadora Vigneron. Se eu quisesse ter dado um tiro, durante todo o dia 25 de abril, não tinha conseguido. Às tantas, foi melhor assim. Ser oficial de Ação Psicológica não me tinha dado uma grande preparação operacional. E o dia 26 avançava já, comigo a manter-me politicamente inquieto. Ser radical raramente é sinónimo de se ser feliz.

Assim, que me recorde, o 25 de abril esteve longe de ser o dia mais feliz da minha vida. Ou talvez eu tivesse sido bem feliz nesse dia e, afinal, não sabia.

De que lado estavas, no 25 de Abril?


A ideia de que o 25 de Abril foi “de todos” é uma balela: o 25 de Abril fez-se contra muita gente, que tem nomes e que eu não esqueço.

A liberdade hoje é de todos, mas a luta pela liberdade foi só de alguns.

sexta-feira, abril 24, 2020

Mauzinho, me confesso


Há uma coisa em que, admito, sou “mauzinho”: sinto um indizível gozo ao pressentir o mal-estar com que, todos os anos, quando a televisão e as ruas se enchem de filmes, canções, cravos e clamores de “Viva o 25 de Abril” ou “25 de Abril sempre!”, isso irrita por aí uns tantos.

Alguns amigos sabem que estou a pensar neles, coitados!

Agora, Moro


E lá foi “à vida” Sérgio Moro!

Agora, muitos de quantos elogiaram a vedeta do Lavajato, vão afirmar que ele traiu o presidente que lhe deu um palco político, ferindo-o num momento de uma óbvia fragilidade.

Outros, mesmo alguns que o diabolizaram pelo modo como se comportou naquele processo, mas porque lhes dá jeito esta bofetada em Bolsonaro, vão dizer que o homem saiu com alguma dignidade, para não ter de fazer mais fretes políticos ao presidente.

Vamos ser claros: estamos a falar da mesma pessoa que, independentemente de ter conseguido meter na prisão gente que bem o merecia, o fez através de uma operação político-judicial cheia de irregularidades processuais, com finalidades políticas que iam muito para além dos objetivos da justiça. Um processo que, no fim da linha, teve como consequência a eleição de uma figura como Jair Bolsonaro, tendo Moro, como prémio, o lugar de ministro da Justiça.

A questão, no dia de hoje, é, assim, bem simples: Moro, que passou todos estes meses no governo a fazer vergonhosos fretes a Bolsonaro, e que, com a sua presença no executivo, ajudou a avalizá-lo perante a opinião pública, não aguentou tudo o que, num excesso já obsceno, lhe era agora pedido. Ou alguém acredita que Moro só agora descobriu quem, na realidade, era Bolsonaro? Ou será que a sua súbita “coragem” pode ter algo a ver com o facto do governo de que fazia parte estar já apodrecido e decadente? E se se vier a constatar que esta saída de Moro está conjugada com o início de um processo de afastamento do presidente? Ou será que o próprio Moro gostaria de viver no Palácio da Alvorada?

Logo veremos.

Posso ir à praia?


Leio que, devido à crise sanitária, é bem possível que o acesso às praias, este Verão, passe a ficar condicionado, para evitar aglomerações. Já estou a imaginar o que vão ser as filas matinais para inscrições!

Como eu só costumo ir para a praia cerca da quatro da tarde, estou curioso sobre como vai funcionar o esquema para “late risers”. Mas não é nada de que eu não tenha já alguma experiência.

Em 1980, vivendo na Noruega, deu-me para ir passar uma semana de férias em Ialta, no mar Negro. Vivia-se o tempo soviético, em todo o seu esplendor burocrático.

Na receção principal do hotel - escrevo “principal” porque, na URSS desse tempo, os hotéis tinham, além dessa, uma receção em cada andar, onde ficavam guardadas as chaves dos quartos - foi-nos entregue, à chegada, um boletim individual, com o nosso nome, com espaço para dois carimbos, por cada dia de estada: era a “autorização” para ir à praia. Na véspera, informávamos se queríamos ir de manhã ou de tarde e era colocado, no espaço próprio, um carimbo permitindo esse acesso. Achámos bizarríssima a ideia, mas, como logo aprendemos, não era mais do que a que tivéramos ao ter escolhido fazer férias soviéticas...

O nosso hotel era imenso, dando sobre a praia. Acedia-se a esta por um único elevador. À sua entrada, havia uma senhora a quem era necessário mostrar o tal boletim e que cuidadosamente, com cara patibular, verificava se, para o período do dia e data em que se estava, estávamos autorizados a descer até à praia. E que contava cuidadosamente o número de passageiros. Chegado o elevador ao nível da praia, à saida, lá estava outra senhora, a quem tínhamos de mostrar de novo o cartão e que, percebi, repetia a contagem. Já não recordo o procedimento de regresso.

Na primeira noite, ao jantar, inquiri da guia norueguesa que nos acompanhava o que é que aquilo significava: é que, a menos que tivesse “nascido” alguém no curso da descida, as pessoas que saíam do elevador eram exatamente as mesmas que nele tinham entrado, umas dezenas de metros mais acima.

A guia, que passou todas essas férias numa preocupação com os meus constantes protestos e observações, aculturada que já estava àquelas práticas, explicou-me: “É muito simples: a primeira funcionária é a responsável pelo número de passageiros que segue no elevador, e segunda faz o controlo sobre o trabalho da primeira, não vá ter ido gente a mais”. Creio, mas não estou certo, que não se riu ao dizer isto...

Agora que passam 150 anos sobre o nascimento de Lenine, constato que não notei se, no seu túmulo, na Praça Vermelha, em Moscovo, para ver o seu corpo embalsamado, é feita uma contagem dos visitantes à entrada e outra à saída. É que, na realidade, pode dar-se o caso de ficar lá por dentro alguém...

quinta-feira, abril 23, 2020

“Olha quem ele é!”



Há uma semana, ao ver o “J’Accuse!”, um belo filme de Roman Polansky, numa cena em que surge muita gente a assistir a um espetáculo musical, descortinei, por instantes, o rosto inconfundível do realizador, como figurante silencioso no seu próprio filme.

Lembrei-me então das muitas vezes em que Alfred Hitchcock fazia essa aparição nos seus filmes, o que, muito provavelmente, terá levado outro génio da realização, e seu confessado admirador, François Truffaut, a proceder de idêntica forma.

É um “vício” antigo de alguns realizadores deixarem nas suas obras essa marca curiosa, as mais das vezes silenciosa. Scorsese, Spielberg, Godard e alguns outros fizeram essa graça. E alguns até “trocaram”: estou a lembrar-me de ver Truffaut com um papel nos “Encontros imediatos...”, de Spielberg.

No dia seguinte, num canal de cabo, “comprei“ o “Parque Mayer”, de António-Pedro de Vasconcelos, que não tinha conseguido ver na estreia.

Faço parte de quantos gostam muito do cinema que o público gosta de ver. Digo isto porque há uma escola de atitude que adora filmes que ninguém vai ver. Está no seu pleno direito. Em toda a minha vida, creio ter visto todas, repito, todas as longas-metragens portuguesas - desde as mais populares àquelas que apenas são vistas pelos amigos do autor e pelos que detestam as dos outros, sendo que estes dois últimos universos geralmente coincidem. Sinto-me, assim, à vontade para dizer que gosto muito de quase toda a filmografia de António-Pedro de Vasconcelos. Desde o “Perdido por Cem” até este belo “Parque Mayer”.

Porque não conhecia alguns dos atores deste filme (problema de quem não vai muito ao teatro), estive muito atento, no fim, à enunciação do elenco. E o meu espanto foi encontrar, na base da lista, o nome do António-Pedro, na personagem de “Ministro”. Dei voltas à cabeça e não consegui descortinar nenhuma figura similar que tivesse visto no filme - e não é fácil ele passar despercebido. Lá fui eu, de comando em punho, à procura de APV, em toda a película. Não o descortinei.

No dia seguinte - para grandes males, grandes remédios! -, porque a curiosidade é um “defeito” que nunca curei, telefonei ao realizador: “Olha lá! Onde é que tu entras no filme, que não te consegui encontrar?”. O António-Pedro riu-se e recomendou-me que fosse rever uma cena à saída do prostíbulo, em que um figurante passa ao lado de duas das principais personagens do filme. Assim era, um instante APV. Falei-lhe então da “mania” de Hitchcock e de Truffaut. Ele notou que também Charlie Chaplin tinha feito um papel na “Condessa de Hong-Kong”. Não me recordava.

Nessa mesma - mesma! - noite, a RTP 1 passou a “Condessa de Hong-Kong”, uma comédia (tardia) de Chaplin, com Marlon Brando e Sophia Loren. Diga-se: um filme menor, que parece uma peça de Feydeau, com portas a abrir e a fechar, com excelentes atores a fazerem um “frete” a um génio em decadência. Aproveitei para rever o filme e, claro, como o APV tinha avisado, nele surge, a certo ponto, o velho Chaplin, por duas vezes, no papel de um camareiro. Mas mais: o “resto” da família, desde Geraldine a umas netas sem graça, também por ali acabam por figurar, metidas “a martelo”.

Voltando à “vaca fria”: recomendo que vejam o “Parque Mayer”! É um belo filme, ao mesmo tempo uma excelente homenagem a uma certa Lisboa, que se enfarpelava para ir ver as revistas, se divertia nos seus subentendidos e trocadilhos, e que, antes das sessões (duas sessões por dia, três aos fins de semana), ia jantar ao Chico Carreira ou ao Manel, arriscava um “vai um tirinho, ó freguês!” e, em tempos pouco abonados, batia palmas com “bilhetes de claque”, como eu próprio fiz, algumas vezes. Noutras noites, já mais “profundas”, acabava-se no Galo, lembram-se?

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...