O jogo era péssimo. O futebol daquele país estava longe de proporcionar grandes espetáculos e a transmissão televisiva, a preto e branco, com escassos meios e uma ainda mais escassa técnica, era de uma imensa pobreza. Mas, com a chuva que caía, pouco mais havia para fazer na residência portuguesa, naquela cidade de um país em guerra, onde eu fora visitar um colega em posto e já tínhamos colocado a conversa em dia. Com uma cerveja a acompanhar, a emissão ajudava a passar as horas, até porque o meu avião de regresso era só na tarde do dia seguinte.
A certo ponto, a imagem televisiva estragou-se, por segundos, regressando depois à sua qualidade habitual. Mas por pouco tempo. A partir daí, sem regularidade temporal, o incidente repetia-se. Ver o jogo tornava-se um exercício difícil. Ah! e, naquele país, só havia um canal televisivo, claro.
- É sempre isto! Com estas variações de luz, estragam-se os aparelhos todos. Uma arca já foi à vida e o frigorífico está com problemas. Já coloquei estabilizadores de corrente, mas não adianta. E, sabes?, ainda eu tenho a sorte deste ser um acesso elétrico que me foi dado pela polícia. É um fio que liga à esquadra, que fica ali atrás. O comandante é meu amigo e foi ele mesmo quem sugeriu podermos fazer uma ligação direta, para poder beneficiar do gerador deles, quando há falhas gerais de energia. E o "quarto andar"* nem sabe o que poupa! Imagina agora o que sofre o resto da gente desta cidade!
Eu continuava a tentar olhar o errático écran e perguntava-me se Lisboa alguma vez tinha consciência das dificuldades com que se defrontavam diplomatas e outro pessoal destacado, despachados para postos recônditos, perdidos pelo mundo, sujeitos a privações constantes, à insegurança e às doenças típicas dessas terras, que muitas vezes os obrigavam a separar-se das famílias. Tendo essa gente, como gozo supremo, numa tarde de chuva, jornais atrasados chegados pela "mala", ou um livro e um disco como os que eu lhe levara. E, claro, transmissões de futebol medíocre e outros programas de nível congénere, acompanhados de uma, duas, três, mil cervejas, para almofadar o quotidiano.
Um velho empregado entrou na sala, para perguntar se queríamos (claro!) mais uma cerveja. Ao passar pela televisão, com as sucessivas interrupções de imagem, deixou cair:
- Eles hoje devem ter muitos trabalhos, patrão.
O meu colega terá notado o meu olhar perplexo, face ao comentário, e esclareceu, vi que um pouco embarçado:
- Aí o meu pessoal, que sabe das entradas e as saídas na esquadra da polícia, acha que algumas destas quebras na luz são devidas aos choques elétricos durante os interrogatórios aos "do inimigo". Se calhar têm razão, sei lá! Não posso perguntar-lhes, não é?
Concentrou-se na televisão, irritado:
- C'os diabos, ao menos os polícias podiam gostar de futebol...
* Nome pelo qual os diplomatas designam a administração do MNE
* Nome pelo qual os diplomatas designam a administração do MNE