Muitos amigos e outras pessoas que me não conhecem bem terão visto e ouvido hoje o meu nome citado num contexto de polémica. Sinto-me no dever de lhes dar uma satisfação. E faço-o sem menor embaraço, porque as coisas são bem simples e claras.
A história que agora de novo emerge a público é uma efabulação requentada, que há anos anda pelas redes sociais, alimentada pelos cultores habituais das teorias da conspiração.
Convém assim contá-la de forma completa, para que dela não fique apenas a caricatura distorcida pelo viés. É mesmo por essa razão que entendo que uma investigação judicial sobre este assunto é bem vinda. Pena é que ninguém me tenha chamado até hoje a esclarecer quaisquer dúvidas que existissem, de que só vim a saber agora pela imprensa.
Por isso, vamos aos factos.
Em inícios de 2012, fui informado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de que, num processo de contenção orçamental, o governo de então havia decidido terminar com a existência de um embaixador junto da Unesco, função que passaria a ser desempenhada, em acumulação, pelo embaixador em Paris, cargo que, à época, eu ocupava. Não foi caso único: o mesmo iria ocorrer em Viena, onde o embaixador bilateral passou também a acumular com a delegação junto da OSCE.
Semanas depois, fui chamado a Lisboa, onde a ministra da Agricultura, de um governo PSD/CDS, que tinha então responsabilidades na área do ordenamento do território, me informou de que, no quadro das novas funções que eu ia desempenhar na Unesco, existia um sério problema para o Estado português: uma missão enviada pela organização, que, no ano anterior, tinha estado em Portugal, alertada por associações ambientais que se opunham à construção da barragem Foz Tua, tinha produzido um relatório em que suscitava dúvidas sobre a compatibilidade da construção da barragem, então já em adiantado curso, com o estatuto do Douro como “património mundial” da Unesco. Esse relatório continha, no entanto, vários “remédios” que deveriam ser executados, para que fosse possível manter essa compatibilidade. Segundo a ministra Assunção Cristas, Portugal tinha já em curso um conjunto de medidas para corrigir as deficiências apontadas.
Qual era, então, o problema? É que a Unesco tinha a intenção de levar à reunião anual do Comité do Património Mundial, que iria ter lugar tempos depois em São Petersburgo, uma proposta para que as obras da barragem fossem entretanto suspensas. Se Portugal assim não procedesse, iniciar-se-ia um processo de retirada do estatuto de “património mundial” ao Alto Douro Vinhateiro.
O governo português estava, assim, seriamente preocupado. No cenário limite do projeto da barragem não poder ir por diante, para preservar aquele valioso estatuto, o Estado teria de pagar à concessionária, a EDP, uma indemnização se orçava em cerca de 400 milhões de euros.
Foi-me pedido que tentasse negociar com a Unesco uma fórmula que permitisse assegurar uma continuidade dos trabalhos, mesmo que a ritmo mais lento, até que uma nova missão pudesse apreciar se as obras de correção, entretanto feitas, eram suficientes para acomodar as preocupações da organização. Foi isto que me foi solicitado.
E foi isso que fiz. Chegado a Paris, elaborei, durante semanas, com os membros do Comité do Património Mundial, uma fórmula que permitia a continuidade dos trabalhos que estavam a ser desenvolvidos em profundidade, até uma nova missão da Unesco viesse a ter lugar, ficando suspensa toda a obra à superfície - porque era precisamente o efeito sobre a paisagem que era contestado.
Esse acordo veio a ser aprovado na reunião anual do Comité, que teve lugar em São Petersburgo, em que intervim em nome do governo português.
De regresso a Paris, requeri, com caráter de urgência, a deslocação ao Douro de uma nova missão da Unesco, por forma a poder aquilatar do cumprimento das recomendações que haviam sido feitas pela primeira missão. Pedi, expressamente, que essa segunda missão incluísse a relatora da primeira, porque ela seria a melhor testemunha da nossa transparência, abertura e boa vontade.
Essa segunda missão deslocou-se ao Douro, algumas semanas depois. Reuniu com ambientalistas opositores da barragem e com autarcas favoráveis à obra, além de fazer, durante alguns dias, uma detalhada observação do que fora, entretanto, executado, respondendo às anteriores objeções.
Algumas semanas mais tarde, a Unesco anunciou que, como consequência desse segundo relatório, que avaliara positivamente o que fora entretanto feito por Portugal, era permitida, no essencial, a continuidade das obras da barragem.
A Unesco concluía, assim, que a construção da barragem Foz Tua era compatível com o estatuto de “património mundial” do Alto-Douro Vinhateiro.
Uma das melhorias feitas, recordo-me, havia sido o “enterramento” da central elétrica, obra que, há poucos anos, valeu um prémio arquitetónico ao arquiteto Souto Moura.
Dei assim o meu trabalho por encerrado neste assunto.
Faço aqui um parêntesis para referir que o problema da construção da barragem e a consequente afetação do vale do Tua é um tema sério, que mereceu e ainda merece discussão pública. Será que a barragem era mesmo necessária? A sua construção teve ou não efeitos negativos na conservação do rio e do seu vale, com as várias consequências que a subida das águas provocou?
São questões respeitáveis, mas, como se compreenderá, a um funcionário como eu era, não sendo minimamente perito na matéria técnica em causa, não competia ter estados de alma, mas apenas levar à prática as determinações que havia recebido de quem geria, com legitimidade democrática, o Estado. Foi o que fiz. Em idênticas circunstâncias, e em total consciência, faria hoje exatamente o mesmo. Como qualquer outro colega meu o faria, estou certo.
Pelo trabalho profissional executado, recebi então felicitações do governo e de outras entidades públicas nacionais. No entanto, havia-me limitado a cumprir mais uma tarefa de Estado de que fora incumbido, como outras que levara a cabo no passado, da melhor forma que sabia e podia.
Recordo-me que, por parte das associações ambientais, que pretendiam evitar a construção da barragem, passei a ser fortemente criticado, pelo que chegou a ser considerado o meu “excesso de zelo diplomático”! Pelas redes sociais, cheguei a receber ameaças de morte.
O trabalho diplomático desenvolvido pela nossa delegação junto da Unesco, sobre a barragem Foz Tua, desenrolou-se entre Março e Agosto de 2012.
Por ter atingido o limite de idade para o exercício de funções públicas no estrangeiro, regressei definitivamente a Portugal em janeiro de 2013. Aposentei-me em março desse ano.
A partir de então, isto é, nos últimos sete anos, recebi inúmeros convites para colaborar com empresas, fundações, universidades e outras entidades. Uns aceitei, outros recusei. Algumas dessas atividades foram e são remuneradas, muitas outras foram e continuam a ser exercidas pro bono.
Não sou, com certeza, o melhor julgador das razões que motivaram o interesse dessas entidades, mas imagino que a experiência que colhi na minha longa carreira diplomática, para aconselhamento em áreas de consultoria estratégica, possa ter justificado esses convites.
Faço um parêntesis para notar que só em Portugal é que parece estranho que um embaixador, encerrada a sua carreira pública, passe a trabalhar no setor privado. Em países como o Reino Unido, a França, a Espanha e tantos e tantos outros, esta é uma prática generalizada. É considerado perfeitamente natural que os conhecimentos recolhidos pelos diplomatas possam ser postos ao dispor dos operadores económicos, em especial em análises de risco de mercados externos e juízos de evolução geopolítica.
Igualmente absurda é a ideia, que por cá parece prevalecer, de que um diplomata não pode ir trabalhar, no final da sua carreira pública, para uma empresa privada com a qual haja porventura contactado, durante o seu percurso profissional. Ao longo da minha vida, nos diversos postos em que estive colocado, como acontece com qualquer outro colega da minha profissão, lidei com muitas dezenas de empresas portuguesas, nomeadamente dando-lhes apoio nas suas diligências e negócios. Fi-lo, sempre, em consonância e em cumprimento de instruções recebidas dos 21 ministros dos Negócios Estrangeiros de quem dependi, no âmbito da execução da diplomacia económica que me era determinado desenvolver.
Em 2016, isto é, quatro anos depois de ter atuado em representação do Estado português junto da Unesco, recebi um convite para o cargo de administrador não-executivo da EDP Renováveis, em empresa dedicada à energia eólica e solar. Nessa altura, a minha experiência de administração em outras empresas com forte ação internacional já tinha mais de três anos.
Aceitei esse convite com o orgulho de poder ficar a colaborar, na área de aconselhamento estratégico, precisamente com as três maiores empresas portuguesas que, operando em setores muitos diferentes, atuam hoje no mercado internacional - no seu conjunto, estando ativas em 42 países e neles gerando um total de cerca de 150 mil postos de trabalho.
Só pode derivar de uma doentia teoria conspirativa, configurando, além disso, uma insinuação altamente ofensiva, a ideia de que a aceitação do convite para o exercício de funções na EDP, a partir de 2016, possa ter tido alguma relação com o trabalho que, alguns anos antes, em nome do Estado português, e exclusivamente para defesa dos interesses desse mesmo Estado, eu havia desenvolvido junto da Unesco, nos escassos meses em que aí desempenhei funções. É que essa foi uma tarefa que, relembro, terá evitado que o Estado tivesse de indemnizar fortemente... a EDP!
Perceba-se, de uma vez por todas: a ação desenvolvida não beneficiou a EDP. Se a construção da barragem tivesse parado, a empresa teria direito a receber uma forte compensação, por uma obra que não iria concluir. O trabalho diplomático em que estive envolvido terá, isso sim!, ajudado a evitar que os contribuintes portugueses pudessem ter de pagar cerca de 400 milhões de euros à EDP. O argumento da calúnia que tem vindo a ser lançada funciona precisamente ao contrário.
Estou certo que os governantes de então, que me deram as instruções que rigorosamente cumpri, com a lealdade funcional que sempre foi a minha, bem como o Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde repousa a nossa memória profissional, podem prestar o testemunho necessário sobre este assunto.
Quem possa andar lançar este tipo de insinuações revela uma profunda falta de respeito pelo percurso de quem dedicou mais de quatro décadas ao serviço público, a cujo topo profissional chegou por um mérito que nunca viu contestado por ninguém e que, talvez por isso, acabou por ser reconhecido com a atribuição da mais elevada condecoração do país a que um servidor público pode ambicionar.
Alguns dirão que esta explanação é longa, desnecessária e, provavelmente, não convencerá, em nenhuma circunstância, quantos têm já as suas ideias feitas. Não penso assim. Achei ser meu dever fazê-la. Quem não se sente, não é filho de boa gente. E eu sou-o.