sábado, maio 05, 2018

Lisboa, avenida Marx



Marx nasceu há 200 anos, num 5 de maio. Era um femeeiro, o que, estou seguro, muitos dos meus amigos não considerarão um defeito por aí além. Sobre isso, não digo o que penso. Françoise Giroud, na biografia que fez da sua mulher, a esse propósito, cobriu-o de notas de muito mau comportamento. 

Tinha um grande e rico amigo que lhe financiava muitos gastos (onde é que eu já ouvi isto?), mas chegou a passar dias de fome, dificuldades familiares imensas. Às vezes, na vida, terá sido incoerente com coisas que defendia, como acontece aos melhores. E ele estava, sem a menor sombra de dúvida, entre os melhores dos melhores: era uma inteligência brilhante, um economista e um filósofo que tratava a História por tu. 

Fui seu seguidor. Para utilizar uma expressão que Sophia de Mello Breyner dizia a propósito de um certo crítico literário, na minha juventude eu sabia mais Marx do que aquilo que compreendia... Nos tempos de universidade, para muitos de nós, ser "marxista" estava quase no inevitável "air du temps", qualquer que fosse a tendência que se escolhesse - e elas eram imensas, no menu ideológico disponível. O marxismo, mais ou menos "mecanicista" (que estiver interessado pode aprofundar o conceito), fez parte da escola “primária” de pensamento de muita gente da minha geração. Não deixa, por isso, de ser patético observar o modo como alguns se empenham, nos dias de hoje, em tentar  fazer esquecer esse que foi também o seu tempo. Por mim, não caio nessa, era só o que faltava!

Na minha primeira ida a Londres, no final dos anos 60, entrei por um buraco da cerca do cemitério de Highgate, na altura muito ao abandono, para visitar o seu belo túmulo. Fui a Trier, hoje na Alemanha, à casa onde nasceu, peregrinei por todos (mesmo todos) os lugares onde viveu, bebi à sua memória uma "half pint" no Jack Straw's Castle, o seu pub preferido, em Hampstead. Li-o com avidez, enquanto me achei soldado indispensável na tarefa cívica de mudar o mundo, quer esse mundo estivesse para aí voltado ou não. Tive metros de estante com obras suas, dos seus seguidores, dos seus intérpretes, dos seus múltiplos detratores. Todas jazem hoje na biblioteca onde repousam os livros sobre tudo aquilo em que um dia acreditei. É que isso faz parte de uma herança de ideias que, nem por tê-las abandonado, alguma vez ousarei renegar. Continuo a manter - e digo-o alto, para que não restem dúvidas - um imenso respeito por essa personalidade fascinante que marcou o pensamento político-económico do século XIX, que esteve sempre presente na vida mundial durante todo o século XX - muitas vezes associado a opções políticas sinistras, outras vezes por muito boas razões, mas nunca ausente. Agora, no século XXI, revisitá-lo parece voltar a estar na moda, mas eu, que já dei para esse peditório, que já não faz parte das minhas prioridades de leitura e estudo, não vou por aí. 

Não obstante, quando cruzo a avenida da Liberdade, pela rua Alexandre Herculano, e olho a estátua de António Feliciano de Castilho, lembro-me muitas vezes da frase do meu saudoso professor de Economia Política, Ramos Pereira, que estava longe de ser marxista mas sempre ironizava: "não sei como é que o Salazar deixou erguer em Lisboa uma estátua a Karl Marx"... 

Nada emoldura mais uma pessoa na História do que dela poder dizer-se que o mundo, se acaso ela não tivesse existido, teria sido muito diferente. É o caso de Karl Marx.

13 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Marx ainda perturba apesar de todos os funerais que lhe celebraram.

A leitura ou revisão de Marx é indispensável para aqueles que querem entender e, especialmente, mudar o mundo em que vivemos. "Os filósofos só interpretaram o mundo de maneiras diferentes, o que importa é transformá-lo", disse Marx. Mas há cada vez menos a quem interessa a transformação do mundo, sobretudo entre aqueles que portam os rótulos que se inspiram do seu nome.

Entretanto, há palavras que para aqueles para quem Marx foi uma inspiração, continuam vivas :

“A ganância de mais valia do capital é insaciável. No capitalismo, apenas conta o valor da troca que lhe permite explorar o trabalho humano e extrair o valor acrescentado

O capital não pode viver e desenvolver-se sem absorver este alimento vital, o valor acrescentado:
"O capital é trabalho morto, que, como o vampiro, só se anima sugando o trabalho vivo, e quanto mais absorve mais o satisfaz.”

Anónimo disse...

Para um não-politizado,como eu, este post esclarece tudo do que se passa hoje ainda em Portugal.
Penso que todos os políticos deste país passaram pelas mesmas fases de aprendizagem política como o nosso escriba e no fundo ainda exercem em conformidade.
É o drama deste país ainda estar nas mãos destes enrustecidos marxistas que não souberam acompanhar os tempos, e por isso governarem desta forma.
E... mais não digo senão Lenine me vem, pela madrugada, buscar para me embarcar para a Sibéria como um judeu embarcava para o Campo.

Francisco Seixas da Costa disse...

O não-politizado Anónimo pode dormir muito mais descansado do que dormiam os então crentes de Marx, no tempo em que a viagem era só até Caxias ou Peniche

Anónimo disse...

Olhe que não......Olhe que não Sr. Embaixador.
Em 75 os não politizados estavam pouco dispertos para o 11 de Março. Não se acreditou nos beneficios da tomada do Palácio de Inverno.
E depois..... não é S. Petersburgo tão a Ocidente como Lisboa, mesmo com os militares em alvoroço.
Há também um achega a fazer: Quando Lenine parte da Suiça para a Rússia quem o conhecia? Quem acreditava na sua dureza política e o tomava como uma ameaça?

Anónimo disse...

A homenagem que lhe prestam hoje é a concentração de capital ter atingido níveis que nem ele devia acreditar. O antídoto contra os horríveis regimes que ele inspirou era a classe média próspera que se está a esmagar. Ma ideia.
Fernando Neves

Anónimo disse...

Ele ter nascido há 200 anos foi uma fatalidade desta longa historia humana. A tetravó é que era melhor não ter nascido.

Concordo plenamente quando diz que "Nada emoldura mais uma pessoa na História do que dela poder dizer-se que o mundo, se acaso ela não tivesse existido, teria sido muito diferente.". Sem duvida que sim. O mesmo, aliás, pode dizer-se de Adolf Hitler ou Josef Stalin. O mundo teria sido muito diferente sem qualquer deles. Para melhor!

Zuricher

Joaquim de Freitas disse...

“O mundo teria sido muito diferente sem qualquer deles. Para melhor!”Escreveu o Senhor

Zuricher !!!

Mas quem impediu o vencedor da contenda, o CAPITALISMO, neste caso, de fazer o mundo melhor? Pois que tem todo o poder desde sempre! E hoje mais que nunca, com a maior potência mundial a assegurar-lhe a dominação “urbi et orbi” ?

A crise de 2008 que criou tanta miséria no mundo e cujas consequências continuam a afectar-nos todos, terá sido a culpa do comunismo? Ou do socialismo? Ou a sucessão de evoluções que Marx tinha previsto, bem patentes:

. Na baixa da rentabilidade das empresas (abrandamento da Produtividade Global dos Factores);
- As empresas reagindo a esta evolução reduzem os salários (deformando a partilha das rendas em favor dos lucros);
- Esta estratégia atingindo um limite, quando os salários acabam por ser demasiado baixos (iguais ao salário de subsistência) e os capitalistas lançando-se então em actividade especulativas que fazem aparecer as crises financeiras, como a de 2008. Tudo previsto pelo velho Karl.

Os que diziam desde o século passado, que Marx estava ultrapassado, era doutro tempo, foram os primeiros a reler Marx, em pânico, para compreender o seu próprio sistema, e o que estava a acontecer em 2008.

Quando os economistas burgueses afirmavam que os defeitos do capitalismo eram “sofrimentos passageiros, acidentais”, o que se constata é que a miséria se expande tão abundantemente como a riqueza, e que após dez anos de crise a probabilidade de reedição dum krach do sistema financeiro de amplitude equivalente não diminuiu, antes pelo contrário. Segundo os melhores especialistas, todos os ingredientes estão presentes.

E se o sistema não caiu em 2008, foi que, para o sair do coma e reanimar a economia, foi preciso a injecção maciça de liquidez e taxas directoras nos limites do pensável. Que eu e os outros contribuintes pagaram !

Entretanto , o Sr. Zuricher e outros continuarão a explorar o espectro do comunismo, de Lenine e Estaline, e do fiasco da experiência soviética, e Karl Marx, como a causa do mundo actual, criminalizando todo um período no qual o povo teve realmente o poder, como o de Robespierre em França.

Capitalismo e crise económica são inseparáveis, como dizia Marx. O que me parece inadmissível (não a todos ,eu sei, e leio-os por aqui!), - miséria, desemprego, crise, não é certamente uma anomalia, é na realidade o funcionamento normal do capitalismo. E isto deveria fazer reflectir todos os pequenos burgueses em busca duma “terceira via” , duma alternativa outra que o socialismo.

Anónimo disse...

@ Sr. de Freitas.

"Entretanto , o Sr. Zuricher e outros continuarão a explorar o espectro do comunismo, de Lenine e Estaline, e do fiasco da experiência soviética, e Karl Marx, como a causa do mundo actual, criminalizando todo um período no qual o povo teve realmente o poder, como o de Robespierre em França."

A violência brutal desses regimes enumerados para se imporem fizeram, que com o falhanço do comunismo se faça hoje uma oposição aos mesmos.
Marx poderia ter sido até interssante e humano mas... para concretizar as suas teorias, utilizaram-se métodos humanamente inaceitáveis e assim fizeram com que sejam rejeitados.
Tem de se arranjar outra teoria para proteger melhor os desfortunados.

Anónimo disse...

Chamar ao que se vive hoje em dia no Ocidente de "capitalismo" só por manifesto desconhecimento. Ou má fé.

Em que raio de capitalismo há empresas ajudadas e protegidas pelos Estados? Em que espécie de capitalismo os Estados interveem na economia impedindo o seu normal pulsar e o normal rejuvenescimento do tecido económico? Em que variedade do capitalismo os Estados se metem nos mercados financeiros distorcendo os preços de tudo a tal ponto que hoje em dia e em tudo a livre formação de preços dos activos é impossivel? E muito mais por estas linhas.

Não, Joaquim Freitas, não! O que existe hoje no Ocidente pode ser muita coisa. Mas capitalismo é que de certeza não é.

Joaquim de Freitas disse...

O anónimo…das 14:27, não inventa nada: pensa como a maioria dos europeus desde 1917.

Não pretendo absolver os autores dos massacres da Revolução Russa, como os da Revolução Francesa. Nem os da Revolução Americana.

Andei muito pelos EUA, em missão comercial. Tenho lá muitos amigos com quem discuti frequentemente sobre Lincoln, Grant e Lee.

Quando lhes dizia que Lincoln não negociou com os esclavagistas do Sul, antes de desencadear a Guerra Civil, respondiam-me que “ a causa era justa”, que o “esclavagismo era abjecto” e que os Sulistas deviam ser combatidos pelas armas. E os meus amigos tinham razão. A questão era de saber se teriam agido assim se tivessem podido prever que esta “causa justa”, iria custar 680 000 mortos…americanos! Oito por cento da população, mas muito mais que todas as guerras americanas até hoje no mundo.

Na realidade, era o preço a pagar para “transformar” a sociedade americana.

Mais de metade dos Americanos considera que a “sua” guerra civil é ainda pertinente para compreender a vida politica americana actual.

Quando a burguesia francesa (porque não foi o povo, contrariamente ao que muitos pensam), desencadeou a Revolução Francesa, (aqui próximo de minha casa, em Vizille) tinha um objectivo que era de retirar à nobreza o seu poder económico, conquistar as alavancas do poder feudal que reinava então em França. O que significava, abater o rei, ou seja derrubar o Estado.

O feudalismo francês não era melhor que o esclavagismo americano. A maioria do povo vivia na miséria, com a qual se regalava a classe dominante, os senhores dos “chateaux” e das propriedades imensas onde o pobre paisano não tinha o direito de caçar um coelho…e era severamente punido se o fazia.

O preço a pagar para transformar a França, o preço do Terror, foi de dois milhões de mortos, dizem alguns especialistas. No fundo, foram menos que os mortos das duas guerras mundiais, de 1914 e 1940. O problema é que a França de 1789 só tinha 27 milhões de habitantes. Sete por cento pagaram, assim, a transformação da França, que vai transformar a Europa e o Mundo. Porque os ideais da Revolução Francesa fizeram um longo caminho. Valeu a pena.

A Revolução Russa foi o resultado da situação mais que miserável do povo russo, idêntica à dos Negros americanos, e dos paisanos franceses, vitimas dum feudalismo dos mais retrógrados, personificado pelo Czar, a nobreza e a burguesia.

A reacção dos que possuíam tudo foi aquela que se sabe: violenta. Tanto mais que a principal Reforma prevista era a distribuição da terra aos paisanos.

E a esta violência respondeu a mesma violência dos revolucionários. A vitória da revolução, perante a resistência desesperada dos proprietários da terra, dos grandes burgueses e do Czar, só podia ser assegurada pela ditadura. E a ditadura é violenta

O mundo ocidental não poupou os seus esforços para combater economicamente e militarmente a Revolução, à sua nascença. O que pode parecer normal quando se sabe também o nível de investimento do Ocidente na economia russa até essa época, que automaticamente caía nas mãos dos revolucionários.

Joaquim de Freitas disse...

E assim se construiu "eternamente ", uma representação da Rússia, " nas margens da Europa "civilizada
Apesar dos confrontos armados ou não que afectaram todos os países europeus até ao século XX, o povo russo foi tratado pelos impérios ocidentais em termos quase análogos aos usados contra o "bárbaro" Oriente”.

É verdade que toda sociedade produz estereótipos sobre o outro e constrói essa imagem invertida ou alterada de si mesma. Qualquer sociedade produz uma classificação dos outros, excluindo-os em geral a partir de sua auto-proclamada superioridade.

O facto que o mundo ocidental nunca duvide de si mesmo, mesmo quando utiliza a coerção, e ameaça, afirmando o contrário e sem realizar o inventário rigoroso de sua própria história, é um sinal de barbárie.

O recuo imposto das fronteiras orientais ontem, (com os «acordos» de Brest-Litovsk e Riga), a falta de relações diplomáticas normais, a política hostil do «cordão sanitário» da NATO, hoje, o isolamento-sanção da Rússia Soviética ontem, são globalmente aprovados no Ocidente que, paradoxalmente, acusa os russos da xenofobia...

A Rússia tornou-se para o Oeste o único adversário real, pronto para todas as alianças para lutar contra o sovietismo ontem, e o renascimento da Rússia capitalista hoje, tudo isto adicionado aos séculos de russo fobia, ignorando mesmo a grande cultura deste povo.

O desaparecimento da URSS, 50 anos após o fim da segunda guerra mundial, e o fim do comunismo, não provocou uma profunda mudança no olhar ocidental.

Joaquim de Freitas disse...

Anonimo das 19:31 :- Nao compreendo bem o que escreveu. A não ser que deseje falar do capitalismo de Estado, que significa um sistema económico em que o Estado possui ou controla uma parte essencial dos meios de produção, ou seja, o capital das grandes empresas. A propriedade não é individual, mas colectiva. Neste momento, em França, vemos bem o resultado da interferência do Estado, accionista nos Caminhos de Ferro e na Air France, quando pretende “marchar” a passos largos para o liberalismo.

O Estado, em principio não intervém directamente na economia e na conduta das companhias que possui ou controla. Eu diria:- quando elas vão bem ! Senão, no caso contrário, devemos passar na Caixa para pagar…

Na segunda metade do século XIX, Bakunin (1814-1876) acreditava que a implementação do "comunismo autoritário" levaria ao capitalismo, onde haveria apenas um banqueiro, o Estado.

O termo "capitalismo de Estado " foi criado no final do século XIX. A Alemanha Imperial foi um dos primeiros regimes com a característica do capitalismo monopolista do Estado. A expressão "capitalismo de Estado" foi amplamente utilizada no caso da URSS e, em seguida, na China, para denunciar a aquisição da burocracia sobre as ferramentas de produção.

O “capitalismo de Estado pode corresponder a diferentes sistemas económicos!
Capitalismo total do Estado (União Soviética, Cuba),
Políticas intervencionistas, proteccionistas ou comerciais (por exemplo, a política de Putine na Rússia).

Políticas pró-activas para as empresas, como se verifica em quase todos os países “capitalistas”, incluindo os EUA.

Aqui, a livre -troca resiste dificilmente ao Proteccionismo latente em vários sectores. E sempre a mesma “música” para o justificar: defender os seus interesses e os das suas empresas face à concorrência estrangeira e manter ou desenvolver as suas próprias forças de produção.

O anónimo notou que, em todas as frases, o termo “capitalismo” aparece. Claro que pode ser acomodado com vários molhos, para ser digerido mais facilmente pelos povos.

Mas resta que, "a verdadeira liberdade é inseparável da protecção dos mais fracos. O capitalismo é sinónimo de escravidão para a grande maioria dos homens, sejam eles cidadãos dos países do Sul ou relegados para os estratos desvalorizados dos países do Norte.

Joaquim de Freitas disse...

Ler escravidão onde escrevi "esclavagismo" ! Desculpem e obrigado.

João Miguel Tavares no "Público"