terça-feira, março 15, 2022

O tempo

Este texto é para gente com alguma idade.

Lembram-se do 25 de Abril? Claro que se lembram! O tempo que já passou depois dessa data, não é? Vai para quase meio século. Só gente com mais de 60 anos tem memórias sólidas desse tempo de transição entre a ditadura - que começou nos militares do 28 de maio, depois seguiu com Salazar e caiu com Caetano - a democracia dos cravos vermelhos.

E agora pensem: só daqui a dois dias é que o período democrático, inaugurado pela Revolução de Abril, irá igualizar, em tempo, o período do regime ditatorial inaugurado em 28 de maio de 1926.

Já pensaram bem no que isso significa? Portugal viveu uma das mais longas ditaduras do mundo - e não venham com versões edulcoradas de um regime que censurou, excluiu, prendeu, torturou e matou gente!

Esqueçam!

Desde há meses que os promotores de um blogue pró-russo, de extrema direita, deixam, em tentativas de comentário, quase todos os dias, e sob vários heterónimos, consecutivos links para publicações feitas nessa plataforma. Fazem-no, quase sempre, embrulhando essas ligações em insultos de vária ordem, com expressões racistas, anti-semitas, anti-europeias e, claro, muito anti-americanas. Mal eles sabem que o botão “delete” terá sido inventado para dar o destino devido às suas coisas! Nunca abro as coisas oriundas dessa gente! E gabo-lhes a paciência de continuarem a escrever, talvez na esperança de que eu, um dia, me distraia e ajude à sua propaganda. Se assim é, esqueçam!

Sarilhada

Vou dizer o que pode ser tido como uma banalidade, mas que é o que sinceramente sinto: as decorrências do ataque russo à Ucrânia estão a começar a deslizar para o que pode ser uma grande sarilhada à escala global. Desejo estar a ser pessimista.

Ucrânia


Ao final da tarde de ontem, tive um grande gosto em participar, conjuntamente com o professor Azeredo Lopes, numa palestra organizada pela Associação de Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, dedicada à guerra na Ucrânia.

Foi interessante observar como o tema pode, na serenidade de um ambiente académico, por iniciativa dos estudantes, ser tratado de uma forma rigorosa, sem que as emoções empurrem o debate para um qualquer radicalismo argumentativo. Que diferença face ao modo crispado, às vezes algo censório, como o assunto tem vindo a ser abordado por aí!

Jorge Silva Melo (1948-2022)

 

segunda-feira, março 14, 2022

O país da estrada velha


As redes sociais acabam por ser, frequentemente, um vale de nostalgias. O “antes é que era bom” é, por aqui, o mote costumeiro. As pessoas não se dão conta de que, em regra, a idade tende a cristalizar apenas as memórias positivas. Por isso, as saudades são, quase sempre, apenas as saudades que temos de nós mesmos, nesses outros tempos, em que éramos mais novos, mais saudáveis, sem tantas preocupações, com os nossos ainda junto a nós, em que o futuro, em que tudo parecia possível, estava ainda à nossa frente. 

Lembrei-me disso nestes dias em que, tendo de viajar entre a “Invicta” e Vila Real, decidi, metade à ida, metade à volta, para contrariar a rotina, fazer uma “rota de saudade” pela velha estrada que, no passado, era a única ligação entre o Porto a Amarante, quando a A4 nem miragem era. 

Descontado para estas contas o dédalo do Marão, nesses outros tempos eu quase que conhecia de cor todo aquele percurso, as curvas, os poisos de comida, as lojas à beira da estrada (ainda lá está o inesquecível Bazar Fatinha, na Travanca), as “bombas” de gasolina, os cruzamentos, até algumas árvores que marcam a paisagem. De início, ia por ali em carros de familiares, depois nas camionetas do Cabanelas, mais tarde ao volante. 

Fiz aquilo “mil vezes”. Em todas essas vezes, tive tempo para olhar para tudo, para a Assembleia de Penafiel, para os bombeiros de Baltar (hoje, vi que mudaram de sítio), para uma farmácia, perto de Paredes, numa moradia que eu tinha como modelar: sempre achei que a farmacêutica devia viver em cima e que seria muito cómodo descer, a meio da manhã, para ver como ia a caixa. E, divertido que ia, dei comigo a esperar que uma senhora de forte buço nos viesse vender regueifas, como então o fazia, com elas penduradas no braço, numa higiene pré-ASAE, entrando nas camionetes “de carreira” ou em vendas à berma da estrada. 

De repente, caí em mim, parei a retrospetiva e olhei para tudo aquilo com olhos de ver.

Já experimentaram refazer aquela estrada, sem nostalgias? De Amarante até Ermesinde ou Rio Tinto? Já repararam no horror da maioria daquela paisagem, entre o suburbano degradado e o rural em quase total descaso? Já olharam bem alguns monstros arquitetónicos com que, a cada passo, deparamos, o alumínio das marquises, as cores sinistras e inimagináveis de muitas das casas, as ruínas frequentes, os muros caídos, os azulejos de gosto abaixo de péssimo que enchem as paredes? 

Dá vontade de pedir uma espécie de sindicância estética, requisitar fundos europeus para demolir alguns daqueles monstros ou, como um dia me dizia um amigo apocalíptico, num passeio pelo Algarve, “só um saudável terramoto podia resolver isto”. 

Eu não iria tão longe na cruel metáfora. Mas é desse Portugal, desses “bons tempos”, do país da “estrada velha”, que alguns ainda têm saudades? 

Deixo-os com a imagem de uma esquina arruinada da Tabopan, da Abreu, perto de Amarante, onde, não muito longe, me lembro de haver uma fábrica de caixões. Este é bem a imagem desse Portugal já “falecido”. 

Viva o futuro, caramba!

domingo, março 13, 2022

Sauditas

Em apenas 24 horas foram executadas 81 pessoas na Arábia Saudita: mais pessoas do que em todo o ano de 2021, quando 67 pessoas foram sujeitas à pena capital, ou em 2020, quando o número foi de 27.

As acusações dos condenados iam desde terrorismo a terem “crenças desviantes”.

Não há nada como apanhar o mundo distraído com outras notícias, devem ter pensado lá por Riade.

Tolerância

Ao olhar o que vai pelas redes sociais, percebe-se que a tolerância para aceitar a legitimidade da livre expressão de perspetivas que contradigam aquilo que alguns pensam começa a ser já um bem escasso no mercado das ideias.

Regular o caos

Até a condução de uma guerra, com todos os horrores que ela sempre implica, revela alguma coisa sobre dignidade de um Estado - ou a falta dela. Não é por acaso que nos lembramos de Wiriamu ou de My Lay. A Rússia será sempre medida pelo que fizer na Ucrânia.

Kherson

De entre as muitas e às vezes microscópicas pulsões para “independência” no espaço ex-soviético, confesso que nunca tinha lido nada sobre as ambições da região de Kherson, na Ucrânia, no sentido de se transformar numa “república popular”. Mas estamos sempre a aprender.

Da série…


… das fotografias que gostaria de ter feito. 

Salut, Alain Krivine!


Acabo de ler que morreu, há poucas horas, Alain Krivine. Tinha 80 anos.

"Sabes quem é aquele tipo, ali na mesa do canto? É o Alain Krivine". A mesa onde Krivine estava sentado era a mesma da histórica fotografia de Sartre e de Simone do Beauvoir, no Café de Flore, em Paris. O amigo que me fazia a revelação, nessa noite de há cerca de 10 anos, era o António Silva, com quem a estúpida lei da morte me não deixa agora comentar este episódio, que me trazia à memória outros tempos.

As tardes no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, respondendo aos deputados, durante a presidência portuguesa da União Europeia de 2000, tinham alguma graça. 

O secretariado-geral do Conselho preparava-nos umas respostas em "langue de bois", para as perguntas enviadas por escrito pelos deputados, com antecedência. A "emoção" estava, assim, nas réplicas a que os parlamentares perguntadores têm direito, feitas de improviso, muito mais "livres" e, às vezes, fugindo claramente ao tema da pergunta. 

Devo confessar que me dava um certo gozo exercitar a minha criatividade discursiva nas respostas a essa segunda parte de cada intervenção. Quase tanto como olhar, de viés, para as caras ansiosas dos funcionários do Conselho, que tão ciosamente haviam preparado as respostas "by the book" e que viviam esses momentos de liberdade do representante da presidência com clara expetativa e burocrática angústia.

Entre os deputados eleitos para o PE houve e há figuras gradas da política passada de vários países, muitos ministros e até primeiros ministros e presidentes da República - como Mário Soares. Mas aqueles que me "saíram em rifa", nesse semestre de 2000, foram quase sempre obscuros parlamentares, com nomes algumas vezes muito estranhos, de sonoridades gregas, eslavas ou nórdicas. É que esse tempo é utilizado, quase sempre, para afirmação da devoção desses deputados a causas muito específicas, o que lhes permite uma saliência mediática de que os seus colegas mais conhecidos já não necessitam.

Numa dessas longas tardes de Estrasburgo, ouço o presidente do parlamento anunciar: "Dou a palavra ao deputado Alain Krivine". Acordei do marasmo com aquela menção e, de imediato, procurei, no imenso areópago quase vazio, colocar um retrato no nome acabado de anunciar. O nome de Alain Krivine dizia-me alguma coisa. Figura histórica do trotskismo francês, havia sido candidato à presidência da República, não me passando a mim pela cabeça que fosse então deputado europeu.

Três décadas antes, no início da década de 70, numa visita a Paris, eu fora levado por amigos a assistir a um comício da "Ligue Comuniste Revolutionnaire", que teve lugar na "Mutualité", perto da Sorbonne. (O Joaquim Pais de Brito e o António Belém Lima, estavam então comigo e lembrar-se-ão. Tal como o faria o José Carlos Serras Gago, se, entretanto, não tivesse partido). 

A LCR era um grupo trotskista com certa expressão na esquerda francesa e, embora as teorias de Trotsky pouco me dissessem, achei graça assistir a um comício dessa extrema-esquerda - num tempo em que, em Portugal, apenas a União Nacional e a sua sucessora Ação Nacional Popular reuniam em público sem medo de vigilância policial.

A pergunta que Krivine fez à presidência portuguesa foi, como era de esperar, violenta e agressiva, sobre uma temática que já não recordo. Devo confessar que tenho ideia de que a minha resposta foi mais "soft", nostalgicamente atenuada pela memória de um passado no qual, embora de forma menos radical, eu também acreditava em que os "amanhãs" poderiam vir a cantar. Depois, infelizmente, foi o que se viu...

Naquele final de tarde, no Flore, perguntei ao Francis, que vagueava patronalmente entre as mesas, o que é que Alain Krivine estava a beber. Era um Chablis. Pedi outro para mim. Afinal, como dizia Voltaire, "les beaux esprits se rencontrent".

Hoje, na noite chuvosa de Vila Real, não tenho um Chablis à mão. Sirvo-me de um Bushmills! Salut, Alain Krivine!

Os russos dos mares do Sul


Há quase duas décadas, quando vivia em Viena, fui convidado, pago pela OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), para intervir numa conferência em Sharm el-Sheikh, no extremo sul da península do Sinai, no Egito, organizada em cooperação com uma entidade egípcia ou internacional cujo nome já não recordo. 

Passávamos os dias encafuados em salas fechadas, em graves discussões sobre temas de segurança, com um belo sol, lá fora, a apelar ao baldanço. Mas eu era "keynote speaker" e tinha de levar muito a sério o convite que me tinha sido formulado. Só ao final da tarde é que me aventurava a dar um breve mergulho no Índico. 

A cidade de Sharm el-Sheikh não tem, ao que me lembro, a menor graça, é um mar de hotéis, uns melhores do que outros, todos aproveitando as águas macias e transparentes do Índico, cheias de corais, às vezes, com alguns tubarões, é verdade. 

Mas nem tudo foi banal, nesses dias que por ali passei. Pernoitar no deserto, sob as estrelas, com momentos rituais de absoluto silêncio, bem como visitar o curioso mosteiro de Santa Catarina, na base do Monte Sinai, que eram trajetos obrigatórios para quem ia a Sharm el-Sheikh, foram momentos únicos. 

Recordarei para sempre uma conversa com um padre espanhol do mosteiro, que me falou longamente da sua experiência egípcia, da vida na solidão daquele deserto, e de como isso o tinha feito olhar o conceito do tempo com outros olhos. 

A segurança, ao que parece, impede hoje fazer essas viagens pelo deserto, a exemplo do que também se passa agora no nordeste do Sinai, um deserto onde já não é possível fazer o interessante percurso, atravessando o Suez, entre o Cairo e Al Arish, uma magnífica praia, com hotéis bastante "délabrés", não muito longe da fronteira de Rafah, perto do acesso egípcio à faixa de Gaza. 

Numa das noites de Sharm el-Sheikh, depois de um jantar, resolvi fazer um percurso exploratório pelo hotel onde decorria a conferência e estava hospedado, um imenso espaço desenhado em forma de crescente. Andei pelos jardins e, em certo momento desse passeio, deparei com um local que me pareceu ser um bar. Dele emanava boa música, gente com um ar de turistas, divertidos e ruidosos, com algumas mulheres muito bonitas. Entrei e dirigi-me ao balcão a pedi uma bebida. Notei que alguns dos circunstantes, eles e elas, me olhavam com alguma curiosidade. 

A barwoman que me serviu, que notei que era tudo menos egípcia, perguntou a minha nacionalidade. Satisfeita a curiosidade, explicou-me que, embora me pudesse servir um copo, aquele era "um bar para russos". Ela também o era e, de facto, foi nesse momento que notei que, à volta, tudo estava escrito em cirílico. Quase de certeza, a única pessoa não-russa que por ali parava era eu. Fora a estranheza pela minha inusitada presença, nada de particular se passou. Acabei de beber calmamente o meu whisky e zarpei para o "meu" lado do hotel, com registo de memória desse instante curioso. 

É que, por esses dias, eu havia-me esquecido de que Sharm el-Sheikh, desde o fim da União Soviética, se tinha transformado num local muito popular de férias para os russos de classe média (os que têm mais dinheiro vão para destinos mais glamorosos). Havia por ali vários hotéis praticamente "só para russos" e, naquele em que eu estava hospedado, havia alas que lhes eram totalmente destinadas. Eu é que me perdera por lá, por engano.

Agora, com as sanções financeiras a limitar os seus movimentos, os cartões de crédito cancelados, as férias em risco e as consequências da guerra prestes a fazerem sentir-se de forma muito pronunciada na vida das classes médias do país, os turistas russos devem ter abandonado Sharm el-Sheikh. E como a sanções têm um inevitável efeito “boomerang”, a economia e o turismo egípcios irão sofrer com isso. Nada de bom sai de uma guerra.

sábado, março 12, 2022

Construtores involuntários

Na velha ironia europeia, costuma dizer-se que ao dois idealizadores das Comunidades, Jean Monnet e Robert Schuman, é justiça somar o nome de José Estaline, por ter sido o medo à URSS um dos cimentos essenciais para este inédito processo de cooperação mais estreita entre nações.

Não sabemos se se concretizarão as ambiciosas ideias integradoras que saíram da cimeira da UE de Versailles. Se isso vier a suceder, um outro líder de Moscovo, igualmente por más razões, acabará por ter também o mérito de ser reconhecido como um “construtor” europeu.

O regresso de Lula

Lula parece estabilizar a sua liderança nas sondagens. Repetirá a vitória de há 20 anos, embora o PT pareça mais radical do que então? A bipolarização da sociedade brasileira nunca foi tão forte e o poder de Bolsonaro, e daquilo que ele ainda representa, não deve ser desprezado.

As batalhas de Zelensky

Há quatro batalhas que Zelensky parece já ter perdido: a da entrada para a NATO, a da adesão à UE, a da zona de exclusão aérea e a das sanções abrangerem gás e patróleo. A Rússia parece agora determinada a que ele perca a batalha de Kiev.

A ter em atenção

Começa a ser evidente que as forças armadas russas começam a tomar posições e a destruir linhas de abastecimento à Ucrânia, ligando, em especial, à Polónia. Se acaso houver incidentes entre russos e não- ucranianos envolvidos nessas ações, as coisas podem escalar num instante.

Massa tenra

Sou do tempo (isto é, até há semanas) em que o mundo dos negócios europeu estendia passadeiras rubras, com menor ou maior desprezo e sobranceria social, aos multimilionários (oligarcas já está muito gasto…) russos. Agora, de repente, eles passaram a ter peste. Estranho mundo!

… e a França aqui tão perto!

A Ucrânia tem-nos desviado a atenção, mas há uma pré-campanha presidencial a decorrer em França. Assisti, há pouco, a um debate entre a candidata da direita democrática, Valérie Pécresse, e a figura surpresa da extrema-direita, Éric Zemmour. Nem imaginam a violência das palavras!

Cair na rede

O que mais me surpreende é que gente sensata e que devia ser adulta deixe que, no seu quadro de relações pessoais, as redes sociais se tenham transformado numa espécie de “second life”, aí gerando afetividades e ódios, zangas e abraços. Cresçam, caramba!

Os filhos ilegítimos de Trump

Há cerca de dois anos, escrevi no “Jornal Económico” o artigo que a seguir reproduzo. Hoje, por razões de oportunidade, apetece-me repeti-lo. A grande diferença, face ao momento em que o publiquei, é que Trump já não está na Casa Branca, sendo hoje uma nostálgica saudade para as pessoas que retrato no texto:

”Não sei como se chamam, nem sei como chamar-lhes. É uma raça política estranha, que vive num registo cheio de contradições, se calhar em sintonia com este estranho e novo tempo – o qual, no discurso ácido de que agora se alimentam, chega a parecer velho. Às vezes, parecem de uma esquerda radical, outras vezes chegam a tresandar a uma direita velha e relha.

O fim do mito soviético, enterrado nas pedras do muro derrubado em Berlim, tornou muitos deles órfãos de um passado político do qual, curiosamente, nem sempre haviam sido seguidores incondicionais. Mas a desaparição ou falência de um certo tipo de partidos, em países onde a esperança já teve melhores dias, acabou por conduzi-los à “terra de ninguém” onde hoje vivem.

É difícil catalogá-los numa mesma prateleira, sendo que o único denominador comum entre todos parece ser a sua sedução por modelos autoritários, a recusa da globalização e a identificação caricatural que fazem das democracias liberais com o neo-liberalismo mais maléfico. Têm dois alvos de eleição: a Europa integrada, tida como símbolo do regresso da Alemanha ao lugar de comando, e um mundo ocidental sob a matriz da NATO.

O principal farol que os ilumina é a figura de Vladimir Putin, visto como o chefe da resistência a um mundo que diabolizam. Alguns alimentam uma discreta sedução por figuras como Orbán. Se lhes perguntarem por Lukashenko, dirão que é para manter no lugar, quase apenas e só porque o líder bielorrusso desagrada àqueles que eles detestam. O Donbass é um seu lugar de culto e o teste do algodão é a resposta à pergunta sobre se a Crimeia é ou não legitimamente russa.

Erdogan é simpático a muitos. Maduro a outros tantos. Apoiam quem mantiver Cuba “do outro lado”. Olham com bonomia divertida a Coreia do Norte, pela irritação que provoca em quem eles não gostam. No Médio Oriente, protegem Assad e o Irão. Mas não é isso contraditório com a simpatia por Ancara? A lógica não é o seu forte e mandam às urtigas a coerência.

A irónica novidade é que Donald Trump é o grande culpado da sua reconciliação episódica com os Estados Unidos – depois de uma vida que alimentaram contra o satã yankee. Por isso, detestam a América de Biden, os democratas, tidos por cúmplices de uma Europa feita à medida dos interesses que desprezam. Se pudessem, davam cabo de Schengen, recuperavam o sentido nacional, último bastião do novo “no passarán”. Por essa razão, bateram palmas ao Brexit, vendo o afastamento do Reino Unido como uma oportunidade para diluir uma União Europeia que já não têm como projeto redentor.

É bem revelador do estado a que chegaram as coisas ouvir e ler esse discurso de sobrolho cerrado, adjetivando duramente os adversários, numa onda de desespero que, há que reconhecer, deixou de ter um porto político seguro de abrigo. Alguns andam pelas graves trincheiras das redes sociais, outros palestram declarações chocantes.

Uma coisa me parece evidente. Esses órfãos políticos são hoje os filhos ilegítimos de Trump. Pelo menos, até ver.”

sexta-feira, março 11, 2022

É de justiça…


… reconhecer que a cidade do Porto, cada vez mais, nos surpreende, em termos de bons restaurantes: o 1828, no fabuloso espaço WOW, em Gaia (não me peçam para explicar como lá se chega, mas o GPS ajuda), e o excelente Real by Casa da Calçada (no espaço do antigo Garça Real, na Praça D. João I) são dois dignos acréscimos à oferta restaurativa portuense.



11 de Março


Hoje é dia 11 de março. Nesta mesma data, em 1975 (caramba, já há 47 anos!), ocorreu uma tentativa frustrada de golpe de Estado, liderada pelo general Spínola. Nessa mesma noite, reuniu-se uma Assembleia do Movimento das Forças Armadas, com uma configuração um tanto atípica. A Revolução sofreu uma aceleração. Há tempos, o historiador António Louçã e a RTP ouviram-me sobre alguns acontecimentos dessa data, que, de certo modo, testemunhei por dentro. Pode ver aqui.

quinta-feira, março 10, 2022

Ex-excluídos

Vai ser muito interessante constatar que certos Estados, que estavam sob pressão devido ao seu comportamento desviante face às regras da comunidade internacional, pelo facto de estarem a ser conjunturalmente relevantes na crise ucraniana vão passar a ser olhados com outros olhos.

Vejam essa vesícula!

Há gente, aqui pelas redes sociais, que apenas publica textos ácidos, “naming names” sempre de forma acusatória, agressiva, revelando estar de mal com a vida. Podemos perceber que as coisas não lhes estejam a correr de feição, mas façam um esforço, caramba! E olhem pela vesícula!

A Oeste, nada de novo

A Ucrânia foi agredida pela Rússia por ter pensado que a sua vontade de vir a ter um destino (e uma segurança) ocidental seria apoiada, até ao fim, pelo ocidente. Já nas “primaveras árabes” essa mesma grande ilusão havia dado no que deu. Em ambos os casos, foi um equívoco trágico.

Conversas

Para além da questão da suspensão de hostilidades para corredores humanitários, não há uma verdadeira negociação entre a Ucrânia e a Rússia. Mantem-se um diktat russo, que apenas aguarda uma rendição ucraniana.

Exame prévio

É minha impressão ou aqui pelo Twitter começa a prosperar a ideia de que há certas opiniões que não têm direito a ser ouvidas? Vivi, em outros tempos, num país em que quem tinha ideias heterodoxas era, muito simplesmente, censurado. É isso que querem reeditar?

Artigo 5°

O Artigo 5° do tratado constitutivo da NATO é vulgarmente lido como implicando uma automática reação bélica conta o agressor de um deles. Não é bem assim. Ele obriga a “assistir” os países atacados, com ações “tidas por necessárias, incluindo o uso da força armada”.

Para além da bomba

Muito se tem falado, por estes dias, da possibilidade de o conflito da Ucrânia poder conduzir a um conflito nuclear. Lembraria que potências nucleares já mantiveram, entre si, conflitos usando apenas armas convencionais: URSS/China, Índia/Paquistão, Índia/China.

Ainda o nuclear

A tomada das centrais nucleares ucranianas por parte das forças russas foi lida como uma ação estranha e perigosa. Perigosa talvez fosse, estranha não é: 52% da eletricidade da Ucrânia é de origem nuclear pelo que essa ação daria à Rússia um controlo sobre um setor vital do país.

Ainda a Ucrânia, claro!


Hoje, estive na Antena 1 a falar sobre a Ucrânia. Se estiverem para aí virados, ouçam a partir no minuto 8:00.

Aqui.

“A Arte da Guerra”


Por razões óbvias, “Arte da Guerra” desta semana, o “podcast” do “Jornal Económico”, uma conversa com o jornalista António Freitas de Sousa, concentrou-se na questão da Ucrânia.

Pode ver aqui.

quarta-feira, março 09, 2022

Na Ucrânia, em outros tempos


Há pouco, descobri, neste blogue, um texto com 10 anos, sobre uma viagem, em 1980, à Crimeia, que era então ucraniana. 

Dois anos depois da publicação do meu texto, a Crimeia foi ocupada pela Rússia. 

Recupero aqui uma historieta contada nesse texto:

”A Ucrânia é um grande e belo país, com uma relação sempre muito complexa com Moscovo, polarizado política e humanamente entre uma tentação pró-russa e uma dinâmica favorável a uma maior aproximação com o ocidente, maxime com a União Europeia. Por lá se cruzam culturas políticas algo contraditórias, que oscilam entre as dinâmicas autoritárias a leste e os ventos da liberdade que sopram do oeste. 

Fui à Ucrânia, pela primeira vez, há muitos anos, ao tempo em que era parte da União Soviética. Viajando numa baratucha excursão norueguesa, passei uma semana nas praias do mar Negro, com a curiosidade acrescida de poder sentir, com os meus próprios olhos, o ambiente do palácio de Livadia, onde, em 1945, muito do destino que o mundo de hoje ainda anda a viver foi desenhado pelas conversas entre Stalin, Churchill e Roosevelt. 

Sem autorização para sair da cidade mais do que alguns poucos quilómetros, quase sem ter acesso a lojas e com escassos pontos turísticos acessíveis, pouco havia para fazer nessa estranha vilegiatura, numa cidade que já fora deslumbrante e que então sofria de uma decadência sem graça.

Uma tarde, passeando em Ialta, à beira-mar, com ar de uma oriental Riviera datada, demo-nos conta, de repente, de que imensas mulheres que connosco se cruzavam usavam sapatos vermelhos, todos do mesmo tipo. Eram dezenas, sem exagero, umas a seguir às outras. 

Quase por acaso, fomos dar a um grande armazém, o qual, como era de regra na URSS, muito pouco tinha à venda (ainda me arrisco a ser contraditado neste blogue por algum nostágico, que por lá tenha andado de férias pagas pelo "Komsomol"). 

Entrámos, escapando a uma fila de mulheres que, de forma paciente, se formava escada acima, não se percebia muito bem para quê. 

O mistério desfez-se, minutos depois: eram os sapatos vermelhos que "estavam a sair", expressão que, poucos anos mais tarde, muito ouviria em Luanda, nos momentos mais folgados do "socialismo esquemático" (expressão local que significava um tipo de socialismo cujo quotidiano só se podia suportar graças a "esquemas"). Nesse dia, como novidade, só havia à venda esses sapatos vermelhos... 

Estou certo que as belas ucranianas de hoje já não usam sapatos desses, quanto mais não seja porque muitas foram aculturadas a detestar o vermelho.”

terça-feira, março 08, 2022

8 de Março

Este é o Dia Internacional da Mulher. E é um bom momento para recordsr que é no Estado que as mulheres ganham exatamente o mesmo que os homens.

Lembrei-me também agora de que, quando estive no governo, houve um período em que, no meu gabinete, entre chefe de gabinete, assessores, adjuntos e pessoal administrativo, todas as pessoas eram mulheres. Apenas os motoristas eram homens. E não foi deliberado.

Pedido

O PCP pede o fim da guerra. Excelente ideia! Como, aparentemente, é a entidade portuguesa que surge mais próxima das posições da Rússia, talvez não fosse má ideia deixarem “cair uma palavra” por ali. Se tivessem sucesso, poderiam repetir o slogan: “Assim se vê a força do PC”.

O mercado da Bessarábia



A Bessarábia é a designação histórica de uma região que hoje faz parte do sudeste da Ucrânia e que abrange também o território da Moldova.

Em Kiev, desde há mais de 100 anos, existe um curioso mercado coberto, o Besarabka, mercado da Bessarábia. Pode presumir-se que, na origem do nome, estivessem os produtos dessa região que ali eram comerciados.

O Besarabka ficava perto do hotel onde, por mais de uma vez, me instalei em Kiev, junto à grande avenida, a Khreshchatyk, que leva à Maiden, a um local tornado famoso pelos acontecimentos de 2014. 

(E, já agora, não digam “Praça Maidan”, porque “maidan”, em ucraniano, significa … praça!)

Naquele mercado havia um pouco de tudo, desde caviar aos produtos agrícolas mais variados. Em certas áreas, tinha uma irresistível mistura de cheiros que fazia lembrar o bazar da especiarias, de Istambul.

Espero que o Besarabka seja poupado à guerra.

segunda-feira, março 07, 2022

A tia Helena e a RTP


A RTP faz parte da vida de muitos portugueses. Da minha, por exemplo. Quando nasceu, há 65 anos, na Feira Popular, então situada no que é hoje o topo norte do jardim da Gulbenkian, em frente ao antigo Quartel-General de Lisboa, fez dali uma emissão, com um alcance mínimo e imagina-se quase que sem auditório à distância. A locutora de serviço era uma loiraça de belo porte, chamada Maria Armanda Falcão. O país conheceu-a como Vera Lagoa.

Lá por Vila Real, soubemos (o plural é majestático, porque eu andava na “primária”) pelos jornais. Até conseguir passar o Marão, a Radiotelevisão Portuguesa (hoje chama-se Rádio e Televisão de Portugal) deve ter esperado uns bons anos. Anos que as famílias aproveitavam para conversar, ouvir rádio e dar voltas, depois do jantar, na Avenida Carvalho Araújo ou no Jardim da Carreira, com “som ambiente”.

Os aparelhos de receção da televisão eram caros. As casas que os vendiam (na cidade, só o Dionísio e o Patinhas) colocavam um recetor na montra, desde a abertura da emissão, creio que pelas sete, até ao encerramento, que não excedia as 11 da noite. Muitos “populares” (nome com que a comunicação social quase sempre designa “ajuntamentos” de gente em localidades fora de Lisboa, para este último caso último utilizando-se o termo “pessoas”) plantavam-se, por horas, em frente àqueles écrans mudos. A imagem era péssima, vinha do “emissor da Lousã”, granulada, a preto-e-branco (para os mais distraídos, relembro que a cor demoraria 23 anos a chegar cá). Alguns adquiriam um plástico que colocavam em frente ao écran e que, pelos vistos, “dava cor”. A ansiada “antena do Marão” fez-se esperar. Quando chegou, foi um deslumbre! Vila Real era um mar de antenas, que era preciso “orientar”. Depois vieram os “estabilizadores de corrente” e os “potenciadores”, lembram- se?

A aquisição de “televisores” fez-se, com naturalidade, pela ordem social e de posses do burgo. Na sala de festas Clube de Vila Real e em alguns cafés havia um aparelho, neste último caso colocado num ponto alto, o mais das vezes sobre as portas de entrada, com o pessoal (só homens, claro) de pescoço esgalgado, usufruindo do serviço, pelo preço do café e do copo de água.

Depois, foi o que todos sabemos: o futebol, o festival da canção, e a Eurovisão, e um clássico na segunda metade de dezembro, que era o “Natal dos hospitais”, onde o nacional-cançonetismo desfilava para os doentes, sob o paternal apoio da “folha da Moagem”, o “Diário de Notícias”. Havia então, na RTP, muita música, muito fado, bastante teatro (é verdade!), declamação de poemas e programas de humor inocente. E, claro, era-nos mostrado o mundo a que tínhamos direito, do Portugal d’aquém e d’além-mar, feito em notícias secas da ANI, alambicadas em telejornais lidos com pompa e voz teatral por caras vindas da rádio, que logo passaram a ser vedetas nacionais, e cuja vida familiar, risonha e sem escândalos, a “Plateia” nos ia revelando. 

Anos depois, veio a guerra, os votos televisivos de “Natal cheio de prosperidades” de quem, de arma na mão e roído de saudades, era obrigado a tentar atrasar o fim do império, abençoado pelas prendas da “Cilinha” Supico Pinto e restantes damas do Movimento Nacional Feminino. Tudo aquilo, ano após ano, quase sempre muito igual ao que tinha sido ontem, porque os portugueses, como dizia o homem de Santa Comba, gostavam de “viver habitualmente”. Só o Zip-Zip, já bem mais tarde, arejou um pouco aquele écran.

Para passarem temporadas a casa dos meus avós, vinham das Pedras Salgadas, por esses anos 60, umas tias-avós, uma viúva e outras solteiras. Dentre elas, empoada e sempre risonha, a tia Helena tinha pela televisão, que por algum tempo não tinha em sua casa, um fascínio particular. À hora que pressentia que a emissão ia iniciar-se, agitava-se a pedir que se ligasse o aparelho. E, o jantar passado, por ali ficava, especada, até ao fim, fosse a programação o que quer que fosse. O meu pai crismou uma frase que ficou na família: “A tia Helena aguenta desde o hino à Meditacão”. O hino da RTP, emitido na abertura da emissão, era então quase tão conhecido como “A Portuguesa”, embora não tivesse letra, como acontece com o hino nacional espanhol. E lembram-se o que era a Meditação? Eram umas frases de filosofia de trazer pelas casas que uma voz cava lia antes do encerramento noturno das emissão, para ajudar os portugueses a dormirem. Lá por casa, alguém dizia: “há ali mão de padre”. 

E os portugueses assim foram dormir, por muitos anos, até um dia, no final de abril de 1974. E eu tive a imensa sorte de por lá poder andar, por essa altura, pela RTP, vestido de verde, a ver a liberdade a passar por ali. E posso imaginar as olheiras da tia Helena, nesses dias prolongados pela noite, a ver as intermináveis emissões desses “homens sem sono”, com a “Mensagem” da época a ter como objetivo despertar as pessoas, em lugar de as ajudar a continuar a dormir. 

Não, meu caro Manuel Duran Clemente, nunca perguntei à minha tia Helena como é que ela se terá sentido quando, lá para o fim do ano seguinte, viu sair do écran a tua cabeluda imagem para passarem, “a partir dos estúdios do Porto”, o Danny Kaye que se seguiu. E agora, já é tarde. A única coisa que sei, porque ela me disse e não mentia, é que nunca votou em partidos que “tivessem ferramenta na bandeira”. Eu, por acaso, salvo um derriço pela obra autárquica do Severiano Falcão, também não.

Lembrar

Sei que incomoda ouvir isto, mas é uma lição dura perceber que o grau de generosidade no acolhimento dos refugiados de guerras depende, pelos vistos, de onde eles sejam originários. Angela Merkel merece, nesta matéria, uma palavra de grande respeito.

Direito à opinião

Devemos homenagear a coragem de quantos, pelas cidades da Rússia, enfrentam a repressão por terem uma opinião contrária à do seu governo, no tocante à guerra na Ucrânia. É que eu não esqueço a forma como a ditadura portuguesa reprimia as manifestações contra a guerra colonial.

Homofonias embaraçantes

Curiosa e pudica é a ausência de comentários sobre a razão por que, em francês, o nome do presidente russo tem um “e” no fim.

Militares

É legítimo contestar a opinião dos militares que se têm pronunciado sobre a guerra na Ucrânia, mas isso deve ser feito, não por uma espécie de mccarthysmo saloio, mas pelo saudável surgimento a público de quem não pensa como eles, nomeadamente no âmbito das Forças Armadas.

Negociar


Os ministros dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia e da Rússia vão-se encontrar na Turquia. Ao fazê-lo, vão testar, pela negativa, uma regra básica da negociação diplomática: não devem ser mantidas, em simultâneo, várias frentes negociais. A ver vamos no que isto dá.

Media

Compreende-se as condições difíceis em que opera a comunicação social em tempos de guerra, mas a ânsia em divulgar notícias testa a credibilidade de quem o faz, às vezes dando como verdade o que acaba por ser desmentido, por falta de “fact-checking” e distanciação por precaução.

Parem para pensar!

Respeita-se a indignação e a revolta impotente das pessoas face às graves consequências humanas que a guerra na Ucrânia está a ter. Mas apela-se a um mínimo de racionalidade: se acaso a NATO tivesse a tentação (e conseguisse gerar no seu seio o que se sabe hoje ser um impossível consenso) de intervir diretamente no conflito, combatendo ao lado da Ucrânia contra a Rússia, dar-lhe-ia uma escala europeia e até global, pelo que a dimensão da tragédia atual seria multiplicada por números inimagináveis.

Não nos prendam a língua, por favor!

Desde que me conheço, o none da capital da Ucrânia escreve-se, em português, Kiev. E, na nossa língua, a palavra lê-se, naturalmente, acentuando o “e”. Surgiu agora, por aí, a ideia de, por solidariedade, passar a usar a versão ucraniana do nome da capital, Kyiv, passando assim a dizer-se “kiive”, dado que, aparentemente, os russos leem a palavra como nós sempre a lemos. Temo que, nos dias emocionados que correm, quem continuar a ler o nome da cidade à moda portuguesa antiga possa, policiescamente, ser considerado “a soldo de Moscovo”. É isso? Há limites para tudo, meus senhores! (E espero bem que, ao grafar esta interjeição de duas palavras - “meus senhores!” - não esteja a incumprir com as regras do politicamente correto, talvez porque devesse exclamar, como um edil de lugarejo a falar às massas: “Minhas senhoras e meus senhores!”)

Há mais de vinte anos, estava então de passagem pelo governo, fizeram chegar até mim uma “nota verbal” (um dia explicarei o que isso é) da embaixada da Bielorrússia em Londres, cujo titular estava acreditado simultanemente em Portugal, pedindo expressamente que, de futuro, em língua portuguesa, o nome do país fosse designado por "Belarus" e não por "Bielorrússia". A ideia, ao que parece, era distanciar o país da imagem da Rússia, então dirigida por Yeltsin. Imagino que esperassem que “instruíssemos”, em conformidade, a imprensa e os prontuários. Recordo-me de ter tido o cuidado de mandar explicar ao governo de Minsk que, em Portugal, o Estado não se arrogava o direito de controlar os topónimos. E nunca mais ouvi falar do assunto. (Nos dias de hoje, a tal Belarus está, como se tem visto, cada vez mais Bielorrússia e até o “Bielo” da palavra, pelo andar da carruagem, se arrisca a ir por água abaixo…)

Não nos prendam a língua, por favor!

É isto

A frase saiu, muito provavelmente, da pena genial de Ted Sorensen, que foi quem lhe escreveu os seus melhores discursos, mas quem a aceitou, a leu e ficou responsável histórico por ela foi John Kennedy. Eu mantive-a sempre como uma máxima da diplomacia: “Let us not negotiate out of fear but let us not fear to negotiate” (Não negociemos sob pressão do medo, mas não tenhamos medo de negociar).

domingo, março 06, 2022

À coreana

A ser verdade a notícia, hoje divulgada, de que a Rússia pode vir a desligar-se da internet global, o país caminhará para uma forma de autarcia informativa, num modelo de “fechamento” que tem na Coreia do Norte o seu expoente.

Irão

As negociações entre os “5+1” e o Irão, com vista a negociar a retoma do acordo nuclear, suspenso desde o abandono do compromisso por parte dos EUA, ao tempo de Donald Trump, estavam, aparentemente, a correr bem. Aventava-se que Washington poderia querer fazer, muito proximamente, um gesto final para fechar o entendimento. Pois isso! A Rússia, que é parte dos “5+1”, acaba de anunciar que só pode dar luz verde a uma solução dessa natureza desde que os EUA façam uma exceção nas sanções que passou a sofrer, por virtude da questão ucraniana, que salvaguarde o seu relacionamento bilateral com Teerão, nas dimensões económicas mas, igualmente, no âmbito tecno-militar. Surpresa? Nem por isso.

sábado, março 05, 2022

Moscovo

Na ditadura da paróquia, havia um programa da Emissora Nacional que tinha como lema: “A verdade é só uma e Rádio Moscovo não fala verdade”. Como se viu na série televisiva Glória, através da Raret, as emissões radiofónicas da capital do mundo comunista eram perturbadas, para as não ouvirmos. Outros tempos, claro…

A Russia e URSS

A Rússia não é a URSS. Do comunismo, só herdou o autoritarismo e os métodos. Há, porém, quem pareça ainda não ter percebido isso: o PCP (e alguns “compagnons de route”) e os anti-comunistas (que andam à cata do que tudo o que por aí se assemelhe aos “vermelhos” de outrora).

O poder das massas

Se não fosse patético, dava vontade de rir ao observar o esforço dos multimilionários russos - criados na privataria de Yeltsin e adubados por Putin - a tentarem distanciar-se da liderança de Moscovo. Eles que não viram deslizar o regime para a ditadura que ajudaram a consolidar.

Tolerância

Sei que é impopular, nos tempos que correm, estar a afirmar isto, mas quero lembrar que há que preservar a tolerância e deixar exprimir todas as opiniões, mesmo aquelas que indignem e choquem o sentimento maioritário. Chama-se a isto democracia e deu muito trabalho a criá-la.

sexta-feira, março 04, 2022

A verdade

A verdade, como é sabido, costuma ser uma das primeiras “casualties” em qualquer guerra. Por isso, independentemente da simpatia que uma das partes nos possa merecer, o bom senso recomenda que a dúvida quanto à fiabilidade daquilo que ela transmite seja sempre a atitude a tomar.

O dilema da China


Pode ler aqui artigo que hoje publico no site da CNN Portugal, com o título “O dilema chinês”.

América Latina


A convite da Casa da América Latina, fiz ontem, no Grémio Literário, aos participantes no seminário “América Latina e União Europeia: dois parceiros na cena mundial”, uma apresentação da minha perspetiva do estado atual das relações entre os dois espaços, nas suas dimensões económicas, políticas e de segurança. Em especial, procurei assinalar a frequente assimetria de abordagens dos dois lados do Atlântico, por regulares desajustamentos institucionais e pelo facto da União Europeia ser cada vez mais polarizada por agendas regionais de outra natureza, que funcionam em detrimento das relações com a região do mundo com a qual a Europa acaba por ter mais afinidades.

Há dias, na Universidade Europeia, no âmbito do seminário do IPDAL - Instituto para a Promoção da América Latina e Caraíbas, tinha já feito uma abordagem sobre temáticas daquela região, num debate sobre os modelos democráticos e crescimento económico no espaço atlântico, onde também se tratou dos riscos, nos tempos de hoje, que afetam os quadros multilaterais relevantes para a América Latina.

Acordo e sanções

Além de todas as dificuldades que se presumem, existe um obstáculo a um acordo entre ucranianos e russos: a Rússia colocará na mesa o levantamento de (ou das) sanções. Ora isso já não depende do governo ucraniano. Hoje, as sanções contra a Rússia excedem já o conflito em curso.

“ Whataboutism”

O “whataboutism” é o reflexo argumentativo medíocre que faz com que, perante a contestação de uma atitude, alguém salte logo, numa logica compensatória: “Ai é? E então o caso do …?”. Usar este estratagema é típico de quem sabe que não consegue ganhar a discussão do primeiro caso.

A diferença

O ambiente de indignacão que, um pouco por todo o mundo, se projeta contra a agressão russa na Ucrânia não nos deve fazer esquecer que os cidadãos russos que vivem entre nós merecem todo o respeito e devem ser protegidos de quaisquer atos xenófobos. Essa deve ser a nossa diferença, com sociedade democrática e, por isso, tolerante.

Admiração

A Rússia, que até há uns anos ainda conservava algumas caraterísticas democráticas, está hoje convertida num Estado basicamente autocrático. Por essa razão, torna-se digna de grande admiração a atitude de quem ousa protestar publicamente contra o regime.

Insanidade

Releva da pura insanidade executar um ataque a uma central nuclear.

quinta-feira, março 03, 2022

“A Arte da Guerra”


Em “A Arte da Guerra” desta semana, no podcast do Jornal Económico, falo com o jornalista António Freitas de Sousa sobre a Rússia e a Europa, sobre as próximas eleições presidenciais francesas e sobre a situação de instabilidade no Sahel.

Pode ver aqui.

A solidão da Rússia

 


Pode ler aqui o artigo que hoje publico no site da CNN Portugal, com o título “A solidão da Rússia”.

Ucrânia

 


O meu texto, que a “Visão” desta semana publica, tem por título “O que é que correu mal?” Nele analiso o modo como se degradou a relação entre o ocidente e Moscovo, desde o fim da Guerra Fria até aos dias de hoje, com relevo para o papel de Vladimir Putin nessa mesma evolução.

Defesa e segurança

 


quarta-feira, março 02, 2022

A solidão russa

A Rússia está sem amigos. A votação na ONU revela a impopularidade em que Moscovo caiu, pela decisão de invadir a Ucrânia. Longe vão os tempos em que o proselitismo garantia à União Soviética algum conforto internacional. Putin talvez possa dizer que está “orgulhosamente só”.

Depois da guerra

Uma guerra não faz só vítimas quando ocorre. Mesmo depois dos conflitos cessarem, deixam feridas na memória dos povos, que transitam como ressentimentos para as gerações seguintes. Basta recordar as “batalhas dos avós” que fizeram a história trágica dos nacionalismos nos Balcãs.

O poder das imagens

Mais do que em qualquer outra guerra, de que me consiga lembrar, o papel das televisões tem sido relevante para mobilizar emocionalmente as opiniões públicas, com claras consequências nas decisões dos governos e das instituições.

Escrever na água

Os dias vão estranhos. A escrita, neste contexto, torna-se num exercício difícil, porque é como escrever na água. Logo veremos.

terça-feira, março 01, 2022

“Trop c’est trop!”

Revela uma imensa falta de senso político, assumindo mesmo um caráter provocatório, em face do sentimento amplamente maioritário que hoje marca a opinião pública portuguesa na questão da agressão russa à Ucrânia, a decisão do PCP de organizar um comício “pela paz”.

Lisboa, hoje

 


segunda-feira, fevereiro 28, 2022

Segunda-feira

Passou-se hoje tanta coisa, sobre a qual tanta gente teve tanta coisa para dizer, com ar tão definitivo, a rasgar as vestes e com todas as dúvidas já esgotadas, que eu vou acabar esta segunda-feira, último dia de fevereiro, sem ter nada de especial para lhes contar. Passem uma boa noite. Amanhã pode ser que tudo seja diferente. Ou não.

domingo, fevereiro 27, 2022

Uma opinião autorizada…

 


À distância


Há dois dias, nas televisões, surgiu esta imagem da sede dos serviços de informação da Ucrânia, em Kiev, onde teria deflagrado um incêndio.

Quando, há uns anos, fui pela primeira vez a Kiev, fiz uma excursão pela cidade, num autocarro turístico. O guia, ao passarmos por este edifício, disse uma frase enigmática: “Há muitos anos, este era considerado o mais alto edifício da cidade”. 

Ficámos todos perplexos! O prédio tinha muito poucos andares. O homem, sorrindo, esclareceu: “A razão é simples. No tempo da União Soviética esta era a sede do KGB. Dizia-se que, da sua cave, onde eram as masmorras, conseguia ver-se a Sibéria…”

sábado, fevereiro 26, 2022

O papa e a guerra

Ontem, no termo de uma intervenção no Jornal das Oito, da TVI, decidi recordar que, nessa manhã, o papa Francisco se tinha deslocado à embaixada da Federação Russa junto da Santa Sé. 

Tinha lido a notícia, durante o dia, algures na internet (mesmo nestes tempos de guerra, vejo muito pouca televisão), mas fiquei com a sensação de que o gesto quase não havia sido destacado. 

E, contudo, ver o líder da igreja católica a ter aquela atitude de modéstia foi algo que me impressionou fortemente. Um chefe de Estado a fazer o que pode ser considerada como uma espécie de “diligência moral” é uma atitude sem precedentes.

Na altura, tive a tentação de contar, em estúdio, um outro episódio que faz parte da memória das relações internacionais. Mas contive-me: relatar ali a “graça” de que me tinha lembrado menorizaria a dimensão do ato do papa Francisco.

Relembro-a agora. Conta-se que, em 1935, Stalin, teve um conversa em Moscovo com Pierre Laval, então ministro dos Estrangeiros de França (com justiça, pelo que fez futuro, a História iria dar a Laval um “infamous” lugar e um fim trágico). Laval ter-lhe-á dito que o papa Pio XI havia criticado as perseguições aos cristãos na URSS. A resposta desdenhosa do líder russo ficou nos anais: “E quantas divisões é que tem o papa?”

Não sabemos o que Putin possa ter respondido ao receber a mensagem de ontem do papa Francisco, cujo conteúdo também desconhecemos. Isso é indiferente, até porque o presidente russo não tem cara de quem é dado a um “bon mot”. O atual papa fez apenas aquilo que entendeu dever fazer. 

E até eu, um empedernido ateu, não consigo deixar de sentir um particular apreço por este excecional argentino, um homem que gosta de futebol e que consegue o milagre, com este seu gesto de humanidade, de me reconciliar pontualmente com uma liturgia a que sempre me senti alheio.

sexta-feira, fevereiro 25, 2022

A palavra do ocidente


Numa noite do primeiro semestre de 1996, no edifício da União Europeia, o recém nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, Yevgeny Primakov, jantou com os seus homólogos dos então “Quinze” (ou quem os substituía, como era o meu caso). Havia uma grande curiosidade em conhecer a nova cara do Kremlin para a política externa.

E Primakov não desiludiu. O tempo era relações distendidas com a Rússia. Primakov parecia ser um homem ponderado e equilibrado, tendo deixado uma excelente impressão.

A questão essencial que, nessa altura se discutia, eram os futuros alargamentos da União Europeia. Primakov não escondeu que, em Moscovo, o avanço das fronteiras da União até à Rússia era visto com algum desconforto. “Mas Yeltsin não se vai opor a isso, desde que a União Europeia não venha a promover, no seu seio, estruturas de natureza político-militar que possam representar uma espécie de ‘entrada na NATO pelas portas traseiras’, porque, como sabem, há um entendimento muito claro de que a NATO não se alargará para Leste da fronteiras alemãs”. Fixei bem estas palavras de Primakov.

A doutrina divide-se hoje sobre a natureza dessas garantias, mas é indubitável que o ocidente - leia-se, os EUA - tinham deixado mensagens políticas nesse sentido. E que, por essa razão, essa convicção estava firmada em Moscovo.

Mas também sei, por ter viajado nesse mesmo ano por vários dos países candidatos ao alargamento da União Europeia, conversando com os seus governantes, que as suas ambições em matéria de reforço da sua segurança não se ficavam por um mero lugar à mesa da União. Mais do que isso, esses Estados tinham “padrinhos” dentro da União Europeia que, mais ou menos abertamente, confortavam o seu mais ambicioso desiderato - aderir à NATO.

A noção que fui colhendo é que esses Estados, se bem que considerassem interessante integrar a União, como forma de reforçar o seu desenvolvimento, percebiam bem que, se acaso “as coisas dessem para o torto” na relação com uma Rússia que derivava rapidamente no sentido do autoritarismo, quem os poderia defender era a NATO, ou melhor, eram os EUA, vencedores da Guerra Fria.

O ocidente mentiu à Rússia? Talvez não. O ocidente terá feito promessas políticas, de modo político e não formal, a uma “outra” Rússia. A Federação Russa perante a qual os EUA e as estruturas ocidentais terão feito essa promessa política não foi exatamente a mesma a partir do momento em que Vladimir Putin assumiu o controlo, quase pessoal, do poder em Moscovo. O ocidente, ao fazer essa promessa, estava a falar com uma Rússia com a qual tinha sido possível estabelecer uma parceria, mecanismos de confiança, de diálogo e de cooperação. A Rússia de Putin passou a ser outra Rússia. E Putin, note-se, está no poder há muito tempo, já conta no seu currículo de contra-partes com cinco presidentes dos EUA.

Pode dizer-se que o comportamento de alguns países candidatos ao duplo alargamento à União Europeia e à NATO, na acrimónia oficial contra Moscovo e até, em alguns casos, no tratamento injusto das minorias russas no seu território, não contribuiu para o atenuar da tensão histórica que já vinha dos traumas da União Soviética. É verdade. Mas nada é comparável, sejamos justos, com o ambiente de intimidação que tinha como fonte a Federação Russa, em especial - e isto é importante - titulado por um poder em Moscovo onde já quase tinham desaparecido, quase por completo, os “checks and balances” que existem em Estados que funcionam sob instituições democráticas. Como ontem se comprovou.

quinta-feira, fevereiro 24, 2022

“A Arte da Guerra”


Falar sobre a situação na Ucrânia é como tentar atingir um alvo em movimento (peço desculpa pelo uso de uma figura de cariz bélico, mas está no “l’air du temps”). O podcast “A Arte da Guerra”, a conversa com António Freitas de Sousa para o “Jornal Económico”, foi, esta semana, gravado na manhã de terça-feira, dia 22. Como só hoje foi para o ar, alguma desatualização era inevitável, nomeadamente a que decorre do ataque russo à Ucrânia. Mas acho que o que ficou dito vale a pena ser ouvido.

Pode ver e ouvir aqui.

quarta-feira, fevereiro 23, 2022

Leonor Xavier


Recordo-me de uma conversa telefónica com a Leonor Xavier, em data que não posso precisar, na qual ela me disse, com grande entusiasmo, que estava a trabalhar num livro feito com base em alguns dos seus primeiros diários. A Leonor estava já muito doente, no meio de ciclos sucessivos de exames e internamentos. Nessas derradeiras conversas, sua voz estava marcada pela enfermidade, comigo a hesitar prolongar o diálogo, para evitar cansá-la. Arguta como era, devia sentir que tinha a vida a prazo. Alimentava-se visivelmente desse tipo incessante de atividade porque, para ela, cada livro era como que uma etapa mais de um percurso que se esforçava por percorrer, que duraria o que tivesse de durar. A Leonor morreu em meados de dezembro do ano que passou.

Ontem, no “ El Corte Inglés”, muitos dos seus inúmeros amigos estiveram no lançamento daquela que será a sua obra póstuma, “Adolescência”. Foi um belo momento. Se bem que muita gente estivesse comovida, fiquei com a sensação de que todos sentíamos que, se acaso a Leonor ali estivesse, não deixaria que perdêssemos o sorriso. Foi assim que o evento se passou num registo alegre, com a falta da Leonor atenuada pela memória imensamente positiva que, para sempre, todos dela conservamos

terça-feira, fevereiro 22, 2022

Não sejamos otimistas


Não tendo uma natural vocação masoquista, dei comigo a pensar, no final da tarde de segunda-feira, por que razão, por quase uma hora, me entretive tanto a ouvir, numa muito profissional interpretação simultânea (num site russo, em espanhol), a integralidade da comunicação que Vladimir Putin fez ao país e ao mundo.

Muito daquele arrazoado tinha um tom algo críptico, historicamente justificativo, num registo e adjetivação que ressoavam muito a ontens “que cantaram”, em outro tempo e em outro modo. E, no entanto, não desliguei um segundo e fiquei (não direi “religiosamente”, mas atentamente) até ao fim.

Quando concluí o exercício, lamentei não ter tomado mais notas, mas voltar atrás e rever a narrativa seria um exercício excessivo. Mas não dei por mal empregue o meu tempo.

O Vladimir Putin que descobri nessa hora de audição é um homem de outra era. Ao ouvir os seus lamentos, o seu orgulho ferido por um mundo que tem humilhado o seu, como que entendi melhor o que tem sido o percurso histórico de uma certa Rússia contemporânea que se acha enganada pelo ocidente - em especial, que se considera abusada na sua fragilidade conjuntural. E que, à evidência, não se resigna.

Putin não é uma figura deste tempo, concluí. Ou melhor, a Rússia contemporânea que ele representa decorre de uma linha profunda de continuidade que, embora já presumida por alguns, está muito mais enraizada do eu julgava possível. A Rússia imperial vive em Putin bastante mais do que em caricatura: é um guia para a ação da atual nação russa.

O discurso de Putin estabelece uma espécie de hierarquia de valores nacionais, na qual a Rússia tem um papel central e historicamente incomparável com o artificialismo de outras entidades estatais, cuja representação à escala internacional ele considera não dever iludir esse seu estatuto menor.

A Ucrânia, neste contexto, é um acaso de decisões históricas erradas, tomadas no seio de uma Rússia em anteriores estádios de convulsão. Por isso, na perspetiva de Putin, não pode aspirar a ser vista como uma nação com todos os atributos de dignidade, passível de um reconhecimento por Moscovo.

A tudo isto, Putin soma a leitura de a Ucrânia se ter transformado no joguete de um mundo, tutelado pelos Estados Unidos, onde subsistirá o desígnio deliberado, que já vem da Guerra Fria, de manter a Rússia sob uma pressão que evite a recuperação da sua grandeza histórica.

Na linguagem do líder russo, a América é uma entidade internacional celerada, que sobredetermina o comportamento de todos os seus aliados e que objetiva na Ucrânia contemporânea todos os vícios e todos os males, com o único e não assumido objetivo de atingir a Rússia.

Por isso, esta Ucrânia, não apenas não tem uma legitimidade que lhe permita afirmar-se como nação como ela própria se converteu, através da cumplicidade com os inimigos da Rússia, num perigo para a própria essência nacional que Moscovo representa.

Quando Putin dá por adquirido que é necessário reconhecer as “Repúblicas Populares” de Luhansk e Donetsk, não está, naturalmente, a atribuir uma dignidade nacional a essas entidades que, “de facto”, já se assumiam como tal desde 2014.

Trata-se apenas, como é óbvio, de utilizar o estratagema de afirmação internacional dessas duas entidades russas como o meio, mais “à mão”, para limitar os danos que a evolução da Ucrânia contemporânea está a provocar à Rússia. Mas, visivelmente, esse é um passo que, sendo necessário, fica muito aquém de ser suficiente para travar o imenso perigo que se desenha para a Rússia, através do poder infiltrado em Kiev, na leitura de Putin.

É este acossamento - a expressão só pode ser esta - da Rússia que Putin pretende sacudir com as suas ações atuais, utilizando, de caminho, a completa subalternidade da Bielorrússia - ficando agora muito clara, se o não fosse já à evidência, a razão pela qual Moscovo nunca teve a menor tentação de apelar à democratização do respetivo regime.

Perante o ocidente - isto é, os Estados Unidos à frente do resto - Putin assume a atitude de querer fazer um “reset” da História. O que é mais estranho, ao configurar um desespero cuja resultante alternativa só pode acabar numa tragédia mundial, é que não parece encarar outro cenário que não seja a reversão completa dos equilíbrios saídos da Guerra Fria - repito, tendo em conta a leitura que faz de que a Rússia foi iludida ao não ter sido cumprido o “trade-off” político que esteve subjacente a esse tempo - o que até pode ter alguns laivos de verdade, mas que já é irreversível.

Ora Putin sabe que não existe o menor cenário em que os países a seu ocidente prescindam da posição que hoje detêm, por opções que foram sendo tomadas, independentemente das razões que Moscovo até possa ter.

Mais do que isso: Putin deve saber que, ao dizer o que disse, carreou para esse debate uma atitude russa que só pode levar a uma muito maior rigidificação de posições por parte de quem pressentiu o crescendo da ameaça.

A saída para tudo isto não é evidente, mas não há razões para cultivar o menor otimismo.

(Artigo publicado no site da CNN Portugal)

segunda-feira, fevereiro 21, 2022

Ainda temos tempo?


A grande questão que atravessa os dias de quem tem responsabilidades na “governance” mundial, na equação clima-energia, é, de há muito, esta: “Ainda temos tempo?”

A partir das instalações da Agência Europeia de Segurança Marítima, com formato híbrido acessível por meios digitais, está a ter lugar, nos dias de hoje e amanhã, a conferência “Gerar energia para o mundo e preservar o planeta”, numa organização conjunta do “Clube de Lisboa”, de que tenho a honra de ser presidente, e da Embaixada do Japão em Lisboa.

Um grupo de especialistas de vários países intervem neste exercício, que foi aberto com uma interessante comunicação do Secretário-Geral da ONU, contando com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa na sessão de encerramento.

Cada painel será objeto de uma representação gráfica, construída à medida da evolução do debate. Aqui fica a que ilustra as primeiras horas dos trabalhos.

Não querem “visitar-nos”? Basta clicar aqui.

domingo, fevereiro 20, 2022

“Podia ter sido pior”


José Cutileiro morreu vai para dois anos. Deixou um não preenchido vazio na reflexão, inteligente e culta, sobre as coisas internacionais. Mas não só. Ele era bem mais do que isso. Ao longo da sua vida, foi o original cultor de uma espécie de sociologia irónica de um país que ele via como que acomodado a um destino assim-assim. 

Saiu agora este “Podia ter sido pior”, numa bela edição da D. Quixote, uma espécie de “best of” do muito que escreveu, mas com interessantes coisas originais. 

Esta antologia é uma oportunidade excelente para quem quiser conhecer o pensamento de uma das figuras mais originais da nossa intelectualidade e da diplomacia democrática.

Prazeres da carne

O candidato presidencial do que resta do Partido Comunista Francês, Fabien Roussel, colocou num tweet a seguinte ideia: “Um bom vinho, uma boa carne, um bom queijo: é a gastronomia francesa”. Acrescentou que “a melhor maneira de a defender é permitir aos franceses terem acesso a ela”, isto é, ganharem melhor.

Parecia uma ideia inócua: apelar a que os cidadãos pudessem usufruir de algo que é comummente tido como um património do país, nomeadamente no imaginário externo.

Pois não foi. Caiu meio mundo sobre Roussel. Apelar ao consumo de vinho, num tempo em que o álcool é diabolizado como fator de doenças? Carne, meus senhores!, agora que o mundo desliza para o veganismo? Queijo, explorando produtos leiteiros, cujo fabrico aumenta o CO2, pelo que começam a não estar na agenda do crescente higienismo? 

No fundo, para essas pessoas, o que Roussel disse configura um mundo antigo, feito de estereótipos caricaturais, que cada vez menos correspondem às exigências da sustentabilidade das sociedades modernas. Será assim?

O que acabo de escrever não tem como finalidade atiçar a onda de reclamações contra algum “politicamente correto”. Já dei para esse peditório. Apenas quero dizer que, para o bem ou para o mal, há que convir que estão a criar-se, cada vez mais, dois mundos que se afastam, limitando o grau de consenso dentro das sociedades. Uns dirão que é o passado a não entender o futuro. Outros dirão que “está tudo maluco!”.

Já agora: Roussel tinha 4% de intenções de voto. As suas preferências gastronómicas vão fazer subir a sua cotação?

Destinos

No momento em que escrevo, não faço a mais leve ideia do que vai acabar por acontecer como desfecho da tensão em torno da Ucrânia. Uma coisa tenho para mim como certa: quer haja um conflito armado quer ocorra um qualquer entendimento que o evite, estes dias de início de 2022 vão ficar bem marcados na História contemporânea.

De um lado, está Vladimir Putin, alguém que, muito claramente, se sente na pele do vingador da humilhação que Moscovo sofreu, no termo da Guerra Fria que a União Soviética clamorosamente perdeu. Olhando a sua postura, nota-se que pretende desenhar o seu lugar na linhagem da Rússia eterna, onde o poder autocrático, como o que agora afirma, sempre foi a regra do jogo. Se o conseguirá fazer em moldes que o elevem nesse mundo de mitos nacionais russos, veremos muito em breve.

Do outro, está um muito improvável ator da História da seu país. Quando, há pouco mais de um ano tomou posse, ninguém lhe destinava um futuro na memória americana. Joe Biden fora a solução conveniente, descortinada pelo seu partido, para conseguir afastar Trump. “A safe pair of hands” na administração Obama, foi um operador eficaz no Congresso e era tido como um razoável conhecedor das coisas internacionais. Pouco mais. Pensava-se que seria um interlúdio até Kamala Harris ganhar senioridade. E, contudo, a História cai-lhe agora no colo.

A História é sempre um objeto fascinante de estudo. Mas nem sempre ela tem graça quando se é condenado a vivê-la.

sábado, fevereiro 19, 2022

“Não foi penalti!”

Uma vez, no velho estádio José de Alvalade, no meio de uma bancada verde que reclamava um penalti que castigasse uma suposta falta sobre um jogador do (meu) Sporting, comentei, alto: “Não foi penalti!”. 

O que eu fui dizer! Caiu-me em cima o Carmo e a Trindade! O mais meigo remoque que nesse instante recolhi foi de “lampião”, insulto-mor no clube que me tem como adepto, desde que me conheço.

Não tinha sido penalti, claro, mas afirmar isso naquele contexto era uma heresia. Porque “tenho a mania” de que sou isento a ver futebol (e sou), raramento me inibo de dizer o que penso sobre a justiça do “senhor árbitro”. E, talvez por isso, raramente vou aos estádios.

(Ainda ontem, este tweet irritou bons amigos: “A Lazio não é o Manchester City, eu sei. Mas parece-me claro, e honestamente tenho de admitir, que o Porto é hoje, nomeadamente comparado com o (meu) Sporting ou o Benfica, a única equipa portuguesa que ainda vai conseguindo sustentar um razoável estatuto internacional.”)

Mas a que propósito vem isto? Da Ucrânia. Da Ucrânia? Exatamente.

Na minha qualidade de comentador da CNN tem-me vindo a ser pedido que analise a situação que por ali se passa. E eu faço-o, tão bem quanto consigo, tentando olhar para as coisas com equanimidade - “palavrão” que tenho por princípio moral. 

Há dias, um outro amigo (tenho muitos, felizmente) disse-me, num tom que me soou um pouco chocado: “Quando, nos teus comentários, analisas o conflito na Ucrânia, chega a dar a sensação de que Biden e Putin se equivalem moralmente, de que um presidente eleito democraticamente tem uma dignidade idêntica à de um autocrata. Pareces esquecer de que lado estás.”

Achei graça ao comentário. E já o esperava. Sou cidadão e diplomata de um país da NATO e da União Europeia, defendo alguns Direitos Humanos que Putin nem desconfia que existem e detesto o sinistro regime que vigora em Moscovo. Mas, ao assumir esta atitude (que não é um “disclaimer”, note-se), acaso sou obrigado a esquecer, por exemplo, que os EUA mantêm, sem julgamento e sem vergonha, há mais de 20 anos, em Guantanamo, pessoas detidas por terrorismo, por não conseguirem provar que são culpados? 

Recuso abertamente o desafio dualista, em matéria de valores, que está subjacente à pergunta, quase policiesca: “Estamos do lado de Biden ou do lado de Putin?”. O facto de eu saber bem do lado em que estou não me torna incapaz de avaliar, com serenidade, as razões de um lado e de outro. Porque a experiência, e essencialmente a consciência, ensinou-me que o mundo nunca é a preto e branco. E não tenho a menor paciência para os maniqueístas.

Bem me lembro dessa hora, bem negra para a política externa portuguesa, em que um governo nos provocava sobranceiramente com a pergunta: “Queremos estar do lado dos Estados Unidos ou do lado de Saddam Hussein?”. Esse executivo acabou a servir o “catering” nas Lajes e a avalizar a guerra criminosa que foi a intervenção no Golfo, em 2003, de onde só nasceu ódio, morte e o Daesh. E não pediu desculpa ao país por isso.

Conheço os valores que estão em causa na questão da Ucrânia. Esse é o lado opinativo, afetivo, da questão. O meu papel, na cena televisiva, não é ser “sportinguista em Alvalade”, é ser rigoroso a analisar os acontecimentos e as motivações contrastantes que lhes estão por detrás. Às vezes, isso não é simpático para as “nossas cores”, parecemos ”advogados do diabo”? É a vida!

Por isso, porque continuo a recusar-me a gritar “penalti!” quando não houve falta, ou insisto em dizer ”foi penalti!” quando um defesa do meu “lado” rasteira um adversário na área, continuarei, enquanto me quiserem ouvir, a tentar analisar as questões internacionais com o possível equilíbrio, tomando sempre em atenção a posição de cada lado e, essencialmente, procurando ser rigoroso com os factos. 

Como alguém disse um dia, temos todo o direito a ter as nossas próprias opiniões, mas isso não nos dá o direito a ter os nossos próprios factos.

O fundo da reforma

A quem se atrever a dizer que, num mês, este governo não fez nada que se visse, deixo esta impressionante imagem de uma reforma de fundo - l...