sexta-feira, janeiro 10, 2020

Trump


Era uma vez, no Irão...

Agora que o Irão regressou aos títulos, recupero aqui uma pequena história diplomática.

Em junho de 2000, durante a presidência portuguesa da União Europeia, coube-me chefiar uma missão de “diálogo político” a Teerão. Da “troika” (já as havia…) que me acompanhava, faziam parte um diretor do Quai d’Orsay (a França iria suceder-nos na presidência, dias depois) e um representante da Comissão Europeia. A delegação iraniana era chefiada por um vice-ministro dos Negócios Estrangeiros.

Sabia-se que o diálogo com as autoridades do Irão ia ser difícil. Cabia-me colocar-lhes todas as questões que a União Europeia via como polémicas, desde os direitos humanos à observância de princípios democráticos. Temas como a perseguição de opositores e os presos políticos, bem como o do tratamento de minorias e dos estrangeiros, estavam na nossa lista. Eles tinham os seus próprios agravos.

Num certo ponto da agenda, o vice-ministro iraniano acusou um Estado membro da União Europeia, que não identificou, de estar a levar a cabo “atos de espionagem”, em articulação com inimigos do país, contra a segurança do Estado iraniano. Interrompi-o e pedi-lhe para identificar o Estado em causa, dada a gravidade da acusação. Disse-me que não o faria, “para não piorar ainda mais as coisas”. Na ata, deveria ficar a acusação, nos termos genéricos em que a formulara.

Reagi: ou ele identificava o nome do país, também para efeitos da ata da sessão, ou retirava a acusação. O “diálogo político” não podia prosseguir sem uma dessas opções. Sugeri que o intervalo da reunião, que estava previsto para mais tarde, tivesse lugar de imediato.

O ambiente, naquela sala do ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, toldou-se. A delegação iraniana saiu da sala de cara fechada. Os membros da “troika” perguntavam-me se tinha medido bem o risco de dramatização que estava a fazer. Eu disse que sim, mas, interiormente, interrogava-me se o meu “bluff” iria resultar (porque era disso mesmo que se tratava).

Minutos depois, o chefe da delegação iraniana reabriu a sessão dizendo que, com vista “a facilitar os trabalhos”, propunha que, da ata, não constassem as referências que antes tinha feito sobre o “tal” Estado membro europeu.

Desde o início, todos sabíamos que a acusação iraniana se dirigia ao Reino Unido, país com o qual, de há muito, Teerão tem um particular contencioso. Ora, o vice-ministro iraniano, meu contraparte na chefia das negociações, havia-me revelado, em conversa antes da reunião, que, no final desse ano de 2000, deveria ir para Londres como embaixador (o que realmente veio a acontecer).

Ao exigir a revelação do nome do país, eu tinha tido isso em conta. Se acaso ele mencionasse o nome do Reino Unido, e ficasse na ata ter sido ele quem lançara essa atoarda não provada, o governo de Londres nunca lhe daria “agrément”.

A vida diplomática também se faz com alguns truques.

quinta-feira, janeiro 09, 2020

Não vale tudo


O presidente dos Estados Unidos da América ordenou a liquidação física, em território do Iraque, de um chefe militar do Irão. 

Os EUA não estão em guerra declarada com o Irão, embora seja evidente, desde há muito, a sua hostilidade para com o seu regime. Se olharmos para trás, verificaremos que o derrube do líder iraniano que Washington tinha como seu aliado fiel, o Xá Reza Pahlevi, em 1979, iniciou um período de ininterrupta tensão entre os dois países. A invasão da embaixada americana em Teerão, nesse mesmo ano, por entidades iranianas dependentes das respetivas autoridades, espoletou naturalmente essa tensão, que nunca mais se desvaneceu e atravessou, em maior ou menor grau, todas as posteriores administrações americanas. Os EUA, a partir de então, passaram a apoiar quem se opusesse ao Irão, como foi o caso do Iraque, na devastadora guerra entre os dois países (1980/88). 

Os evidentes e reiterados esforços do Irão para obterem a arma nuclear mereceram sempre uma forte rejeição da comunidade internacional, em especial dos EUA, do mundo ocidental em geral e dos adversários regionais de Teerão. Dentre estes, Israel (que possui armas nucleares, sem se submeter ao controlo da AIEA) é aquele que, reagindo às constantes ameaças do Irão face à sua existência como país, anunciou já poder vir a atacar as instalações nucleares iranianas, se a construção dessa bomba estiver prestes a concretizar-se (Israel fez isso contra o Iraque, pelos mesmos motivos, em 1981). Um grupo de importante de países ocidentais, incluindo os EUA (administração Obama), fez entretanto um acordo diplomático com o Irão, que previa um controlo vigiado do seu programa nuclear. Com Trump, os EUA afastaram-se desse acordo.

O Irão, não sendo um país árabe, é um Estado muçulmano que segue e promove o shiismo, uma das duas grandes obediências religiosas muçulmanas. A outra, o sunismo, tem como principal expoente a Arábia Saudita (mas também a Turquia ou a Irmandade Muçulmana do Egipto, embora com uma orientação divergente). Há países, porém, de que o Iraque é talvez o caso mais importante, onde o shiismo e o sunismo coexistem, com implicações no respetivo equilíbrio político interno, sendo o Irão regularmente acusado pelos seus adversários de promover núcleos shiitas em vários outros países, muitas vezes com fortes implicações político-militares, como acontece com o Hezzbolah, no Líbano, ou com as forças hutis, no Iémen. 

O proselitismo shiita do Irão, nas suas expressões agressivas, e a sua obsessão com a arma nuclear converteram o país num “trouble-maker” da sociedade internacional. Com um regime autoritário sob uma liderança religiosa de traços medievais, o Irão é um país que se sente acossado pela sua vizinhança, adotando com regularidade um discurso jingoísta que torna difícil a interlocução diplomática. Mais recentemente, porém, por um interesse próprio que se conjugou com outros esforços internacionais, as forças de Teerão desempenharam um papel não despiciendo na luta contra o Daesh.

Se quisermos ser honestos, teremos de reconhecer que os EUA, com a sua agressão unilateral contra o Iraque, em 2003, foram, a grande distância, os principais culpados da desregulação securitária que se vive na região do Médio Oriente. Se algumas fortes tensões já ali existiam, a invasão do Iraque, levada a cabo sob pretextos deliberadamente falsos, conduziu ao estilhaçar daquele país, com as consequências que se viram.

Ao atuarem violentamente como agora fizeram, sem o menor mandato internacional, executando uma ação de guerra, uma liquidação seletiva de um líder militar estrangeiro, à revelia das autoridades do país que os “convidou” para ajudarem à sua segurança nacional, os EUA colocam-se, com total desplante, à margem da ordem internacional, arrogando-se direitos que negam a todos os outros. Todas as razões que possam ter contra o Irão enfraquecem-se com este seu comportamento, convidando à retaliação e arriscando uma escalada. 

Os Estados de bem lutam por princípios, desde logo, seguindo-os. Essa deve ser a sua diferença.

quarta-feira, janeiro 08, 2020

As lições da General Motors


Se olharmos as relações externas de Portugal, nos últimos 70 anos, incluindo as últimas décadas da ditadura e o regime democrático, constataremos que há uma única prioridade que permaneceu inalterada na nossa agenda nacional: a importância da relação transatlântica. O empenhamento na NATO e a relevância atribuída aos EUA mantiveram-se na lista prioritária de todos os governos portugueses, mesmo os mais “esquerdistas”. Posso imaginar o “entusiasmo” com que o primeiro-ministro Vasco Gonçalves terá ido à cimeira da NATO, em 1975, mas, para o que interessa, esteve lá e, ao que consta, não fez nenhuma diatribe contra a organização. E isso não aconteceu por acaso.

A situação geopolítica do nosso país, onde a questão das Lajes teve sempre forte relevância, e, ainda antes, os imperativos ligados aos equilíbrios da Guerra Fria, fizeram com que a NATO e os EUA passassem a ser um pano de fundo constante na nossa ação externa. A ênfase desse vetor no discurso político pode ter variado com os ciclos de governo, mas o essencial nunca foi tocado.

Aquando da segunda Guerra do Golfo, em 2003, o executivo português de então levou o seu zelo seguidista a um extremo caricato, ao colar-se ao “amigo americano”, que anunciava um deliberado infringimento das regras internacionais. Lisboa usou então o mais enviesado dos argumentos: “ou estamos com os Estados Unidos ou estamos com o Iraque”. Como se uma agressão ilegal, que viria a ser fautora de centenas de milhares de mortos e de um caos regional sem precedentes, pudesse ser “absolvida” apenas porque o Estado que a praticava era um nosso amigo tradicional. 

Mais recentemente, sob a presidência de Donald Trump, os EUA vieram a revelar um inusitado desprezo pelos aliados, criaram tensões no seio da NATO, provocaram fortemente os seus parceiros europeus, desprezaram com arrogância o mundo multilateral. Romperam mesmo um tratado laboriosamente feito com o seu acordo, que prevenia as possibilidades do Irão aceder à arma nuclear, cedendo às pressões de Israel. E, para facilitar a agenda eleitoral de Trump, o governo americano coloca agora o Médio Oriente, de novo, às portas de um conflito aberto, que, no passado, já nos brindou com o Daesh.

Há uns anos, um ignoto secretário de Defesa americano consagrou uma frase para a História anedótica: “o que é bom para a General Motors, é bom para os Estados Unidos”. Hoje, não sem alguma tristeza, pergunto-me: o que é (considerado por Trump ser) bom para os Estados Unidos é necessariamente bom para os seus aliados?

segunda-feira, janeiro 06, 2020

EUA/Irão


No Jornal das Oito da TVI, a comentar a tensão entre os Estados Unidos e o Irão. Pode ver aqui.

A casa do tio Óscar



Tenho uma imensa pena pelo facto da minha capacidade de “desconstrução” das coisas ser muito limitada. 

Contrariamente a uma amiga que, ao provar qualquer prato, consegue, no instante, identificar os componentes e condimentos utilizados na sua feitura, assumo-me como um perfeito “nabo” nesse domínio. O mesmo acontece nos vinhos, onde raramente sou dotado para conseguir notar os aromas e sabores que, com aparente facilidade, os enólogos ali descobrem, comigo numa inveja real face à riqueza daquele léxico específico, que tão bem arredonda as conversas numa mesa.

Mas o meu maior lamento, devo confessar, prende-se com os cheiros das casas. Trago na minha memória olfativa alguns odores que me remetem para locais quase sempre antigos, desde casas de infância a cenas da vida, espalhadas ao longo de décadas. Sou mesmo um inveterado colecionador desses marcantes aromas domésticos.

Hoje, ao entrar para o almoço num clube lisboeta de que sou sócio, neste caso o “Círculo Eça de Queiroz”, dei comigo a reconhecer por ali o cheiro da casa do meu tio Óscar, um militar que sempre vi na reserva e que já se foi desta vida há muito. Era casado com a tia Maria, irmã da minha avó materna, e foi uma das referências das minhas lembranças afetivas, de uma infância que guardei como feliz.

A casa deles era no Porto, na Ramada Alta, num primeiro andar com uma bela vista para a Boavista (se isto não for pleonasmo), que dali se via amplamente, de uma varanda traseira. Tinha um mobiliário clássico, com muitas madeiras e livros, tudo aquilo resultando num saudável conforto burguês, num sereno e pacífico ambiente. E, a envolvê-lo, havia um cheiro muito próprio, que me ficou para sempre.

Cheirava a quê? Sei lá! Talvez a cera, talvez a madeira, talvez a algumas plantas. Não sou, em definitivo, dotado de poderes de “desconstrução”, mas também não me parece que Jacques Derrida estivesse precisamente a pensar nos cheiros, quando acabou por consagrar cientificamente o conceito. 

A única coisa que sei é que o Círculo Eça de Queiroz, ao final desta bela manhã de janeiro, onde quase por acaso me deu para vir almoçar, após uma movimentada manhã de trabalho em três locais bem distintos de Lisboa, tinha hoje o mesmo cheiro da casa do meu tio Óscar. E isto é um elogio para o meu clube, note-se.

Vaticanologia


Nunca tive grande interesse pelas cenas da vida do Vaticano, pelas suas intrigas e, muito particularmente, pelas confabulações sobre o processo de seleção dos papas. Como ateu, não acreditando, naturalmente, na ideia da intervenção divina a influenciar o sentido do voto cardinalício, olho sempre a escolha de cada chefe de Estado da Santa Sé como uma cuidadosa e ponderada decisão, feita pelo serralho dessa instituição espiritual multinacional, com vista a encontrar o homem mais adequado para ir prolongando, com eficácia, o respetivo sistema. Umas vezes, a escolha vai num sentido, outras vezes noutro, de acordo com “l’air du temps”. Às vezes resulta, outras vezes não.

Escrevo isto com o maior respeito, não apenas pelo papel histórico da instituição, mas igualmente pelos seus fiéis, que se lhe entregam com toda a confiança e fidelidade. Os muitos erros que em nome da Igreja Católica têm sido praticados ao longo dos séculos não devem fazer esquecer - em especial, aos ateus, como eu sempre fui - o património de valores morais e sociais positivos que ela encerra e que formatam as consciências dos povos, muito para além dos seus crentes.

É neste contexto de assumida distância para com aquela realidade que não posso deixar de recomendar o filme “Os dois papas”, que ontem vi na Netflix, com imenso agrado. É uma obra que, sendo claramente apologética e que se pretende simpática para a instituição papal, nos traz uma curiosa versão (porque é de ficção que estamos a falar) da relação entre os dois últimos papas, ao mesmo tempo divertida, bem construída e magistralmente interpretada.

domingo, janeiro 05, 2020

Um grande artista

A enquadrar aquele museu num certo país europeu, situado fora da área urbana, havia um magnífico espaço verde. Sobre ele, espalhavam-se vários objetos artísticos, da mais diversa natureza. O museu, por essa altura, albergava, para além da sua coleção permanente, uma muito rara exposição de um conhecido pintor clássico.

Eu e um outro colega havíamos convencido uma personalidade com quem viajávamos, numa deslocação oficial, da importância de não perdermos a oportunidade de ver reunido o essencial da obra desse grande artista da segunda metade do século XIX. 

Louvando embora a ideia do "détour" que fazíamos, de carro, para visitar a exposição, a figura em causa tinha-nos explicado, ao longo do trejeto, que era muito mais dada à apreciação da arte contemporânea, aos novos modelos criativos, das instalações aos trabalhos em vídeo. 

Às nossas dúvidas e à confissão da dificuldade de, por vezes, sermos sensíveis a algumas dessas ousadas expressões artísticas, essa pessoa contrapunha o seu pensamento cheio de contemporaneidade, com um intenso e esmagante "name-dropping" de criadores. Ao ouvi-la, verificámos que estávamos perante assinalável especialista.

E caminhavamos já para o museu, idos do parque de estacionamento, comentando à distância uma óbvia escultura de Moore, quando eu fiz notar:

- Conhecem os trabalhos de Rooney Kindley? É uma canadiano que está a ter imenso sucesso. É pouco conhecido na Europa, embora já tenha coisas no MoMa. Aquela peça, ali adiante, parece-me dele, disse eu apontando para um modelo de contentor pintado num forte azul, pousado sobre uma plataforma.

- Nunca tinha ouvido falar nele, disse a nossa personalidade. Nas vanguardas alemãs, que conheço melhor, há muito quem se dedique à criação deste género de objetos, como reproduções criativas de elementos extraídos do quotidiano, trabalhando-os na cor e nas vertentes de espaço. Este, aliás, parece-me bastante interessante, pela ligação do equilíbrio volumétrico e dos tons impositivos, que, no seu conjunto, provocam um contraste curioso com a paisagem. Por isso, necessitam, como aqui se consegue, de ter um cenário bastante aberto para a obra poder "respirar", permitindo distâncias para múltiplos ângulos de visualização. Como é que você disse que se chama o artista?

Fiz um sorriso irónico e esclareci:

- Esqueça! É apenas um contentor. Inventei o resto...

Durante o resto da viagem, o nosso homem nunca mais me olhou direito.

Indignações.com

Recebo, com regularidade, mensagens indignadas de leitores, pelo facto de eu não abordar, em intervenções nas redes sociais, situações e temas que a eles os indignaram. No fundo, pede-se que eu partilhe, talvez para as amplificar, as suas indignações. 

Nas últimas horas, fui zurzido, em mensagens no Facebook e em comentários quase insultuosos para o blogue, pelo facto de me deter aqui em “episódios grotescos”, como alguém “ter garrafa” num bar, ou fazer notas gastronómicas e incluir fotografias de iluminações de Natal, passando ao lado do assassinato do general iraniano ordenado por Trump ou das agressões a profissionais de saúde.

Entendamo-nos: isto não é um órgão de comunicação social, é um espaço privado de escrita. Se, de momento, nada tenho a dizer sobre a criança maltratada nas urgências de um hospital privado ou sobre o cidadão cabo-verdeano assassinado em Bragança, isso não significa que não esteja indignado com esses factos. Apenas revela que não tenho nada de relevante a dizer sobre isso e não quero massacrar o leitores com platitudes adjetivadas. 

Escrevo para dizer aquilo que muito bem me apetece, como e quando me apetece. E vou mais longe: só por infeliz acaso o que escrevo coincidirá com os estados de alma de quem por aqui passa o tempo a indignar-se, com tudo e com todos.

sábado, janeiro 04, 2020

Júlio Castro Caldas


Morreu Júlio Castro Caldas, leio nas notícias. 

Já o não via há muito tempo e, em especial, havia notado a sua falta ao almoço em que, há uns tempos, juntei em minha casa aquilo a que chamo o “grupo dos nove e meia“ - essa tertúlia “do bem”, para refletir sobre país, que, sob o estímulo de Miguel Lobo Antunes, reuniu por vários anos, às nove e meia da manhã (não conheço outras tertúlias matutinas), na Culturgest, tendo publicado alguns textos coletivos, ainda consultáveis aqui. O Júlio foi um dos últimos membros a aderir ao grupo, mas a sua participação, num estilo que lhe era muito próprio, era sempre muito informada e animada. Na fotografia dos membros dessa tertúlia, Júlio Castro Caldas é o único que se vê de casaco.

Um dia, numa conferência de imprensa no fim de um Conselho Europeu, nos anos 90, um jornalista perguntou a António Guterres se já tinha nomes para uma remodelação do governo de que toda a gente falava. Guterres disse que nomes não faltavam, se quisesse fazer uma mudança e exibiu um pequeno retângulo de papel com coisas rabiscadas. Eu estava ao seu lado e, quando ele pousou o papel sobre a mesa, saltou-me à vista a sigla JCC. Quando nos íamos a levantar, ousei perguntar-lhe: “Está a pensar no Júlio Castro Caldas?”. Notei que Guterres ficou um tanto surpreendido, e talvez desagradado, com a minha “espionagem” e pouco adiantou. Eu tomei nota da sigla.

A remodelação acabou por ter lugar e Castro Caldas não entrou no governo. Passaram uns meses e, um dia, vi Júlio Castro Caldas assumir o ministério da Defesa, pelo que concluí afinal tinha razão. Foi já com o novo ministro que, tempos mais tarde, me desloquei, em substituição de Jaime Gama, a uma reunião ministerial da União da Europa Ocidental (UEO), creio que em Bruxelas, tendo estabelecido com ele uma excelente relação. Lembro-me, meses depois, de ter estado com o Júlio, a convite de António Guterres, num almoço restrito com Mikhail Gorbachev, em S. Bento. Depois de sair do governo, fui para o estrangeiro, perdemo-nos de vista e só nos voltaríamos a reencontrar nessa tertúlia da Culturgest.

Júlio Castro Caldas era uma figura muito cordial, que rapidamente tratava as pessoas por tu, como comigo sucedeu, desde o primeiro momento. Além de ser um advogado de primeira linha, era um homem que gostava da vida e dos amigos. Tinha sempre histórias magníficas, sabia de factos que ninguém mais sabia, era intenso e definitivo na apreciação das coisas do mundo e da vida. Vida e mundo de que agora se despediu.

Ter garrafa


”Quer a sua garrafa?” perguntou-me ontem o dono do restaurante, quando eu escolhia o que ia almoçar. “Tens garrafa aqui?”, inquiriu um amigo, na minha mesa.

Estávamos em Vila Real. A garrafa era de vinho. Era a metade que tinha ficado do meu almoço do dia anterior, também por ali. A pergunta do meu amigo, contudo, trazia água no bico, comportando uma ironia que se ligava a tempos noturnos antigos, que ele também partilhara, lá por Lisboa.

“Ter garrafa”, há muitos anos, era um estatuto, em alguns bares. As garrafas a que o conceito se referia eram de whisky. Os “habitués” ”tinham garrafa”, com o seu nome manuscrito no rótulo. Compravam-na ao próprio bar, a um preço bastante mais elevado do que o preço do mercado, mas, ainda assim, compensando face ao somatório de todas as doses individuais de uma garrafa.

Mas o importante, nesta história de “ter garrafa”, era o estatuto: “Ó Meireles, passa-me aí a garrafa do senhor engenheiro”, pedia o empregado das mesas ao Meireles ou a qualquer outro Meireles que estivesse por detrás do balcão. Isto era dito em voz bem alta, com o “senhor engenheiro”, cujo nome nem sequer necessitava de ser explicitado, a ser o alvo dos olhares circundantes. Por essa simples frase, ficava-se a perceber que o “senhor engenheiro” era um cliente regular da casa, porque só esses podiam “ter garrafa”. Nos “bares de piquenas”, a posse de uma garrafa dava um sainete das arábias.

No Procópio, o único bar onde “tive garrafa”, ainda no longínquo consulado do Juvenal, um dos mais históricos barmans de Lisboa e um bom amigo, a coreografia era bem mais discreta, nunca com vozes alteadas para a plateia. Verdade seja que o Procópio nunca foi um “bar de piquenas”, muito longe disso! No meu caso, era apenas uma maneira de poupar algum dinheiro, nesses tempos em que os meus trigliceridos não se ressentiam dos excessos. Mas, ao que me recordo, acabei por só ter por ali uma única garrafa, que rapidamente se foi...

Ontem, por coincidência, à saída do restaurante, calhou passar perto da casa onde viveu o “Antoninho do Talho”, um abastado industrial de Vila Real, com interesses que iam muito para além das carnes, mas que também as incluíam, bem como aos respetivos pecados. Na minha juventude, a sua imagem de “bon vivant” era prestigiada por um rumor nunca confirmado: “O Antoninho do Talho tem garrafa do Pasapoga!”, sendo este, ao tempo, o cabaret mais famoso de Madrid. É tarde para testar se isso tinha fundamento, se acaso o facto interessasse para alguma coisa, salvo para ilustrar esta historieta.

quinta-feira, janeiro 02, 2020

Dicionário

“Competividade” é um vocábulo que o bom senso (e o bom ouvido) recomenda que, no futuro, passe a integrar os dicionários, talvez em complemento da forma erudita “competitividade”, que caiu em desuso.

Carpe diem

A graça da vida diplomática é a sua incerteza. Para quem, como eu, acabou por ter 21 ministros dos Negócios Estrangeiros na sua carreira, viver em sete cidades estrangeiras, em diversos continentes, não pode assustar. O Brasil, uma das mais complexas - se bem que, aparentemente, simples - relações bilaterais de Portugal, saiu-me depois em rifa. Em boa hora! Aprendi, desde logo, que devia ser “obrigatório” para qualquer diplomata português ter um contacto com a realidade brasileira, para pôr fim a alguns mitos, diluir preconceitos e ajudar-nos a situar melhor no mundo. Quatro anos de Brasil, visitando 23 dos seus 27 Estados, fez-me perceber muitas coisas. A vida correu-me bem por lá, mas eu fiz bastante por isso.

Quando, quatro anos depois, aterrei em Paris, senti-me quase em casa. No final dos anos 60, eu chegara àquela cidade, saído à boleia de Lisboa, como um peregrino que chega a Meca. Depois, viciei-me e passei muitas mais vezes por lá. Regressar como embaixador seria, contudo, muito diferente, muito mais do que eu pensava. Claro que havia os restaurantes e as livrarias, mas as horas foram sempre muito contadas, nos anos em que, até à minha reforma, por ali fiquei. Trabalhei muito, assisti a tempos muito diversos, nem sempre bons, em especial para a imagem de Portugal no mundo. E, como em todo o lado, alimentei-me por ali da serenidades das noites, onde conversei imenso, li muito e, em especial, pensei.

Em 2013, tal como estava planeado desde há muito, regressei, definitivamente, a Portugal. Era a reforma? “Sort of”, como dizem os anglo-saxónicos. Não parei, desde então, um segundo. Houve empresas que quiseram passar a ouvir a minha opinião sobre as áreas internacionais dos seus negócios, universidades que me contrataram para dar aulas ou me convidaram para as aconselhar, jornais que me ofereceram colunas para eu escrever o que pensava. Fora dessa dimensão mais “séria”, que muito me agrada, divirto-me com o usufruto outros prazeres, como os livros, a escrita, a gastronomia e as viagens. Leio, leio muito, escrevo um blogue pela noite dentro, frequento tertúlias muito diversas. E, pelos dias, mas essencialmente pelas noites, estou com os amigos, com a família. Às vezes, perco alguns, dos bons, o que me deixa nostálgico, confesso. Mas tento olhar em frente, aproveitar, ao máximo, este país renovado, magnífico, sereno, que gargalha para as aves agoirentas, para os profissionais da inveja e do mal-dizer, que apetece irritar - e eu faço-o, com algum gosto. Uma terra que agora anda bastante mais feliz do que, ainda há pouco, parecia condenada a ser. Carpe diem! 

(Depoimento)

Potpourri


  • Todas as semanas surge um record! O Ronaldo tem os dele, o Messi também, o Pélé lembra outros. Cada um segue o critério que lhe dá mais jeito. E o Zé Povinho “embarca”.
  • Carlos Ghosn foi “exfiltrado” do Japão, por um “comando” privado, pago pela mulher. Há muita gente a exultar com o golpe. Tenho alguma dificuldade em me congratular com a fuga de alguém à justiça de um país democrático.
  • Andava distraído: não tinha dado conta de que este ano era bissexto. Vou planear com o maior cuidado o que fazer nesse dia a mais.
  • O facto do candidato preferido dos portugueses (comigo incluído) não ter ganho nas presidenciais da Guiné-Bissau não nos confere qualquer direito de ingerência nos seus assuntos internos.
  • Na Guiné-Bissau, o resultado nas urnas foi o que foi. Pudera: dizem que terá havido muitos mortos a votar...
  • Gostei tanto de ver aquela humana reação do papa!
  • Vale a pena olhar um pouco para além do caso que opõe Isabel dos Santos às autoridades angolanas. É muito interessante observar a profunda e algo surpreendente mudança política que hoje atravessa Angola.
  • Nunca tinha encontrado, ao vivo, um negacionista do aquecimento global. Não acabei 2019 sem me cruzar, numa conversa pessoal, com um. Foi uma experiência curiosa.

quarta-feira, janeiro 01, 2020

Será este ano?


Será este ano deixo de comprar a montanha de revistas e jornais que acabo por nunca ler?

Será este ano que vou, finalmente, a Kalininegrado e a Stepanakert e que desisto, de vez, de ir a Alice Springs, a Sanna, a Salem, a Ulan-Bator e a Aleppo?

Será este ano que vou fazer uma limpeza drástica das “newsletters”, dos “clippings” e dos alertas regulares que, dia após dia, enxameiam a minha caixa de e-mails?

Será este ano que vou ver a minha ficha na Pide?

Será este ano que vou dormir à Pousada de Alijó, a única do continente onde nunca passei uma noite?

Será este ano que me converto à Apple?

Será este ano que vou ter a coragem de limpar mais de uma dezena de milhar de fotografias que já não me dizem nada e que ocupam um imenso espaço na “nuvem” que aluguei?

Será este ano que começarei a ler ”A Bíblia”, esse best-seller de que tão bem me falam?

Será este ano que vou passar a deitar-me mais cedo?

Se não for este ano, desde já prometo, é em 2021...

Anuário 2019


O José Carlos de Vasconcelos voltou este ano a desafiar-me a fazer no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, que dirige, mais um “Anuário”, uma coleta de pequenas reflexões, produzidas ao longo do ano que acabou, muitas das quais já aqui publicadas. Enchem duas páginas da publicação, podendo o texto ser lido aqui.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...