domingo, março 26, 2017

O Arnaldo


Arnaldo Matos, que a pequena história e a grande ironia política consagraram eternamente como o "grande educador da classe operária", bolçou há dias mais algumas das suas habituais inanidades discursivas. 

Desta feita, defendeu a legitimidade do ato terrorista em Londres, adiantando mesmo alarvidades (não consigo deixar de escrever isto assim) sobre a hipótese de tragédias idênticas virem a ocorrer por cá.

Desde há muitos anos que o tal Arnaldo goza, entre nós, de um complacente mas justificado estatuto de inimputabilidade, associado a um registo anedótico que o seu aspeto favorece e que atravessa os tempos. Pelo que me toca, confesso já ter perdido a paciência para a personagem.

O que mais me surpreende é a circunstância dos parentes do pobre Arnaldo não terem ainda recorrido aos serviços da unidade hospitalar que leva o nome da família.

sábado, março 25, 2017

Mário Centeno


No ano passado, escrevi por aqui isto:

"Há cerca de dois anos, uma organização de alunos da Universidade Nova de Lisboa convidou-me para um debate sobre os novos desafios da Europa. Teria como parceiro de mesa Mário Centeno. O nome dizia-me alguma coisa, mas pouco. Fiz uma pequena pesquisa e ela fez-me lembrar que ouvira Mário Centeno na conferência anual da Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde se pronunciara sobre Economia do trabalho. Ficara então muito bem impressionado com a apresentação feita, muito estruturada e com perspetivas que não conhecia.

O nosso debate na Nova correu muito bem. Voltámos, depois disso, a cruzar-nos algumas vezes, em reuniões, e, com naturalidade, vi-o surgir à frente da pasta das Finanças no governo de António Costa, de quem havia sido o "guru" na área económico-financeira. Todos nos recordaremos que havia então em Centeno uma jovialidade que se espelhava num sorriso franco, quase adolescente, que se manteve em muitas aparições públicas, em que foi sendo conhecido pelos portugueses."

No meu texto de 2016, notei ainda que o sorriso de Mário Centeno se tinha esvanecido. O peso da responsabilidade e as dificuldades da conjuntura estavam, claramente, a afetar a sua jovialidade.

Nos dias que correm, Mário Centeno já tem razões para rir. Conseguiu o mais baixo défice da democracia, obteve a recapitalização da Caixa - essa impossível missão, segundo algumas Cassandras - e ganhou indiscutível credibilidade junto das instituições europeias. Não esqueço que foi António Costa quem lhe propocionou as condições políticas para poder levar a cabo a política orçamental de sucesso que implementou. Mas os ministros das Finanças não são uns governantes quaisquer e Centeno provou, em escasso tempo, estar à altura da escolha feita por António Costa.

Estará já Carlos Costa arrependido em não ter aprovado o nome de Mário Centeno para a direção do Gabinete de Estudos do Banco de Portugal? Ao fazê-lo, apenas retirou uma linha ao currículo do seu provável sucessor.

O desastre de Trump


Donald Trump aprendeu ontem uma lição: a de que ter vencido as eleições presidenciais e ter um Congresso com maioria republicana em ambas as câmaras legislativas são condições insuficientes para poder gerir o país a seu bel-prazer. E isso é uma boa notícia, que prova que os "checks and balances" não desapareceram no cenário constitucional americano.

"Repeal & replace" o Obamacare era algo que os Republicanos tentavam há muito. Mesmo em tempos de Obama, poderiam já ter conseguido esse objetivo, desde que se tivessem entendido entre si. Com efeito, a maioria de que hoje dispõem em ambas as câmaras legislativas já existia antes das recentes eleições presidenciais. Só que, durante anos, os Republicanos não conseguiram acordar numa lei alternativa. Trump pensou que o impulso dado pela sua vitória facilitaria o entendimento entre aqueles republicanos que têm uma leitura reformista das mudanças a introduzir no Obamacare e quantos, pura e simplesmente, querem um regresso ao "statu quo ante", anulando-o por completo. Foram estes últimos que "roeram a corda" ao presidente, jogando agora no "quanto pior melhor", esperando pela implosão do Obamacare, através da sabotagem administrativa, já anunciada, de algumas das suas componentes. Verdade seja que, mesmo que o "Repeal & replace" tivesse passado na Câmara de Representantes, nada garantia uma aprovação no Senado. Mas o efeito político de uma passagem na câmara baixa teria sido muito importante.

Esta derrota de Trump, somada às objeções judiciais que dificultam a aplicação das medidas restritivas do acesso ao território americano e a outros recuos menos visíveis, induz uma imagem de ineficácia operativa numa presidência que já provou necessitar de êxitos adjetivados de forma gongórica para viver. A palavra fracasso não parecia fazer parte do vocabulário de Trump, que tinha saído de todos os relativos desaires anteriores sempre "aos ombros de si próprio", numa coreografia de megalomania que parecia imparável. Agora, com esta derrota, não há como esconder o desastre. Se eu fosse um comentador independente também esconderia a minha satisfação.

sexta-feira, março 24, 2017

24 de março


Gostei de ouvir o ministro Manuel Heitor, na intervenção que fez hoje no auditório da UTAD, recordar a data de hoje, o dia 24 de março, Dia do Estudante.

O Dia do Estudante não é nenhum pretexto para borga e copos, não é uma data lúdica e inconsequente, ocasião para festarolas. É uma data com uma história política. 

Em 1962, foi precisamente a circunstância do governo de então não ter permitido a sua comemoração no dia 24 de março (alguém sabe o porquê de ser essa a data?) que foi a origem da chamada "crise académica", com greves, prisões e o afastamento posterior da universidade de muitos estudantes e alguns professores.

Na sequência dessa repressão, Marcelo Caetano, já há três anos fora do governo, demitiu-se do cargo de reitor da Universidade de Lisboa, iniciando a "travessia do deserto" que, seis anos depois, o levaria ao lugar de Salazar. É assim uma ironia constatar que a sua (imerecida) fama de "liberal" lhe havia ficado do "24 de março" de 1962.

Repito: foi bonito ouvir o ministro falar na data mas, confesso, interroguei-me a mim mesmo sobre quantas pessoas, naquele largo auditório, tinham o 24 de março como uma etapa fundadora da nossa democracia.

E será que haveria alguém por ali que se recordasse da "República 24 de março", uma casa alugado por estudantes de esquerda, que existia no Porto, perto do Largo de S. Lázaro, na segunda metade dos anos 60?

Turras

Os mais novos não conhecem o termo. Os "turras" era a expressão simplificada que, no início da guerra colonial em Angola, qualificava aqueles a quem o regime chamava "terroristas" - isto é, todos quantos lutavam de armas na mão pela independência das colónias portuguesas, das quais se sentiam mais cidadãos do que portugueses. 

Nos idos de 1961, a palavra "turras" andava na boca de toda a gente e sempre desconfiei que a expressão "tugas" representou contraponto fonético de resposta nacionalista para designar os "portugas" brancos (devia escrever "europeus"?) de quem os independentistas se queriam ver livres.

Os "turras" eram portugueses? Na maioria, claro que sim, "jus solis" e "jus sanguinis", como a rapaziada do Direito gosta de dizer no latim que lhe nobilita os pareceres. 
Porquê? Porque eram nascidos no Portugal de lei, fihos de portugueses de lei. Mas seria mesmo assim? Ou não se daria o caso de os pais serem "assimilados", essa deliciosa fórmula racista que o Estado Novo consagrou, como que a dar a "honra" do aportuguesamento a quem vivia nas suas Angolas? E os "turras" brancos, de que o MPLA estava entãbatulhado.

Lembrei-me disto ao ouvir Theresa May dizer que o autor do atentado era "britânico de nascimento". É deliciosa, esta "de nascimento". O assassino das cinco pessoas em Londres era tão "britânico" e europeu como o anormal que hoje, em Barcelos, matou quatro. Este era "tuga" e, se calhar, também será "turra", ao olhar de alguns.

Posso estar enganado, mas com o caminhar para esta sofisticação no léxico, que conduz alguns a discriminar entre os cidadãos de lei do mesmo país, regredimos ao tempo dos "filhos de algo", que a corruptela veio a designar já não sei como - e a que um decreto pós 5 de outubro pôs termo. Definitivo.

Miguel Cadilhe


Conheci Miguel Cadilhe em meados dos anos 60, quando ambos éramos estudantes na Universidade do Porto. Segui depois, à distância, a sua brilhante carreira profissional e observei o seu posterior percurso político.

O país testemunhou a miserável campanha que lhe foi montada por essa escola de falta de ética deontológica que se chamou "O Independente" - que nem a circunstância de, pelo caminho, ter produzido alguns excelentes jornalistas isenta da culpa eterna de ter frequentemente utilizado métodos mais do que indignos. Como viria a suceder a outras figuras políticas, e sempre com impunidade, sobranceria e preconceito, Cadilhe foi então vítima de uma operação nojenta de denegrimento por parte daquele jornal, para a qual sempre olhei muito para além das barreiras ideológicas que nos separavam.

Há mais de uma década, voltei a reencontrar Miguel Cadilhe na Associação Portuguesa para o Investimento (API), a que presidia, onde, como embaixador, com ele trabalhei por algum tempo, como membro do respetivo "forum". Nos últimos anos, temo-nos cruzado em alguns espaços públicos de reflexão.

Miguel Cadilhe é conhecido - e acho que vive muito bem com isso - por não ter um feitio fácil e vi o modo como alguns tinham grande dificuldade em lidar com essa sua maneira de ser. Mas, para além de ser um homem honesto e de bem, é uma figura intelectual para cuja opinião, nos temas económicos, sempre olhei com atenção: diz o que pensa, mesmo contra a corrente, com frontalidade e sem qualquer receio de enfrentar o "politicamente correto", qualidade que vai escasseando por aí.

Hoje, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) vai testemunhar-lhe o seu reconhecimento institucional, por ter tido um papel de relevo na consagração do Alto Douro Vinhateiro como Património da Unesco, atribuindo-lhe o título de Doutor "honoris causa". 

Com amigos e admiradores de Miguel Cadilhe estarei presente, também como antigo presidente do Conselho Geral da UTAD, na ocasião desta sua justa consagração.

As sombras sobre a festa


Passam amanhã 60 anos sobre a data em que um grupo de seis democracias europeias decidiu instituir entre si aquele que é, sem a menor sombra de dúvida, o mais bem sucedido processo de cooperação internacional que a História regista. Aquilo a que hoje chamamos União Europeia resultou do aprofundamento dessa ideia, nascida para curar as feridas da guerra e para dar solidez a um espaço onde a economia de mercado se contrapunha ao modelo das “democracias populares”. Com os Estados Unidos, a Europa viria também a partilhar a vitória na Guerra Fria, simbolizada pela implosão da União Soviética e pela recuperação da soberania plena por parte dos países que, no Centro e Leste do continente, deixaram então de respeitar a tutela de Moscovo.

Esses países, com toda a naturalidade, procuraram integrar o projeto que, ao longo de décadas, lhes tinha sido mostrado, por cima do Muro de Berlim, como um horizonte de esperança radiosa, um novo modelo de felicidade coletiva – depois da desilusão que o “socialismo real” fora para uma grande maioria. Fazer parte da União Europeia, bem como da NATO, foi o instrumento utilizado por esses Estados para exorcizar a memória do tempo anterior. Muitos deles carrearam para a União toda a sua experiência traumática, consagrando isso numa hostilidade aberta face a Moscovo e numa pulsão muito forte contra modelos de solidariedade social que fizessem lembrar o voluntarismo igualitarista que antes lhes havia sido imposto. A recuperação da soberanias conduziu-os, em alguns casos, a tropismos autoritários, com desrespeito pela separação de poderes, pelas minorias e por alguns Direitos Fundamentais. Afinal, provava-se, o “template” de valores da União podia ceder perante algumas agendas nacionalistas recém-chegadas.

Também a restante União Europeia, nesse mesmo tempo, se foi alterando. Alguma desilusão sobre a capacidade do projeto integrador provocar um contínuo choque de riqueza e bem-estar, somada a tensões culturais e étnicas que alguns modelos nacionais se revelaram incapazes de superar, com consequências de disrupção nos seus sistemas políticos, veio mostrar que o consenso de décadas estava definitivamente abalado e que o anterior “mainstream” partidário, mesmo com alternância, podia estar em vias de esgotar as suas virtualidades. O surgimento em força do populismo e de modelos confrontacionais, conjugado com alguma desintegração europeia, pode estragar a festa da sexagenária Europa comunitária.

Para nós, portugueses, que entrámos há 30 anos, precisamente a meio da viagem percorrida pela Europa comunitária, a experiência provou à saciedade que este é projeto onde melhor podemos ancorar a nossa democracia e o nosso futuro. Lutar pela Europa é um desígnio nacional imperativo.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, março 23, 2017

Alvo manto


Se as coisas ainda são o que eram, esta neve primaveril que cai sobre Vila Real não vai "pegar" - como se dizia no meu tempo de infância, então fazendo figas para que o nevão fechasse o caminho para a escola. 

Nesse outro tempo, a neve caída na cidade, com ou sem fotografia (do Marius ou do Macário), era notícia garantida na meia página que "O Comércio do Porto", "O Primeiro de Janeiro" e o "Jornal de Notícias" - os três jornais do Porto que chegavam à cidade (havia também o vespertino "Diário do Norte", mas não se vendia em Vila Real) - dedicavam diariamente às principais cidades nortenhas.

Em minha casa, lia-se o "Comércio" e o "Janeiro", respetivamente comprados para o meu pai e para o meu avô. Todos os anos, por ocasião da queda da neve (nesse tempo, a neve parecia cair com maior regularidade), o meu pai lembrava:

- Ora deixa cá ver qual é o jornal que traz a frase batida "a cidade acordou sob um alvo manto de neve". 

É que essa figura estilística, muito própria de um gongórico jornalismo de província então em voga, era repetida com regularidade e sem pudor do ridículo.

Se não vinha nesses dois jornais comprados na loja do Albertino, o meu pai, antecipando o gozo de a encontrar, procurava-a no "Notícias", numa ida ao café no Excelsior, na Rosas ou na Pompeia (a Gomes foi para ele um pouso mais tardio). 

O "Notícias" era um jornal então menos conceituado, com muita nota desportiva da região (nisso só ultrapassado pelo "Norte Desportivo", do Alves Teixeira) e com um pendor para o crime e para o "sangue": "Carteiro de Contumil mata a sogra"... (Mas nunca, porque o respeitinho social-geográfico era muito bonito: "Crime passional em Nevogilde").

Amanhã, mais pela força do degelo do que pela melhoria do jornalismo, "cheira-me" que a cidade não vai acordar "sob um alvo manto de neve"...

Trump


Muitos nos enganámos no resultado das eleições americanas, mas muito poucos nos equivocámos quando antecipámos o modo como o início da presidência Trump iria ser.

Passos Coelho

O futuro político de Pedro Passos Coelho começará a vislumbrar-se mais claramente quando pudermos saber quantos candidatos autárquicos do seu partido querem o líder nos seus comícios.

Londres


O modo como a consciência europeia reagiu à tragédia de Londres poderá ter mostrado aos britânicos que, por muitas fronteiras que o Brexit um dia venha a criar, a solidariedade humanista atravessá-las-á sempre.

Dijsselbloem

Ficou bem evidente, no incidente que provocou, que Dijsselbloem não pensa nas coisas que diz, mas ficou também claro que o que disse foi o que realmente pensa.

quarta-feira, março 22, 2017

Os arrebentas

Os blogues, algum jornalismo e a saloiíce lusitana dão-lhes pasto para afirmação. São os contestatários militantes do senso-comum, os abaladores radicais do pensamento "mainstream", os desmancha-prazeres de qualquer fumo de consenso. São os "arrebentas" mediáticos.

Quando, por um qualquer processo coletivo de sentimento partilhado, acaso se cria pela sociedade publicada uma linha de atitude comum, logo eles surgem, ao cair do post ou da colunazinha, no seu papel de observadores endemicamente heterodoxos, à cata da originalidade, sempre "do contra": "Ai toda a gente acha isso? Pois eu, não senhor!" Aconteceu agora com a reação àquilo que Dijsselbloem afirmou. Passadas umas horas sobre o zurzimento do tipo dos caracolinhos, lá vieram eles, rasteiros, a roer a corda.

Há quem ache graça ao estilo, quem se divirta com a originalidade, enfim, quem os leve a sério. O subdesenvolvimento também é isto.

terça-feira, março 21, 2017

McGuinness e os Fenianos


Ontem à noite, passeando com amigos brasileiros na Avenida dos Aliados, no Porto, apontei-lhes o edifício e contei-lhes a história do Clube dos Fenianos.

Nos primeiros anos do século XX, um grupo de portugueses trouxe do Brasil para o Porto o modelo de Carnaval que, por lá, um designado "Congresso dos Fenianos" há muito organizava, com grande popularidade. E por que é que se chamavam "fenianos"? Porque esse movimento associativo brasileiro fora, ele próprio, originalmente tributário de grupos de apoio aos católicos irlandeses, organizados nos Estados Unidos da América, na longa, violenta e trágica luta contra a dominação britânica na Irlanda do Norte. Por uma qualquer razão, a solidariedade com os "fenianos" havia sido entretanto transmitida dos EUA para o Brasil.

O nome "fenianos" havia nascido em meados do século XIX, designando quantos lutavam contra os britânicos. O principal partido político católico da Irlanda do Norte é, ainda hoje, o famoso Sinn Féin (que, durante muitos anos, foi o braço político do IRA). Entre o "Féin" e os "Fenianos" há assim uma curiosa correlação histórica, embora sem a menor conotação política.

(Uma dúvida me fica: como é que os britânicos, que preponderavam na sociedade portuense, terão encarado o surgimento local de um Clube dos Fenianos, com um nome tão marcadamente ligado à luta irlandesa, bem acesa nesse início do século XX?)

A vida traz-nos algumas coincidências.

Olhando as notícias, há minutos, vi que foi precisamente hoje a enterrar uma grande figura do Sinn Féin, Martin McGuinness, destacado elemento do movimento revolucionário católico irlandês. Com Gerry Adams, McGuinness constituiu a dupla de liderança mais visível do Sinn Féin. Por oposição ao estilo mais populista de Adams, McGuinness era um personagem "soft spoken", mas, eventualmente, por tudo quanto dele se sabe, até bastante mais radical. Tudo indica que McGuinness teve mesmo sangue nas suas mãos, nos tempos da sua militância no IRA.

As coisas dão muitas voltas. Foi em grande parte graças a McGuinness, e aos seus dotes negociais, que foi possível, a partir de 1998, caminhar para um processo de paz que parece estar para durar. Quando um dia vi McGuinness com Ian Paisley, o iracundo líder protestante, lado a lado e convivendo cordialmente no mesmo governo, convenci-me, pela primeira vez, de que, em política, não há mesmo impossíveis.

segunda-feira, março 20, 2017

Rockfeller

A morte, hoje, do milionário David Rockfeller, aos 101 anos, trouxe-me à memória um episódio ocorrido numa viagem de Mário Soares a Nova Iorque, nos anos 70. Foi-me contado, não há muito tempo, por alguém que acompanhou Soares a um encontro com uma figura, já bastante idosa, também da família Rockfeller. 

Na altura, Mário Soares procurava concitar apoio a Portugal por parte de entidades do setor financeiro americano, tendo em atenção o prestígio que criara como figura de credenciais democráticas, no Portugal ainda algo convulso desses tempos. O Rockfeller milionário com quem então se encontrou é que, muito provavelmente, tinha um escasso conhecimento da História recente de Portugal, pelo que talvez não tivesse sido a pessoa mais adequada...

Nessa reunião, Mário Soares explanou as suas razões, devidamente traduzido para inglês por um colaborador. O seu interlocutor parecia um pouco "aloof", mas quem o acompanhava tomava as necessárias notas, pelo que a utilidade do encontro parecia assegurada. No final, o idoso Rockfeller disse umas palavras de circunstância e a reunião terminou. Quando ambos tinham acabado de se cumprimentar, o americano "deixou cair", em jeito de derradeira mensagem: "My best regards to doctor Salazar". 

Soares só ouviu a última palavra e perguntou, já na porta, para um dos integrantes da delegação: "Ele disse qualquer coisa, no fim, sobre Salazar. O que é que foi ?". "Não foi nada de importante...", retorquiu-lhe o colaborador.

domingo, março 19, 2017

Rentes de Carvalho

Desagrada-me ver uma pessoa por quem tenho grande respeito como escritor, José Rentes de Carvalho, assumir posições favoráveis à extrema-direita da Holanda onde vive. (Nada que me tenha espantado muito, confesso, tendo em atenção opiniões suas lidas na imprensa, nos últimos tempos). Mas isso nem por um segundo afeta o prazer que sempre me dá ler a sua obra. Há escritores reacionários geniais, da mesma forma que a literatura de alguns revolucionários roça a mediocridade. Só os sectários olham a qualidade através das lentes da ideologia.

sábado, março 18, 2017

Rui Afonso (1947-2017)

Uma tarde, antes do 25 de abril, na Boa Hora, o Rui Afonso foi a julgamento no Tribunal Plenário. Era a política, claro, porque a ditadura, mesmo já na decadência, não perdoava o dissídio. Creio tê-lo conhecido nesse dia, através de um dos seus maiores amigos. Ao longo dos anos, fui-o encontrando a espaços, em especial depois de Macau ter passado a ser o seu porto de ancoragem de vida. Para além de Lisboa, cruzámo-nos em Oslo, em Londres e, claro, lá em Macau, onde voltou a sentir-se tentado por alguma ação política, num registo agora mais sereno. Lembro-me muito bem de uma conversa que tivémos uma noite em Londres, num tempo pessoalmente menos fácil para ele, por razões que não vêm ao caso: falámos por bastante tempo do conceito de medida do sucesso individual, cruzando os perfis de vida muito diferentes que ambos tínhamos e leituras mútuas sobre algumas realidades. O Rui era uma figura imensamente cordial, tinha um tom de voz inesquecível, que acompanhava um eterno sorriso que, numa primeira leitura, podia parecer um pouco sarcástico, mas que, com o fluir da conversa, se percebia ser o de alguém que tinha sobre a vida um olhar divertido e positivo. Era, ao que sempre me disseram, um jurista de eleição e via-se que tinha um imenso prazer naquilo que fazia e que o realizava. O Rui saiu ontem da cena da vida, imediatamente após celebrar as badaladas das sete décadas. Sei que os seus últimos tempos foram bastante difíceis. Mas o que é isso comparado com a vida feliz e completa que teve, com uma bela família e muitos amigos? À distância, deixo aqui um beijo sentido à Cesaltina e a toda a família.

Isto é o da Joana?

Aconteceu-me há dias. Na Bertrand do Chiado. Perguntei se tinham um determinado livro e fui informado de que não. Através do sistema informático, tentaram saber se, por acaso, alguma das outras lojas do grupo teria um exemplar. Não tinham. Perguntei se podia encomendar. A resposta foi curiosa, depois de inquirirem: "Não podemos encomendar. Não trabalhamos com essa editora". Qual era a editora? Uma esconsa e desconhecida impressora de vão de escada, com meia dúzia de títulos num reduzido catálogo? Nada disso: era a Imprensa Nacional / Casa da Moeda.

Anda estranho o mundo das livrarias. Já sabemos que os grandes grupos - que são proprietários de várias editoras - "compram" as mesas mais visíveis das principais lojas, onde exigem que sejam colocados exclusivamente os seus livros. O mesmo vale para os escaparates. Também temos conhecimento que, em muitas casas, salvo com "cunhas" ou simpatia dos donos, muitas editoras, em especial as mais pequenas, têm grande dificuldade em manterem à vista, durante algum tempo, os seus livros. E isso é o caminho para o sufoco comercial.

Tenho um cartão Bertrand (como tenho um cartão FNAC e outro Almedina). Mas perante este comportamento sectário da Bertrand, à revelia da simpática abertura que, no passado, sempre foi apanágio da casa, e que, ainda por cima, nos obriga a adquirir sacos de plástico (o que seria a gentileza mínima para os clientes que pretende fidelizar através do cartão), estou a pensar seriamente sobre se não deixarei de passar definitivamente pelas suas lojas. Custa muito quebrar um hábito com mais de 50 anos, mas a Bertrand tem o dever de servir bem os seus clientes e facilitar a vida em especial a quem por lá compra muitos livros, como é o meu caso. É que, como ontem dizia o advogado de Sócrates (não sei se referindo-se à procuradora-geral), "isto não é o da Joana"...

sexta-feira, março 17, 2017

A cobardia democrática


O resultado das eleições legislativas na Holanda foi visto com alívio por quantos vivem preocupados com o ascenso de uma agenda extremista em alguns países. Somos quase os mesmos que, há meses, nos congratulámos com o facto de, nas eleições presidenciais austríacas, o candidato ligado à extrema-direita ter sido derrotado. Agora, nesta corrida de obstáculos contra o radicalismo, vamos “fazer figas” contra Marine Le Pen e, depois, estaremos muito atentos às eleições na Alemanha e na Itália. 

Há, contudo, qualquer coisa de ingénuo nesta atitude. O Brexit e Trump fizeram soar alguns alarmes, por terem reforçado a ideia de que há consideráveis setores, em algumas opiniões públicas, sensíveis a alguns estímulos primários, às vezes assentes em inverdades, que levam a derivas extremadas do eleitorado.

Mas que resultado prático tem este nosso alarmismo, perante uma realidade que inexoravelmente vai avançando? É verdade que os extremistas da Áustria e da Holanda foram travados, da mesma forma que parece evidente que Le Pen não vai conseguir entrar no Eliseu e que a extrema-direita alemã dificilmente terá uma expressão significativa no Bundestag. Mas até quando?

Há algo de que poucos falam e que, a meu ver, tem uma imensa gravidade: é que algumas das forças que se vão mantendo no poder, numa conjuntural e saudada não-vitória do extremismo, fizeram entretanto uma “evolução” ideológica, com vista a capturar eleitorado potencial à extrema-direita, que se traduziu na mimetização, quiçá em termos apenas mais democráticos e aceitáveis, de aspetos da agenda extremista. Olhe-se, em França, para o discurso do partido de Sarkozy ou para algumas posições da CSU, a ala bávara da CDU alemã de Angela Merkel, para se perceber que, aparentemente sob o mesmo rótulo partidário, estamos já a falar de formações ideologicamente mutantes, ainda que de forma subliminar.

O que fazer? Desde logo, assumir abertamente que o eleitor não tem sempre razão. O revoltado preconceituoso, que assume atitudes racistas, xenófobas ou religiosamente discriminatórias, bem como discursos de extremado nacionalismo e de intolerância cultural, deve ser ouvido, mas não tem razão e não deve ser “servido” por políticas que confortem essas repugnantes ideias. Se não assumirmos isto, estaremos a dizer adeus à ética da democracia. Os líderes politicos não existem para serem apenas meras correias de transmissão dos sentimentos do eleitorado, sejam eles quais forem. Só os populistas atuam assim. Quem se preocupa com o bem-estar das sociedades e com a paz social tem a obrigação de tentar reconduzir essa revolta, através de pedagogia cívica, para a adoção de políticas de razoabilidade e de bom senso. Tentar compreender as razões que levam ao extremismo não é a mesma coisa do que ser seguidista em relação a ele. A isso chama-se cobardia democrática.

Para a semana, falaremos mais sobre isto.   

quinta-feira, março 16, 2017

Zizanias

Desde o início, a liderança de Assunção Cristas, no seio do CDS, esteve longe de ser uma coisa pacífica. Isso pode não ser muito evidente para alguns observadores exteriores, mas os sinais que chegam do interior do partido indicam que a substituta de Paulo Portas está ainda muito longe de conseguir um pleno de aceitação. E que, para muitos, o seu lugar não está seguro, dependendo a sua sustentação futura de vários fatores. Quero com isto começar por notar que Cristas continua sob teste.


Alcandorado por alguns anos à partilha do poder, e dos lugares no aparelho de Estado (e não só) que esse mesmo poder sempre acarreta, o CDS digere ainda o afastamento por que passa, depois do "golpe" da "geringonça". Não tendo uma estrutura autárquica que lhe dê uma plataforma alternativa de exercício político em tempos de oposição (como têm o PSD e, mais residualmente, o PCP), o CDS foi entretanto criando hábitos de alimentação de um clientelismo de quadros que a atual travessia do deserto não favorece. E Assunção Cristas, embora não por culpa própria, é a cara desse momento difícil. A excitada vocalização histriónica, com alguma demagogia à mistura, de algumas das suas prestações parlamentares não a tem ajudado muito.


Uma nota pouco conhecida: dos dois partidos da oposição, o CDS é aquele que mantém uma relação mais eficaz, discreta mas operativa, com o presidente da República. Se se olhar para a Casa Civil de Belém talvez se perceba melhor isto.


O PSD liga muito pouco ao CDS, como já era muito evidente no tempo de Paulo Portas, que Passos Coelho tratou sempre "por cima da burra" e fez passar por muitas humilhações. Utiliza-o como muleta indispensável para um eventual regresso a S. Bento, mas irrita-se visivelmente com os seus arroubos de independência, alguns com laivos provocatórios.


A candidatura autónoma de Assunção Cristas a Lisboa foi uma bofetada que deixou marcas. A revelação ontem feita pela líder do CDS de que as temáticas financeiras ligadas à banca eram praticamente excluídas do debate em Conselho de Ministros ensinam-nos muito sobre o que foi o método do governo de coligação Troika-PSD-CDS. E mostram-nos bem o caráter subordinado do CDS.


Na entrevista dada ao "Público", Assunção Cristas foi, contudo, mais longe, ao deixar algumas "indiretas" a Paulo Portas. Ora tratando ela de uma pura criação do antigo líder, que não existiria sem ele, Cristas está muito longe de ter já criado uma legitimidade própria que lhe permita sustentar-se num qualquer registo de contraposição a Portas.


Cristas corre assim um imenso risco interno e a medida disso será, inevitavelmente, o resultado que vier obtiver na luta autárquica em Lisboa. É aí que jogará o seu futuro. Se as coisas correrem mal, a ambição de Nuno Melo tornar-se-á ainda mais evidente. Se conseguir salientar-se, por contraposição à expectável humilhação lisboeta do PSD, poderá ter uma sobrevida.


A história prova sempre que é sempre um caminho árduo para alguém confrontar-se com o espetro de um antecessor forte - neste caso cuja imagem, com os anos, se passou a confundir com a própria imagem do partido. Veremos se Assunção Cristas, que há que reconhecer que é um dos quadros mais valiosos que emergiram na direita nos últimos anos, vai conseguir, ou não, afirmar-se.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...