Responder ao desafio que me foi lançado pelo “Diário de Notícias”
Por razões ligadas aos equilíbrios políticos da Guerra Fria, Portugal apenas em 1955 foi admitido nas Nações Unidas, isto é, cerca de
dez anos após a criação da organização. Aquilo que essa admissão possa ter tido de sucesso
diplomático rapidamente se transformou num pesadelo para o governo de Lisboa,
com a ONU a converter-se num palco privilegiado para os ataques à política
colonial portuguesa. O nosso país entrou numa crescente
confrontação com diversas instâncias da organização, que levaria mesmo, mais tarde, à sua
marginalização em algumas das suas agências especializadas.
A ditadura portuguesa conviveu sempre mal com o mundo multilateral, tido como pouco conforme com os jogos de
sombras do bilateralismo com que o rendilhado da diplomacia salazarista tinha
conseguido passar “por entre as pingas” na 2ª guerra mundial, e que, aliás, viria a ser a chave para a sua sobrevivência no final desta. O facto da ONU ter passado a
incorporar uma imensidão de novos Estados, saídos das descolonizações, e naturalmente solidários com os territórios que ainda
lutavam pela sua autodeterminação, só agravava a desconfiança que esse areópago provocava em S. Bento.
Na minha juventude, as Nações Unidas eram apresentadas como um "inimigo",
uma instância em que Portugal era sistematicamente atacado. Com uma comunicação
social censurada, com o questionamento da guerra colonial visto como traição, a
imagem da ONU que a ditadura expunha tinha um tom sempre negativo, marcado pela
ação no seu seio dos países do "Terceiro Mundo”, que apoiavam os
"terroristas" que atacavam as nossas "possessões", a ser
diariamente diabolizada. O facto de frequentemente muitos países ocidentais se
“aliarem” na ONU ao mundo comunista no apoio os movimentos independentistas era
vendido como um contrasenso: só Portugal defendia o Ocidente, mesmo contra a
vontade deste...
O 25 de abril mudou fortemente a perceção de Portugal
no plano externo, mas a imagem das Nações Unidas, das suas virtualidades, do
fantástico trabalho dos seus diferentes órgãos e agências, ficou ainda longe de
ser reconhecido entre nós. Em inícios de 1978, fiz parte de um grupo que
criou em Lisboa uma estrutura tendente à promoção da ONU em Portugal. Entre os fundadores da Associação para a Cooperação com as Nações Unidas
em Portugal (ACNUP) contavam-se então nomes como D. José Policarpo, Rui
Machete, António Costa Lobo, Carlos Eurico da Costa e João Palmeiro.
Quando, muitos anos mais tarde,
representei Portugal nas Nações Unidas, o panorama era já bem diferente. Em
Genebra e em Nova Iorque, a nossa diplomacia firmara o nome do nosso país no
quadro da organização, com duas bem sucedidas presenças no Conselho de
Segurança, qualificados quadros nacionais a serem reconhecidos no seu âmbito e,
no geral, uma postura coerente e assente num corpus ético, que o caso de Timor-Leste ajudara a consagrar.
Portugal é, nos dias de hoje, visto na ONU como um “honest broker”, um país que cumpre o que promete - e a confiança e a previsibilidade são
os valores mais importantes na vida internacional. Se pensarmos que muitas dezenas
de Estados têm as Nações Unidas como o centro fulcral da sua atividade
diplomática, talvez percebamos melhor a relativa “facilidade” com que o nosso
país consegue, regularmente, alguns importantes sucessos diplomáticos à escala
global.
(Artigo escrito para o número especial do "Noticias Magazine", hoje distribuído com o "Diário de Notícias", a propósito da entrada em funções de António Guterres como secretário-geral da ONU)