quarta-feira, setembro 28, 2016

1968


Eu tinha vinte anos, nesse final de Setembro de 1968, naquela noite em que, em casa de um familiar, de passagem por Vila Real, vi na televisão um emocionado Américo Tomaz anunciar que ia substituir Salazar por Marcelo Caetano. Não esqueço aquele instante, que pressentia ir ser uma esquina da nossa história política.

Aquele iria ser o último dia de várias semanas em que o poder político da ditadura mostrara, finalmente, que era humano, frágil e suscetível de ser abalado pela saúde do ditador. O país viu-se "voyeur" da luta pelo poder que se sabia estar a ser travada, espreitando, com a curiosidade de quem nada tem a ver com o seu próprio futuro, a coreografia dos dignitários da "situação", da antecâmara do Conselho de Estado às visitas ao hospital da Cruz Vermelha, onde Salazar estava internado. Uma novela que a televisão nos trazia todas as noites (a televisão de então "abria" ao final da tarde), no preto-e-branco da imagem do país político de então.

Um amigo de casa dos meus pais, que assinara as listas do MUD e, anos mais tarde, viria a assustar-se com o 25 de abril, mostrava-se francamente desiludido. Durante anos, tinha proclamado que "gostava que Salazar não morresse na cama" e, agora, isso não iria acontecer. 

Tal como no Totobola, que era então o casino dos pobres, o país fazia vaticínios. "Fala-se muito do Adriano Moreira", diziam uns. "Não, os ultras querem o Antunes Varela, porque o Adriano teve um conflito com o Venâncio Deslandes. Os militares não deixam". Outros interrogavam-se: "E o Caetano? Diz-se que tem as suas "tropas" bem colocadas". O ceticismo opunha-se: "Talvez, mas o episódio da crise académica de 62 pode ter-lhe sido fatal".

Acabou por não ser. Marcelo seria mesmo o escolhido. Fez um discurso de "sim, mas", onde se adivinhava o compromisso que tinha feito com Tomaz e que, no essencial, passava por um imobilismo "de facto" na questão colonial. E daí derivava a "necessidade" da continuidade da ditadura, onde a "primavera política" anunciada por Gonçalves Rapazote, na posse da nova revoada de Governadores Civis, foi uma mera flor de retórica.

Poucos meses depois, a lista associativa universitária em que eu fora eleito acabaria por ser "não homologada" pelo ministro da Educação, o divulgador da História em historietas, José Hermano Saraiva, tio do agora "infamous" José António Saraiva. A vontade democrática, no Estado Novo, estava subordinada ao arbítrio e "old habits die hard". Só o 25 de abril os "convenceu". Não tendo sido possível fazer as coisas através das "armas da crítica", não restou outra solução que não fosse a "crítica pelas armas", para usar conceitos consagrados por um economista alemão cujo nome me está a escapar.

"Eu tinha vinte anos. Não consentirei que alguém diga que é a idade mais bela da vida", afirmou um dia Paul Nizan. Tinha razão, ter vinte anos é ter uma idade como qualquer outra. Mas esse ano de 1968, em que eu tinha vinte anos, seria o ano do maio parisiense, do esmagamento da "primavera de Praga" e do massacre estudantil no México. Por essas e muitas outras razões, não seria um ano igual aos outros. Pelo menos para mim.

terça-feira, setembro 27, 2016

País abafado

Liga-se os canais da dita informação ou os noticiários generalistas e é só futebol, mais futebol e futebol! São horas de treinadores, de imagens de estádios, de camionetas a caminho dos ditos. Depois serão balanços, especialistas, o público cachecolado, jogadores a repetir como sua a linguagem da Bola, do Record ou do Jogo. Ah! E, pelo meio, há os jogos, claro, pretexto para tudo. 

Em que raio de país nos transformámos?! Saberão os portugueses que não há nenhum país no mundo onde as coisas se passem desta forma?! NENHUM!

Europa a dois tons


Estive ontem, sucessivamente, em dois exercícios "europeus".

O primeiro, de âmbito "luso-português". Coube-me coordenar um debate, à porta fechada (e sob a "Chatham House rule", isto é, podendo revelar-se o que se tratou, mas não podendo atribuir-se nominalmente as ideias expressas), com quinze especialistas nacionais, oriundos de diversas áreas. Tratava-se de preparar um documento com perspetivas portuguesas sobre o futuro da Europa, para integrarem um exercício intitulado "New Pact for Europe", organizado por várias fundações europeias.

Não obstante a heterogeneidade dos intervenientes, foi muito interessante constatar uma larga convergência de perspetivas, quer no diagonóstico da situação que atravessamos, quer nalgumas das principais perspetivas para o futuro. Não vou aqui elaborar sobre isto, a montante da síntese que outros têm a seu cargo, mas devo dizer que fiquei impressionado pela maturidade e pragmatismo do que foi dito. Sente-se a existência de um pensamento português sobre a Europa, já muito longe da agenda "paroquial" que fez escola por muito tempo.

O segundo exercício foi bastante diferente. Tratava-se de uma intervenção, num "mano-a-mano" com José Manuel Félix-Ribeiro, sobre geopolítica global, no meu caso competindo-me falar sobre a evolução do quadro dos "global players" nas últimas décadas. A audiência eram estudantes estrangeiros, na grande maioria europeus, pelo que a "questão europeia" acabou por ser o centro do debate, por quase uma hora. Foi curioso perceber as suas diferentes prioridades e preocupações, mas todos com uma agenda muito pertinente. 

A Europa mudou muito, desde os tempos em que me ocupava todos os dias. Faz-me bem "revisitá-la" nestas tarefas pontuais. Porque, qualquer que venha a ser o seu futuro, ele será sempre o nosso.

O debate


Trump perdeu? Não sei. Aos olhos dos seus potenciais votantes aquele estilo é adequado, a vacuidade do seu discurso não é punível. Clinton ganhou? Claro que teve uma melhor "performance", numa perspetiva racional e objetiva. Mas, este ano, nas eleições americanas, a racionalidade não parece ir ser o fator decisivo. Saí preocupado do debate.

segunda-feira, setembro 26, 2016

Guterres

António Guterres teve um excelente resultado na votação de hoje nas NU.

O facto dos seus imediatos "perseguidores" não se terem aproximado pode ter inviabilizado o surgimento de Kristalina Georgieva, como candidata de desempate - com a "vantagem" de ser mulher e de Leste.

Este modelo de escolha do novo SG acabou por favorecer a emergência da "qualidade", em detrimento de outros critérios. Isto parece tornar muito difícil, com risco de se tornar num escândalo, uma reversão drástica da tendência sustentada que favorece o candidato português.

Mas nunca confiar...

Embaraços socialistas


Duas semanas fora do país, olhando-o apenas através do iPad, têm a desvantagem de reduzir o quotidiano político às caricaturas dos "faits" mais ou menos "divers".

Saí de Portugal com o livro de revelações de Fernando Lima como o "escândalo" editorial, cheguei com ele esquecido e com o volume de José António Saraiva convertido no tema de debate. Este país adora revelações, é a pátria do coscuvilho.

Para o que verdadeiramente importa, isto é, para além da espuma dos dias e do diz-que-disse, este período trouxe duas novidades. Na minha opinião, ambas embaraçantes para o Partido Socialista e incómodas para António Costa. 

A primeira tem a ver com as questões fiscais. O que Mariana Mortágua disse, em termos de substância, não deveria ser notícia, não teve o menor radicalismo, contrariamente àquilo que a desonestidade intelectual de alguma oposição quis fazer crer. O relevante nesta história foi não ser Mário Centeno a dizê-lo. 

Seja verdade ou não, o PS projeta a imagem de estar, em certas temáticas, a reboque do Bloco. Mais do que se saber se isso é ou não verdade, preocupa-me que o PS não perceba que isso afeta fortemente a sua reputação internacional - e, com isso, a sua credibilidade europeia, com reflexos em termos negociais. 

Ainda neste plano, o que está a passar-se com a instabilidade fiscal em que o país continua a viver é também inquietante. Eu sei que os constrangimentos europeus transformam a variável fiscal num instrumento apetecível. Mas o governo tem, de uma vez por todas, de decidir sobre se quer dar de Portugal a imagem de um país "investment friendly" ou de um catavento fiscal. É que o nosso futuro passa por aqui.

A segunda novidade embaraçante chama-se José Sócrates.

É uma evidência que uma parte do PS nunca aceitou bem a linha imposta por António Costa, no sentido de "separação de águas", no tocante ao "caso Sócrates". Há quem seja mais sensível ao lamentável comportamento da justiça que ao país saiu em rifa e, acreditando ou não na inocência de Sócrates, considere que o PS deveria não se excluir da condenação do espetáculo vergonhoso que é o indefinido protelamento de uma decisão sobre o assunto, manchado por cirúrgicas quebras deliberadas do segredo de justiça, em conluio com uma comunicação social sem qualquer ética.

E há quem, como julgo deva ser o caso de António Costa - e qualquer que possa ser a sua íntima convicção sobre a eventual culpabilidade de Sócrates -, entenda que não teria sentido amarrar o destino do PS a este caso, poluindo indevidamente a vida política com um caso de justiça, que projetaria uma imagem de ingerência num múnus institucional específico. Eu estou de acordo com esta perspetiva.

Dito isto, percebe-se a estratégia de José Sócrates. É uma aposta na mobilização de uma parte do país - que, contudo, creio menor do que ele julga que é - que conserva uma imagem positiva da sua governação, e que está profundamente escandalizada pelo comportamento dos agentes da justiça. Ao fazê-la, para reforço da sua posição, Sócrates, optou também por atacar diretamente a direção do partido, por alegada falta de solidariedade. José Sócrates sabe bem que, entrando por aí, está a fazer correr um risco grave aos socialistas. E, porque o faz na prossecução de uma agenda que é eminentemente pessoal (embora ele entenda que é muito mais do que isso), deve estar preparado para que a direção socialista venha a reagir, a seu tempo, à altura do desafio. E mais não digo.

São estes os mais recentes embaraços para o PS e para António Costa.

domingo, setembro 25, 2016

Saraiva


José António Saraiva contou em livro algumas conversas com políticos. Hoje, apetece-me contar uma conversa minha com Saraiva.

Um dia de 2002, o "Expresso" trouxe, na primeira página, uma versão falsa sobre uma questão que me dizia pessoalmente respeito. Com ela se pretendia "branquear" uma patifaria política que tinham acabado de me fazer na minha vida profissional.

Telefonei a José António Saraiva e dei-lhe conta, com pormenores, da verdade incontroversa dos factos. Saraiva disse-me ter sido o principal responsável pela notícia e, em especial, pelo seu título enganador. Pareceu-me ter percebido que havia sido enganado por quem o tinha informado: "Foi uma muito alta fonte do governo que me passou a informação dessa forma". Eu presumia. Na semana seguinte, o "Expresso" viria a corrigir o tiro.  

Os governantes, às vezes, também mentiam a José António Saraiva. Contrariamente a ele, eu não guardo apontamentos de conversas, mas tenho boa memória.

João Cravinho


O meu querido amigo João Cravinho fez 80 anos, segundo consta. Um imenso grupo dos muitos amigos e admiradores que tem oferece-lhe hoje um almoço.

Deixo o texto que escrevi para o livro que hoje é editado em sua homenagem:


Um rapaz do meu tempo

Esta ideia de que o João Cravinho é 12 anos mais velho do que eu é apenas uma insuportável sujeição ao calendário, sem a menor aderência a realidade objetiva das coisas. Sempre vi o João como « um rapaz do meu tempo », mesmo que a expressão seja já de outro tempo. Por isso, os seus ditos 80 anos impressionam-me muito pouco.

Lembro-me – ele não se lembra, claro – de me ter cruzado com o João nos idos de 74, naqueles corredores, entre fardas e guedelhas, onde se construía uma confusa esperança, com alegria, ingenuidade e, vá lá !, confessemos, alguma irresponsabilidade. Ele era ou viria a ser « quase ministro », eu andava por ali a exercitar a política que tinha lido, absolvido nos erros pela boa intenção de ajudar a desenhar uma alternativa feliz à ditadura. Um dia, a vida levou-me para fora e, por muito tempo, perdi o João de vista, de quem ia ouvindo falar – sempre bem, com respeito e admiração. Só mais tarde, a « mesa dois » do bar Procópio, sob o humor ímpar do Nuno Brederode, nos voltaria a juntar, em largas e divertidas charlas. Finalmente, numa tarde quente de outubro de 1995, assobiando o Vangelis, entrámos ambos para essa aventura simpática que foi o governo de António Guterres. Já amigos, passámos a conhecer-nos melhor, com ele a tratar-me por um eterno « meu caro Francisco ».

Foi então que « aprendi » o João Cravinho. Podem crer que foi « um espetáculo » poder observar um ministro criativo, ousado, muitas vezes polémico, sempre teimoso, coerente, sólido como uma rocha, olhando dossiês técnicos com a vivacidade de um adolescente brilhante, mostrando-nos a modernidade de um olhar singular sobre a política. Posso confessar um segredo ? Foi ao ter o privilégio de assistir a algumas « performances » do João em Conselho de ministros que eu verdadeiramente entendi o que podia significar, em certas áreas especializadas, uma política « de esquerda » – sem chavões ideológicos, mas com um pragmatismo de onde nunca estava distante a solidariedade e a discriminação positiva para quem dela necessitava.

O que sempre me impressionou no João Cravinho foi a sua abertura ao contraditório, atitude de onde me pareceu, aliás, que retirava imenso gozo, porque isso lhe permitia exercitar a dialética, onde a firmeza dos seus argumentos melhor brilhava. Vi-o em confrontos complexos, em que aquele seu eterno sorriso, às vezes gargalhante, irritava, não raras vezes, o interlocutor. Mas pude apreciar e beneficiar da sua abertura a ideias diferentes, que sempre explorava com benevolência e simpatia. É talvez por isso que nunca o vi com uma « idade » diferente da minha.

Uma tarde, fui confrontado com um João Cravinho inesperado, de cuja cara desaparecera o sorriso para dar espaço quase às lágrimas. Foi numa evocação do embaixador Ruy Teixeira Guerra, nas Necessidades. O João não tinha esquecido, e lembrava isso com emoção, a mão amiga que lhe tinha sido por ele estendida, creio que num momento difícil de vida. Marcou-me muito esse momento e « esse » João Cravinho.

O João faz 80 anos ? Pois isso ! Ele que espere agora pelos meus 80, para comemorarmos a idade comum da esperança, que será sempre a daqueles que acreditam que a vida coletiva pode ser vivida de outro modo, mais solidário e mais justo.

sábado, setembro 24, 2016

O rolo



Aquela imagem ficou-me na cabeça. Dois carros parados, na estrada entre a Barra do Quanza e Cabo Ledo, a Sul de Luanda, pedindo, aos poucos que paravam, um cabo emprestado para rebocar um deles. Nenhum de nós tinha um cabo. A noite caía e eu imaginava o que poderia significar deixar por ali um dos carros até ao dia seguinte. E pensei: e se um dia me acontece o mesmo? Como é que vou levar o meu carro para Luanda? Tenho de arranjar um cabo!

Contudo, isso era mais fácil de imaginar do que realizar. Nessa Angola dos anos 80, as lojas estavam desertas, quase tudo tinha de ser importado pessoalmente. O pouco que aparecia à venda surgia de uma forma errática, às vezes só por horas, sob uma lógica de oferta comercial impenetrável: buchas plásticas para parafusos, blocos de papel almaço, porcas metálicas de um único modelo e coisas assim, sem o menor critério. Eram quase sempre coisas baratas, mas que fazer com elas?

Com a ideia do cabo "rebocador" na cabeça há várias semanas, dei-me um dia conta de que uma montra pela qual passava numa rua de Luanda, habitualmente vazia, mostrava algo que me parecia ser corda. Travei o carro e, perante a incredulidade da minha mulher, disse: "Parece-me que há ali corda à venda". Devo ter dito "parece que está a sair corda", porque essa era a expressão consagrada pelos tempos.

Entrei na loja, olhei para os três imensos rolos de corda que estavam por ali e exultei quando o empregado me disse que, de facto, estavam "a vender corda". Disse que queria uns 7 ou 8 metros, que avaliei suficientes para poder improvisar dali um cabo rebocador. "Não podemos, camarada!" ("Camarada" era o tratamento ritual de regra). Mau! Então a corda estava à venda e não podiam vender? O mistério esclareceu-se logo: só podiam vender o rolo inteiro.

Mas para que é que queria um rolo imenso de corda, com dezenas de metros, um peso brutal e grande dimensão? O preço era uma ridicularia. Perguntei se podia ficar só com dez metros, pagando a totalidade e deixando o resto para a loja. Os olhos do empregado sorriram de antecipada felicidade, logo interrompida pela constatação: "Loja não tem faca, camarada!".

Recordo o olhar espantado da minha mulher quando comecei a rebater o banco de trás do Golf e viu aproximarem-se quatro empregados, carregando um rolo imenso de corda. Um espanto só equivalente ao "sucesso" que fez a entrada do mesmo rolo na embaixada, para o que foi necessário mobilizar a boa vontade de alguns funcionários, impressionados pelos "bons contactos" que seguramente tinham facilitado aquela aquisição.

Cortei a corda necessária para o meu cabo e coloquei o resto do imenso rolo num anexo ao meu gabinete. A notícia da insólita compra correu a embaixada e tive de fazer "visitas guiadas" ao objeto. Todos invejavam a minha compra mas, quando perguntados se queriam alguns metros de corda, ninguém avançava, talvez porque não fosse evidente a sua utilidade. Mas se precisassem...

Um dia, quase um ano depois, fui transferido para Lisboa. Na relativa confusão da partida, esqueci-me da existência do rolo de corda, o qual, de qualquer forma, sempre ficaria para trás. Passaram, entretanto, uns meses. Uma tarde, em Bruxelas, regressado de uma reunião desses primeiros tempos das instituições europeias, tinha um recado de Lisboa: era um colega que me informava que telefonara de Luanda o "senhor António", com um assunto urgente. O "senhor António"? Seria um dos contínuos da embaixada? O que quereria?

Chegado a Lisboa, no dia seguinte, falei para Luanda, para a embaixada e pedi para falar com o senhor António. Ouvia-se muito mal. Tinha sido de ele, de facto. Algum problema? Era o rolo de corda!

O rolo de corda?! O que é que havia com o rolo de corda? Havia uma "grande confusão" com o rolo, que eu tinha lá deixado. "O senhor doutor lembra-se que, no dia da sua partida para Lisboa, lhe pedi o rolo e me disse que podia ficar com ele?" Não me lembrava, mas imagino bem que o pudesse ter feito. Mas qual era o problema? "É que o Toni diz que o rolo é de todos e quer tirar uns metros!" O Toni era um motorista. "Anda aqui uma grande maka por causa do rolo!"

Decidi seguir a regra africana da prioridade ao "mais velho" e confirmar (?) ao António, prestes a reformar-se, a minha "doação". E pedir que dissesse ao Toni, da minha parte, que o rolo "tinha dono". O António ficou contentíssimo. Foi a última vez que o ouvi. Para que lhe teria servido o rolo de corda? Provavelmente para nada, mas, naqueles tempos, era preciso aproveitar tudo o que estivesse "a sair".

(O Manuel Serra pediu-me ontem para lembrar esta historieta, que um dia lhe contáramos.  Ela aqui fica.)

sexta-feira, setembro 23, 2016

A outra América


« Um espetro ameaça a Europa » : a possível vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas. Karl Marx usou a expressão para qualificar o medo que o comunismo estava  provocar no mundo burguês. Agora, responsáveis e analistas de setores europeus com diferente lateralização ideológica convergem no seu pânico perante a possibilidade de Trump vir a ocupar a Casa Branca. Haverá razões para tal ? Tentemos simplificar a resposta.

Em matéria de política interna, graças ao sistema de « checks and balances » que a constituição americana impõe, através da força da Câmara de Representantes e do Senado, o ocupante da Casa Branca pode ficar de mãos atadas, com grande facilidade, quando pretender executar a sua agenda política. Clinton e Obama sentiram-no na pele. Um eventual presidente Trump deverá, ainda com maior probabilidade, vir a enfrentar o mesmo problema, atento o radicalismo de algumas das suas propostas.

Porém, quem ocupa a presidência americana tem um imenso poder sobre o mundo. Goste-se ou não, os EUA determinam grande parte dos equilíbrios globais. Essa relevância reforça-se nos momentos de maior tensão, como é aquele que atravessamos. Ora o presidente americano, como « chief-in-commander » das Forças Armadas e indisputado gestor da política externa do país, tem escassas peias internas na liberdade da sua ação internacional. Por essa razão, não é indiferente, para todos os não-americanos, quem vier a ser escolhido para o lugar. E, desde logo, para os europeus.

Por muitos anos, o sistema americano produziu figuras que chegaram a Washington com o beneplácito das elites nacionais, republicanas ou democratas. Hillary Clinton, se vier a ser eleita, é uma expressão clara dessa elite. Trump não o será.

Muito de nós, ao longo dos anos, falávamos da « América profunda », desse mundo voltado para si mesmo, que caricaturávamos como ignorante, preconceituoso e cultor de um nacionalismo saloio. Vimos nascer Sarah Palin e o « Tea Party”, mas vivíamos confortados na ideia de que “essa América” nunca condicionaria, de modo decisivo, a atitude do país. No fundo, todos confiávamos que, fosse quem fosse que a América viesse a escolher, seria sempre alguém que emergeria da elite que sempre dominou Washington.

Enganámo-nos. Um dia, isto é, agora, essa América fora do “mainstream”, no seio da área conservadora, produziu um candidato a que a tal elite foi incapaz de opor uma alternativa. Alguém com um discurso errático, um “gaffeur”, com uma agenda internacional que vai do “muro” mexicano à sedução por Putin, passando pela ameaça da saída da NATO e outras bizarrias. Uma certa América cansou-se dos partidos do “mainstream” e está a impulsionar figuras fora da matriz tradicional. Não foi Sanders do lado democrata, é Trump nos republicanos.

Por isso, temos de ser realistas: os pesadelos, às vezes, também se concretizam.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, setembro 22, 2016

Tecnologia

Há pequenas coisas que qualificam um país, que nos levam a apreciar a sua tecnologia e, através dela, a interiorizar um respeito profundo pela sua cultura industrial. Casos simples podem fazer muito por uma imagem nacional. Aqui vai um exemplo: as balanças caseiras para pesar pessoas.

Por uma coincidência de viagens muito rara, tenho andado a mudar de hotel com frequência nas últimas semanas. Nas casas de banho dos quartos dessa quase dezena de hotéis encontrei sempre dessas balanças, de marcas diferentes e, naturalmente, vou testando o meu peso. Até hoje, todas praticamente coincidem entre si, apresentando números que são um chocante (e até insultuoso) exagero. É incrível como é possível que marcas de balanças oriundas de vários países revelem estes erros de fabrico, sem que haja sido exposta, por uma aferição de qualidade, esta verdadeira fraude comercial, que, como se vê, tem uma dimensão global!

Por que razão trago o assunto aqui e agora? 

Por uma razão simples: porque acabo de me pesar numa balança sul-africana e, finalmente, tive o ensejo de experimentar um produto de indiscutível qualidade, fiel ao rigor, com a tecnologia certa. As outras balanças, ridiculamente, apresentavam quase dois quilos a mais, imaginem! 

Nunca mais quero balanças que não sejam produzidas na África do Sul!

quarta-feira, setembro 21, 2016

Praxes

O ministro Manuel Heitor teve a coragem de pôr o dedo na ferida: não há más praxes nem boas praxes. A praxe é uma prática discriminatória, reveladora de uma espécie de desforço por parte de quem se quer vingar daquilo que terá sofrido no passado, instituindo uma ridícula hierarquia entre os alunos, tudo disfarçado numa falsa medida de integração. Os praxistas são, em geral, uns sadicozinhos que se aproveitam circunstancialmente de uma suposta "autoridade" etária ou similar para humilharem os outros. Há alunos que gostam de ser praxados? Claro que sim, como há quem deseje masoquistamente ser açoitado ou humilhado, o que, as mais das vezes, justificaria uma oportuna consulta psiquiátrica.

Um dia, quando era presidente do Conselho Geral da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, suscitei nesse âmbito a questão das praxes. Apenas um professor levantou a sua voz para apoiar o meu repúdio sobre aquela prática. Vou ser muito claro: as praxes persistem, não porque sejam inevitáveis (hoje, só existem em Portugal e Espanha, estando proibidas no mundo civilizado, de que assim nos auto-excluímos), mas porque há uma muito generalizada cobardia por parte das autoridades universitárias, extensiva a muitos professores, que não querem passar pelo incómodo de "comprar uma guerra" com os estudantes. Bastaria ter o bom senso de incluir nos regulamentos universitários a proibição absoluta da praxe, assumida como gratuita violência, disruptora e punível da disciplina académica, afastando liminarmente das universidades os estudantes comprovadamente envolvidos na sua organização (começando por interditar a sua prática dentro das instalações) e, em poucos anos, podem crer, as praxes desapareceriam. É que os energúmenos que se dedicam a esses vícios de autoritarismo cedo acabariam por verificar que seus títulos de "dux veteranorum", e outras designações ridículas de corruptelas latinas, lhes serviriam de muito pouco quando tentassem arranjar trabalho sem qualquer diploma.

Manuel Heitor, ministro da Ciência e do Ensino Superior, pessoa que praticamente não conheço, é alguém que honra o exercício da política neste país.

terça-feira, setembro 20, 2016

A torneira


Aquele pequeno apartamento no edifício da nossa embaixada em Angola, na rua Karl Marx (antes fora Vasco da Gama, agora é avenida de Portugal), nunca tinha sido ocupado por ninguém, desde que, depois da independência, fora adquirido à pressa, para instalar os escritórios e alojar alguns funcionários e as suas famílias. 

Contra a minha vontade, depois de esgotadas outras soluções e de quatro incómodos meses de hotel, fui obrigado a ir viver para ali. Poupo os pormenores sobre o épico que foi montar uma casa nesse atribulado período da vida angolana. Imensas coisas por ali não funcionavam, outras resistiam a fazê-lo. 

A mais misteriosa peça da casa era, contudo, uma luzidia torneira da cozinha, de onde, por muitos esforços que se fizessem, não se conseguia extrair uma única gota de água. Os especialistas rareavam em Luanda, mas lá se conseguiu desencantar um canalizador que, depois de aturada reflexão, decretou que era preciso "arrebentar" com a parede, para tentar perceber o enigma. Eu olhava já com carinho os banais azulejos que revestiam a cozinha, cuja possibilidade de substituição não era evidente, num tempo extremo de penúria de materiais. Mas acabei por dar luz verde à operação.

Foi então que o canalizador, ao tentar retirar a torneira para desobstrução do cano, se deu conta de uma trágica realidade: a torneira estava cimentada - isso mesmo, cimentada! - à parede. E, surpresa das surpresas, por detrás dela ... não havia qualquer cano! Assim se percebia melhor por que razão não havia por ali qualquer vestígio de água. O desonesto "pato bravo" lusitano que concluíra as obras, antes de se pisgar para o "puto", atamancara os trabalhos e quem viesse atrás que fechasse a porta... 

segunda-feira, setembro 19, 2016

Os "Guedais"


Era assim que, carinhosamente, em família, nos quatro anos que vivi em Luanda, nos anos 80 donséculo passado, tratávamos os três primos lisboetas que, creio que de três em três meses, aí se revezavam, para assegurar a gestão local da Guedal, uma empresa de representação de comércio automóvel. Ele eram o Sérgio Guedes de Sousa, o José António Arantes Pedroso e o Vasco Correa Mendes. Os dois primeiros já desapareceram. O seu pouso angolano era um amplo apartamento, com um grande terraço, na rua da Missão, muito próximo dos dois locais onde vivi na capital angolana: o Hotel Trópico e um apartamento que vim a ocupar no "compound" da embaixada.

Só quem conheceu a dureza da vida em Luanda, nesse tempo de conflito militar e desoladora penúria de comércio e serviços, poderá avaliar o que foi a "bênção" de poder dispor da imensa generosidade desses três amigos, que, com frequência, nos chamavam para sua casa, para divertidas jantaradas e, nos fins de semana, organizavam caravanas a Cabo Ledo. 

Cada um desses três primos desenhava, curiosamente, um estilo diferente de vida social, durante as suas estadas. Se havia gente sempre comum (e nós, afortunadamente, pertencíamos a esse "núcleo duro", com várias outras pessoas, de que a mais animada era sempre a Ana Poppe), muitos outros convidados variavam nesses ciclos, o que coloria e diversificava os vários eventos. Comum era também a presença risonha do Manuel Guterres, um minhoto de Seixas, funcionário da Guedal, um operacional indispensável dessas ocasiões. 

Naquela casa havia um pouco de tudo, desde a zona da sala, cheia de sofás, onde passavam filmes, clássicos ou novidades, que cada um ia trazendo, fruto de encomendas ou visitas à Europa, até ao terraço sobre a baía, com mesas recheadas de vitualhas, que surgiam sabe-se lá de onde, que nos alimentavam conversas intermináveis ou relatos de episódios desse estranho mundo angolano de então. Ah! e música, com bailes improvisados que duravam até à meia-noite (a "Cinderela time" do recolher obrigatório) ou, passada esta, nos "forçava" a ficar por ali, a charlar e bebericar, pelo menos até às cinco da manhã.

Nesta minha visita a Luanda, passei em frente àquele prédio e senti uma imensa gratidão pelo gesto daqueles que, por simples amizade e simpatia, muito nos ajudaram a atravessar, com ímpar generosidade, esses tempos que só a passagem dos anos suavizou, decantando para a nossa memória afetiva apenas essas coisas boas que a sorte quis que nos acontecessem.

domingo, setembro 18, 2016

Ajuda


O meu colega e amigo Luís Castro Mendes, ministro da Cultura, que transitou entre dois palácios que são a verdadeira cara do país que temos - das Necessidades para a Ajuda -, lançou mãos à obra do "fechamento" do Palácio desta última. Que todos os anjos e querubins o protejam na consecução da empresa. Se a "geringonça" tiver conseguido tornar irreversível o completamento daquela "santa ingrácia", eu voluntario-me para ir ao primeiro comício da história dos Verdes...

O "Expresso" publicou ontem a "solução" arquitetónica encontrada. Devo dizer, com franqueza, que me é quase indiferente, desde que se acabe, de uma vez por todas, com a vergonha daquilo que lá está. A imagem é, creio, elucidativa.

É claro que, agora, vão aparecer os "espertos", os que queriam um "fechamento" mais clássico, os que iam para o vidro e outros materiais, os que acham que a maquete parece a sede da Caixa Geral de Depósitos, etc. Vai ser um fartote de debate. Até eu, se calhar, vou meter a minha colherada, achando que o que ficava bem era atirar abaixo aqueles proto-arcos e proto-janelas, abrindo por completo o pátio a poente - solução barata e rápida, mas que imagino que deve arrepiar os puristas, os quais, no entanto, viveram toda a sua vida serenos com aquela vergonha!

Não ligues, Luís! Faz o que quiseres, mas acaba de vez com aquilo que lá está!


Darocha

Um dia, quando era embaixador em França, fui a Arras para uma exposição que envolvia artistas portugueses. Um deles, pintor, um pouco mais velho do que eu, perguntou-me: "O nome de Alberto Couto diz-lhe alguma coisa?" Claro que dizia! Era um grande amigo do meu pai, como ele oriundo de Viana do Castelo, cuja morte prematura muito o entristecera. "Pois eu sou filho do Alberto Couto!", disse-me o pintor. 

Chamava-se José Luís Páris Couto da Rocha, mas, ao longo da sua carreira como pintor, utilizou vários nomes, do qual o mais conhecido será Luiz Darocha, que muito o identificava em França, onde já vivia há mais de meio século.

Semanas mais tarde, convidei-o, com a mulher, para almoçar na embaixada. Foi a última vez que nos vimos. Curiosamente, trocámos emails, há precisamente um ano, com fotografias dos nossos pais. Num deles, ele escrevia isto, já com a língua francesa a marcar o seu português: "Não tenho ideia de quando volto a Portugal. Nesse caso talvez houvesse um momento para trocarmos boas palavras. Se vier a Paris também poderíamos nos ver." Nem ele voltou, nem eu tive ocasião de o voltar a ver, das vezes que, entretanto, estive em Paris. Morreu há uma semana.

Aqui deixo a sua fotografia e a reprodução de um quadro seu que está em Serralves.



Guias turísticos

Se há coisa em que não me importo de gastar algum dinheiro é na compra de um guia sobre uma cidade que visite pela primeira vez. Tenho sempre o sentimento de que por ali está um repositório dos locais de interesse a ver, uma ajuda para que não percamos tempo e locais importantes. Temo sempre que a "poupança" em não adquirir o guia me faça correr o risco de perder algo essencial. E, muitas vezes, a probabilidade de voltar a certos países é muito reduzida, como é o caso da Ucrânia, onde me encontro agora.

Não há nada de mais "ideológico" de que um guia turístico. A impressão que ele nos transmite sobre os países que visitamos é essencial para formatar a nossa opinião sobre ele. Para o bem e para o mal.

Quando vivi em Londres, decidi adquirir todos os vários guias publicados sobre Portugal e verifiquei que, por erro, omissão ou preconceito deliberado, algumas narrativas sobre o nosso país eram incorretas, marcadas por uma visão paternalista e, frequentemente, com dados factuais errados. Foi a correção destes últimos que utilizei como pretexto para escrever a cada uma das editoras, propondo-lhes uma colaboração da embaixada para revisão das suas próximas edições. Creio que todas aceitaram e, naturalmente, aproveitei para lhes propor, além dos dados de facto, textos alternativos sobre diversos capítulos. Algumas foram sensíveis à "revisão" dessa parte mais substantiva, outras perceberam a nossa intenção e reservaram a sua liberdade de opinião. Em particular, era a História e a vida social, tal como a arte e literatura, que mais nos interessava "corrigir". Alguma coisa se avançou.

Os guias sobre um país são, muitas vezes, escritos por quem dele tem uma visão distante, uma informação acumulada de várias fontes. Nas sucessivas edições não há, em geral, o cuidado de proceder a atualizaçōes e, na maioria dos casos, fica a sensação de que o responsável pelo texto se baseia em "informadores" locais, que impõem as suas escolhas. (Há um bom teste para a qualidade de um guia: ler nele algo que conheçamos bem). E quanto menos conhecido é o país, mais as versões deturpadas sobre a sua realidade podem perdurar. É mesmo famoso o caso de um guia escrito sobre um pequeno país latino-americano que terá sido elaborado por alguém que nunca o visitou. Com a internet, tudo hoje é possível.

Porém, o guia que comprei aqui em Kiev não era desses. É uma belíssima edição nacional, bastante barata, muito bem escrita, num excelente inglês. 

Ao comprá-lo, logo após a chegada, lembrei-me de um guia sobre Ialta que adquiri quando fui à Crimeia em 1980. Chamava-se "Greater Ialta", era razoavelmente ilustrado para a época e tinha a curiosidade de nos chamar a atenção para zonas da periferia da cidade... onde era proibido deslocarmo-nos! Os textos eram num estilo gongórico-soviético, que descreviam o mundo local de então como "o sol da terra", para usar uma expressão consagrada.

Voltando ao guia de Kiev que agora adquiri, é muito interessante analisar nele o modo como é feita referência ao período comunista, as ironias sobre as motivaçōes ideológicas de certos estilos arquitetónicos, sobre valores culturais que entretanto foram abandonados e rejeitados e, muito em especial nos textos históricos, o esforçado sublinhar, em detrimento até de algum rigor, das pulsões independentistas ucranianas. 

Os guias turísticos, repito, podem ser muito ideológicos, mesmo que, à partida, aparentem não o serem.

sábado, setembro 17, 2016

Coscuvilhices


Alguém a quem determinadas informações foram prestadas, numa conversa discreta, terá o direito, mesmo que muitos anos depois, de vir a público revelá-las, sabendo claramente que, com isso, quebrou a confiança que foi posta em si? E, em especial, se a revelação dessas conversas vier a afetar a imagem de pessoas, vivas ou já desaparecidas, será eticamente aceitável publicar - nas redes sociais, na imprensa ou em livro - tais dados? A resposta parece evidente para toda a gente, mas, aparentemente, para alguns, não o é.

Todos nós, uns mais do que outros, somos depositários de alguns segredos que nos confiaram, ou de episódios delicados que testemunhámos, em contexto profissional, com a segurança ética de que nunca os tornaríamos públicos, em moldes que possam prejudicar alguém. Na vida política e diplomática, como é natural, muitas coisas se sabem, desde questões correntes a algumas histórias de alcova. A regra a seguir é muito simples: para além do "bom gosto" nos temas a abordar, daquilo a que assistimos ou nos foi dito em confidência, só pode ser divulgado o que não afete o interesse do Estado ou, ainda que minimamente, a imagem das pessoas envolvidas ou mencionadas. Nem mais, nem menos.

Não conheço ainda um livro que se anuncia trazer umas dessas historietas de "diz-que-diz-se". A confirmar-se que insere algumas revelações que já foram indiciadas, esse "tablóide encadernado" deverá ser exposto ao opróbrio público. Se não foi possível evitá-lo, ao menos que sirva de mau exemplo. Mas, quando não há vergonha, não há remédio.

sexta-feira, setembro 16, 2016

Dominique Strauss-Kahn

Tenho à minha frente, num painel de debate sobre o futuro do euro, Dominique Strauss-Kahn. É muito interessante observar o seu esforçado regresso à normalidade pública, agora como consultor económico internacional. Depois do imenso escândalo que o envolveu, que arruinou as suas ambições presidenciais em França e mudou dramaticamente a sua vida, deve ter clara consciência de que é olhado de um modo especial. E isso sente-se.

Há duas notas que gostaria de deixar sobre Strauss-Kahn.

A primeira sobre o seu trabalho à frente do FMI. Relembro o que li num editorial do "The Economist", no auge do escândalo: "Whatever the man did, do not forsake his ideas: they are more important". Quero com isto relevar o espírito novo que Dominique Strauss-Kahn soube transmitir ao FMI, o modo como conseguiu modular a rigidez e a cegueira dos números, a insensibilidade social que marcou muitos dos "ajustamentos estruturais" liderados e impostos, no passado, por esta instituição de Bretton Woods. Os "developing countries" devem ter criado muitas reticências sobre a personalidade de Strauss-Kahn, mas é uma evidência que também não esqueceram o modo como ele soube adaptar positivamente a filosofia de atuação da organização. Além disso, vale a pena também ter presente a forma como Strauss-Kahn soube impor o FMI no quadro do G20, como conseguiu reforçar substancialmente os meios financeiros ao seu dispor, contribuindo também para um mais justo posicionamento relativo dos países emergentes no processo decisório dentro do Fundo. O mandato de Strauss-Kahn dentro do FMI foi um imenso sucesso, exceto o seu fim.

Apenas uma vez, e por breves minutos, me recordo de ter falado com Strauss-Kahn, nos momentos que antecederam um almoço oferecido por Lionel Jospin a António Guterres, em Matignon, creio que em 1999. Nem faço ideia do que falámos. Durante esse almoço, teve lugar uma cena algo caricata. 

A certo momento do repasto (aliás, recordo, com excelentes vinhos), achei que deveria transmitir ao primeiro-ministro português uma informação, que me parecia poder ser-lhe útil na sequência da conversa. Eu estava à esquerda de Jospin, que tinha em frente António Guterres, o qual, por sua vez,  dava a direita a Dominique Strauss-Kahn. Gatafunhei umas notas nas costas de um menu, em que devo ter escrito qualquer coisa do estilo: "Seria importante lembrar a Jospin que..." ou "A França não pode esquecer que..." ou outros comentários do género. Era uma nota para ser lida apenas por António Guterres, porque, lembro-me, tinha elementos algo sensíveis na forma como estavam apresentados. Dobrei o menu e, a um empregado de mesa que passava, pedi que o entregasse ao primeiro-ministro português, do outro lado da mesa. O homem terá entendido menos bem o que eu disse, deu a volta à mesa e passou a minha nota a... Dominique Strauss-Kahn, que estava precisamente à minha frente. 

A conversa entre Jospin e Guterres ia animada e eu não tinha a menor possibilidade de a interromper, para dizer ao ministro da Economia e Finanças francês que a nota não lhe era dirigida, mas sim ao seu parceiro do lado. Embaraçado, gesticulei discretamente para chamar a atenção de Strauss-Kahn, o qual, no entanto, se dedicava a ler, com toda a atenção, aquilo que eu tinha escrito, em letras maiúsculas, desejavelmente "for the eyes only" do meu primeiro-ministro. O governante francês deve ter percebido o essencial do texto. Quando acabou a leitura, Strauss-Kahn olhou para mim, esboçou um sorriso e passou o papel a António Guterres. Enfim, imprudências que se cometem... Não me sinto tentado a lembrar-lhe isso hoje.

Opções militares


Não sou um especialista em assuntos militares. Tendo feito, como cidadão, o serviço militar obrigatório, mantive, a partir de então, um olhar cívico sobre a evolução da instituição, refletindo sobre o que ela representa para o país.

Considerei um erro a extinção do serviço militar obrigatório, que li como a sujeição a uma agenda - oportunista, comodista e populista - de "jotas" partidárias. Achei pena que se tivesse quebrado esse vínculo do cidadão com o seu país. Era uma "chatice", obrigava a uma disciplina de "deitar-cedo-e-cedo-erguer", conflitual com os "shots" noturnos e as horas em discotecas? Talvez, mas permitia que os jovens percebessem que não nascem "na nuvem" e que o seu sacrifício poderia vir a ser necessário para a preservação da entidade nacional em que se inseriam, tivessem ou não consciência dela.

Hoje, contudo, já não penso assim. Com a especializacão para que as Forças Armadas foram evoluindo, a reinstituição do serviço militar obrigatório representaria um esforço organizacional desproporcionado face às suas potenciais vantagens. A preservação de uma ligação dos jovens à dimensão cívica nacional deveria hoje passar por outros métodos - embora detete uma quase total falta de debate sobre isso nos meios políticos. 

Nos tempos atuais, as Forças Armadas de um país com a nossa dimensão e recursos, para além deverem sustentar valências de apoio a emergências coletivas da sociedade civil, que ajudarão à sua valorização aos olhos dos cidadãos, necessitam, cada vez mais, de concentrar a sua atividade operacional em corpos especializados, ao nível dos seus contrapartes estrangeiros. Essa é a única forma de estarem à altura dos compromissos mínimos, nos quadros de alianças de que fazemos parte e, igualmente, das solicitações para intervir em operações de manutenção de paz, determinadas por mandatos legitimados pela comunidade internacional. Num passado não muito longínquo, o nosso país ganhou imenso prestígio através do envolvimento dos seus militares nesse tipo de ações. Tudo deveria ser feito para que esse perfil fosse retomado e se reforçasse, em favor da nossa projeção externa.

Aqui se insere o tema, tornado polémico nos últimos dias, sobre as condições de treino dos Comandos, que terão conduzido à morte de soldados. Independentemente de ser absolutamente essencial que se apurem responsabilidades sobre o sucedido – e rapidamente –, convém não « deitar fora a criança com a água do banho ». Os erros corrigem-se, mas devem ser evitadas reações « a quente ».

Mas é evidente que a qualidade das nossas Forças Armadas também se afere pela competência dos seus responsáveis, nomeadamente no tocante à formação de quadros. Se essa competência não resultar evidente aos olhos dos cidadãos, é a legitimidade da própria instituição militar que fica afetada. 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...