sábado, maio 23, 2015

Joaquim Durão


Há menos de dois anos, publiquei aqui este texto:

"Há pessoas que perdemos de vista, às vezes por anos, e que, por um acaso, voltamos a reencontrar. Ontem, voltei a cruzar uma figura que as novas gerações provavelmente desconhecem mas que, décadas atrás, foi um nome destacado do desporto nacional, imensamente popularizado pela televisão. Refiro-me ao xadrezista Joaquim Durão.

Conhecemo-nos em Angola, quando ele foi por lá representar o xadrez português. Encontrámo-nos depois, em outras ocasiões. Curiosamente, seria de novo Angola - ou melhor, uma conversa sobre um artigo que ontem publiquei sobre as relações luso-angolanas - a "juntar-nos".

Joaquim Durão tem hoje 82 anos e uma história notável contada no curto filme (6 minutos) que pode ser visto aqui."

Revelo agora que nos "juntámos" nesse dia 17 de outubro de 2013 numa longa conversa telefónica, por sua iniciativa, a felicitar-me por um artigo que eu tinha escrito num jornal sobre as relações luso-angolanas. Disse-me então coisas muito simpáticas, porque, sem eu saber, seguia a minha vida com alguma atenção. Lembrou-me ter estado no lançamento de um livro meu, uma surpresa muito agradável que eu também não tinha esquecido. Tomei a iniciativa de lhe enviar outro que ele não possuía. Nunca mais falámos.

Joaquim Durão fazia parte das minhas antigas memórias televisivas. Aprendi a "mexer as pedras" com ele no écran. Foi ele quem, com o seu estilo agradável e didático, me fez despertar o gosto pelo xadrez. Possuo uma foto do meu pai a jogar uma "simultânea" com Joaquim Durão, nos claustros do Governo Civil de Vila Real, em que havia conseguido um empate com o mestre, feito de que muito se orgulhava. Em 1984, Joaquim Durão foi a Angola, onde o seu prestígio como xadrezista era imenso. Em alguns dias consecutivos, em jantares em minha casa, nesses tempos poucos fáceis da vida de Luanda, criámos uma relação de forte simpatia, que perduraria para sempre.

Soube que Joaquim Durão morreu, há três dias. Se não fosse uma banalidade, eu diria que perdeu o seu último jogo, numa vida felizmente cheia de grandes vitórias. Mas não sei dizer melhor. Deixo aqui o meu muito sincero pesar à sua família.

Ainda sobre o meu voto



A propósito do artigo "A cara", que publiquei no "Jornal de Notícias" e aqui reproduzi, em que defini o perfil daquele em quem votarei para primeiro-ministro, Helena Sacadura Cabral, numa simpática nota no seu blogue, inquire de mim: "só me resta perguntar se ele conseguiu, sempre, encontrar ao longo dos anos em que terá votado, os políticos que cumpriram com este seu retrato. É que, basicamente, os votantes desejam sempre que o modelo seja este. Todavia o aumento inegável da abstenção parece demonstrar o contrário..."

É uma resposta difícil, se a queremos dada com sinceridade. E eu vou ser sincero sobre os meus votos, de toda a espécie. Que exerci várias vezes em Lisboa, outras no "círculo da Europa", mais do que uma vez em Vila Real (onde desde há uns anos estou inscrito!) e também no "círculo do resto do Mundo".

Desde que comecei a votar - a primeira vez foi em 1969 - não votei sempre da mesma maneira, longe disso!, mas votei invariavelmente no mesmo sentido, "if you know what I mean"... Cheguei a votar em partidos e pessoas que sabia, à partida, que não tinham a menor possibilidade de serem eleitos, quase apenas para aferir estatisticamente quantos "maduros" seguiam a mesma e teimosa opção. Votei, por vezes, mais contra certas pessoas do que a favor das que beneficiaram do meu voto, porque detestava a ideia de ver eleitas as primeiras (numas vezes tive sucesso, noutras não). Votei em favor de partidos diferentes, em eleições autárquicas e legislativas próximas, embora, como disse, sempre "no mesmo sentido". Votei em candidatos e partidos que foram derrotados e nunca me arrependi de nenhum desses votos, sem exceção. Abstive-me algumas (poucas) vezes, nunca votei branco ou nulo. Nunca votei (nem votarei) num qualquer referendo: levo a família ao local de voto e fico à porta. Acho o referendo um instituto caricatural e populista.

Volto agora à pergunta da Helena. Se já houve políticos que cumpriram o que deles esperava com o meu voto? Claro que sim. Dois presidentes e dois primeiros-ministros. Os quatro cumpriram, no essencial, aquilo a que se tinham comprometido a fazer e que eu esperava que fizessem. E, nas duas eleições que aí vêm, vou fazer o mesmo, exatamente com a mesma confiança. Porque vou votar em pessoas de bem - só voto em pessoas que, à partida, tenho por pessoas de bem -, o que me sossega duplamente: faço o que puder para que sejam eleitos e fico também de bem com a minha consciência. 

sexta-feira, maio 22, 2015

Paulo Castilho


Sou amigo e colega de profissão de Paulo Castilho. Mas sou, igualmente e não por essa razão, um leitor atento e fiel de tudo quanto publicou até agora. Gosto da sua escrita límpida, sem artificialismos, num registo que ressoa a alguma literatura anglo-saxónica. Paulo Castilho tem uma maneira muito própria de, nos seus livros, olhar as mulheres e os mundos que elas criam à sua volta. Por tudo isso, porque já tinha passado demasiado tempo sem que um seu novo romance tivesse surgido, estou muito curioso de ler "O Sonho Português", que imagino vá ser um sucesso na Feira do Livro que aí vem.

A cara

 
Os socialistas apresentaram as ideias centrais do seu programa eleitoral. Há quem acuse o texto de ter uma preocupação tão obsessiva em ser realista que, porventura, alguns o verão como pouco mobilizador.
 
Nos seus detratores, para além dos sons normais da polémica, nota-se alguma dificuldade em colar ao texto um rótulo de vendedor de uma irresponsável ilusão.
 
Um dos fatores descredibilizantes da nossa vida política prende-se com o facto dos programas eleitorais terem quase sempre pouco a ver com a prática dos partidos, quando chegados ao poder. Chamemos as coisas pelos nomes que têm. Os portugueses - não só os portugueses - parece aceitarem, sem grande escândalo, que os políticos têm uma espécie de licença para mentir. E, em lugar de os punirem fortemente nas eleições seguintes, muitos acabam por aceitar isso como um "fact of life", como se estivesse na sua inescapável natureza serem, em geral, uns relapsos e incuráveis pantomimeiros. É como se, ao votar neles, os insultassem: "eu sei que este tipo é um mentiroso, mas tudo bem!". O grau de "respeito" que daqui decorre para a imagem da classe política parece-me óbvio.
 
Romper com este ciclo de ilusão desencantada é um dever de quem quer estar na política como uma pessoa de bem. E ainda há muitas pessoas de bem na política, se bem que haja outras que - tira-se-lhes "pela pinta", basta olhar-lhes para a cara! - se percebe logo "ao que andam". Estar na política como pessoa de bem obriga a cumprir o que se prometeu, a não se enredar na desculpa estafada de que a realidade trouxe surpresas e de que, afinal, as coisas não eram aquilo que pareciam. Um político que quer ser uma pessoa de bem, se acaso não pode pontualmente cumprir algo a que se comprometeu, pede desculpa, explica isso ao país, não tenta "jongleries" verbais, meias-verdades que querem fazer passar os outros por parvos. A humildade é um sinal de caráter.
 
Nas eleições legislativas que aí vêm, para além dos partidos e dos seus programas, estaremos a escolher a pessoa que vai dirigir o futuro Governo. Dir-me-ão que não é bem assim, que são os deputados que iremos selecionar. A mim, contudo, importa-me essencialmente a cara daquele a quem eu posso pedir contas pelo voto que lhe dei. E, neste jogo de caras, de credibilidade, eu só estarei ao lado de uma pessoa de bem, de quem tenha um passado político e cívico cristalino e intocável, de alguém a quem nunca tenha visto fazer o contrário daquilo que prometeu.
 
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, maio 21, 2015

Felicidade ?

Encontrei-o esta tarde no Chiado. Já o não via há bastante tempo. Eu vinha de um almoço, com pressa, porque tinha um compromisso para o qual já estava atrasado. Ele passeava-se, com calma, já um pouco bronzeado, gozando a sua reforma. Lancei-lhe:
 
- Gosto de te ver com esse ar feliz!
 
- É verdade, tenho saúde, não tenho problemas pessoais e o dinheiro vai dando. A felicidade, tenho vindo a aprender, é uma coisa simples.
 
- Simples, uma ova, meu caro!
 
- Estás enganado! Basta que nos deitemos a desejar que o dia seguinte seja pelo menos tão bom como o que acaba.
 
Pensando bem, ele é capaz de ter razão. Esta noite vou lembrar-me disso.

quarta-feira, maio 20, 2015

Ele há cada coincidência!



20 de maio de 1965. Um grupo de arruaceiros da ditadura, enquadrados por elementos da Legião Portuguesa, assaltava as instalações da Sociedade Portuguesa de Escritores, que o governo encerraria formalmente no dia subsequente. O motivo foi a atribuição à obra "Luuanda", de Luandino Vieira, um nacionalista angolano então preso no campo de concentração do Tarrafal, do prémio anual de literatura da Sociedade. António Valdemar conta a história hoje no Público. Membros do júri do prémio foram então detidos. Entre os elementos da direção da SPE que não se solidarizaram com os seus colegas figurava o nome de Luís Forjaz Trigueiros (1915-2000), jornalista, escritor e crítico. Por esse seu gesto, pagou para sempre um preço no mundo intelectual português.
 
20 de maio de 2015. Passou exatamente meio século, dia por dia, Há minutos, num alfarrabista de Campo de Ourique, por cinco euros, adquiri o "Diário 1962-1972" de João Palma Ferreira. Era da biblioteca de Trigueiros, com um cartão com a dedicatória: "Ao Luis Forjaz Trigueiros, recordando tantas amabilidades, com a gratidão do seu sempre admirador e amigo, João Palma-Ferreira, Salamanca, Abril, 72" . (Para tornar mais críptica a compra, vem dentro um bilhete para uma "poltrona" no Jardim Cinema, sessão da noite de 1 de março de 1969. 10 escudos, para que conste). 

"Observador"


Faz agora um ano que um grupo de investidores criou o "Observador". Trata-se do primeiro jornal informático em Portugal de acesso aberto, que reproduz, sem o copiar, o espanhol "El Confidencial". O projeto, dirigido por David Dinis e José Manuel Fernandes, tem real qualidade e, na minha opinião, tem vindo a melhorar como produto jornalístico.

A coluna de opinião do "Observador" foi, desde o primeiro momento, a sua marca de identidade. Um sintomático artigo ontem nela publicado por Maria João Avillez revela isso de uma forma quase incauta: trata-se de um projeto destinado a dar direito de cidade às várias direitas que aí andam pela praça pública, parte delas sempre um pouco "mal à l'aise" com o estigma da velha ditadura a que alguma esquerda teima em colá-las. Nele se acolhem alguns notórios "arrependidos" (a começar por José Manuel Fernandes e Manuel Vilaverde Cabral) até ao conservadorismo bloguista (os blogues estão hoje a ficar fora de moda), onde as escolas ideológicas da Universidade Católica, do Compromisso Portugal e da velha revista Atlântico estão também fortemente presentes. Na economia como nas coisas da vida, o "Observador" hesita entre correntes liberais (da escola de Chicago a uma linha mais tocada pela democracia cristã) até perspetivas da direita mais radical, tendo dele praticamente desaparecido qualquer matriz social-democrata.

Para mim, leitor atento e regular, não tenho a menor dúvida, identificando bem os financiadores do projeto: a criação do "Observador" teve como objetivo, a montante do que previam ser o risco do fim deste ciclo de tomada do poder pela direita (governo e Presidência), apoiado na oportuna ideologia da "troika", tentar captar politicamente um "novo" Portugal, da casa dos 30 e 40 anos, que aí anda com maior frequência das redes sociais e dos meios informáticos. No fundo: tentar evitar que a esquerda possa vir a ganhar as ocasiões eleitorais de 2015 e 2016. Nada que seja ilegítimo em democracia, diga-se, desde já.

Devo dizer que considero saudável que a direita, em democracia, explicite de cara aberta (ia dizer "de cara ao sol", mas os meus amigos de direita chamar-me-iam provocador) as suas ambições e os seus reais desígnios. Isso é preferível a uma ínvia cultura ideológica que só se qualifica por contraponto, uma espécie de envergonhada "não esquerda", temerosa de assumir o rótulo. Porque acho isso? Porque, nas batalhas, facilita o combate ver os adversários bem de frente.

Sondagens


Há algo de estranho na maioria das sondagens que aí andam. No passado, a posição relativa dos vários partidos era a medida seguida. Hoje, o PS já não é comparado com o PSD, mas é medido face à soma do PSD com o CDS. Dir-se-á que isso é natural, dado que a coligação foi renovada. Só que esse método de análise esconde, por exemplo, que o principal partido da oposição está com uma apreciação popular muito acima do partido que indicou o primeiro-ministro que agora está em funções. Repito: não é inocente que as sondagens não comparem PS com PSD - isso faz-se deliberadamente para desvalorizar a circunstância do PS estar, em termos de sondagens, a uma distância do PSD que é quase histórica, nas últimas décadas. Os céticos desta leitura regressarão à luta, retorquindo: mas é ou não o somatório dos dois partidos da coligação que realmente conta para formar governo? Eu respondo: sim. Só que há um pequeno pormenor de que muito poucos falam: é que a coligação só pode governar se tiver maioria absoluta - e não há nenhuma sondagem, mesmo as mais otimistas, que aproximem, ainda que minimamente, a coligação do limiar dessa maioria absoluta, isto é, 44/45% dos votos. E aqui as coisas são muito claras: se a coligação não tiver maioria absoluta, não pode nunca formar governo, porque é óbvio que nenhum partido da atual oposição irá viabilizá-lo. Já o mesmo problema não deverá ter o PS se, por si só, não obtiver maioria absoluta, dado que, potencialmente, para ver um seu governo aprovado, lhe basta contar com a abstenção de partidos à sua esquerda. É claro que os mais céticos ainda poderão argumentar: o PCP e o Bloco não se aliaram à direita em 2011 para derrubar o governo PS de então? É verdade. Mas alguém acha que o fariam agora, para renovar esta maioria, imediatamente após terem feito uma campanha contra ela? Dei comigo a pensar nisto. Mas posso estar errado, claro.  

terça-feira, maio 19, 2015

O Acordo poderia ter duas linhas...

Um amigo que muito prezo, escreveu um texto delicioso sobre o Acordo Ortográfico, sob o título em epígrafe, que lhe pedi que me deixasse publicar por aqui. Ele aí vai:
 
"Para que fique bem clara a minha posição sobre o Acordo Ortográfico: percebo que este dispositivo interesse aos Ministérios dos Negócios Estrangeiros para dar uma imagem de cooperação entre os países de língua portuguesa. Se tivesse sido eu a escrevê-lo, teria a seguinte formulação:
 
Artigo único:
 
Reconheçam-se como válidas, em todos os países da CPLP, as normas ortográficas em vigor nos restantes países.
 
Esta formulação permitiria que o uso de qualquer variante ortográfica não pudesse ser penalizado ou considerado ilegítimo em qualquer país de língua oficial portuguesa ou em qualquer contexto de uso da língua.
 
Esta não foi a opção de quem negociou o Acordo Ortográfico, tendo sido preferida uma versão que tenta unificar a ortografia.
 
Quem me conhece sabe que não consegue arrancar de mim nenhuma posição inflamada a favor ou contra o Acordo Ortográfico. Sei que a ortografia é uma mera convenção, que nenhuma versão da nossa ortografia foi coerente entre transparência ou etimologia e que esta e outras versões de instrumentos de normalização ortográfica têm problemas técnicos já assinalados por vários. Não me parece que a versão 1990 seja pior ou melhor do que a versão 1945 – basta pensar no uso do hífen. É apenas uma convenção – o facto de “hospital” se escrever com em português e sem em italiano não tem qualquer consequência.
 
Muito do debate em torno do Acordo Ortográfico rasa o absurdo e descreve as consequências da sua aplicação como algo próximo do Armagedão. Há dados que me fazem manter-me longe deste debate.
 
Sempre que sai uma notícia num jornal sobre o Acordo Ortográfico, surgem centenas de comentários de leitores que, horrorizados, listam os horrores do Acordo Ortográfico em mensagens pejadas de erros ortográficos.
 
Ouvia, há tempos, alguém que tinha escrito “nada a opôr [sic]” vociferando que não retirava o acento circunflexo, porque se recusa a escrever com o Acordo Ortográfico, que sempre escreveu assim e não vai mudar!
 
O mesmo, tal e qual, ouvi de alguém que, num programa de rádio, dizia: “não é por causa dos brasileiros que vou tirar a cedilha de vocês”!
 
A obsessão com a ortografia e tudo o que se diz sobre o seu impacto no mundo é a consequência de uma escolarização em que as produções escritas são, tradicionalmente, corrigidas em função de desempenhos temáticos e ortográficos. Coesão e coerência, conformidade com sequências textuais ou explicitação de regras de pontuação são dimensões da escrita a que a escola nunca prestou a devida atenção, que justificam muitos problemas de escrita (e leitura) e que explicam que se dê tanta importância à ortografia.
 
Tratando-se apenas de uma convenção, a ortografia não gera penalizações. Se eu escrever a minha lista de compras para o supermercado com inúmeros erros, ninguém saberá e, mesmo que saiba, nada acontece. Só no sistema educativo é que há penalização do erro e é interessante verificar que a introdução do Acordo Ortográfico no sistema educativo se deu sem problemas.
 
Se é verdade que a ortografia é uma mera convenção e que quem redigiu o Acordo visou uma unificação da ortografia, também é verdade que qualquer pessoa minimamente informada sobre as variantes do português deveria saber que as diferenças fundamentais entre o português usado em Portugal, no Brasil, Angola, Moçambique não estão na ortografia. Tente-se escrever um texto em conjunto com um colega brasileiro e veja-se como se tropeça em cada linha. Há um evidente desconhecimento da língua portuguesa na génese de algumas decisões políticas, o que é confrangedor.
 
Passados vinte anos sobre a criação deste Acordo, não são ainda evidentes os passos claros que a CPLP está a dar para uma eficiente política de língua. Para dar apenas um exemplo, ainda não se vislumbra uma política comum sobre o ensino de português no estrangeiro.
 
Dito tudo isto, alguns amigos que conhecem esta minha posição (ou ausência de posição), perguntam-me se uso ou não o Acordo Ortográfico. Comecei a usar no dia em que li um arrazoado de argumentos nacionalistas e de comentários racistas sobre os restantes países da CPLP a propósito do Acordo Ortográfico. Pensei que não queria ser identificado com aquele tipo de argumentação e nesse mesmo dia passei a utilizar, sem grande dificuldade, a nova convenção ortográfica (nunca senti aquela insegurança de que alguns falam, dizendo “Agora não sei como se escreve”).
 
Passados alguns meses, participei numa reunião em que, em defesa do Acordo Ortográfico, ouvi um eminente académico tecer comentários absolutamente nacionalistas e a rasar o racismo... Fiquei sem saber o que fazer e, pela primeira vez, me deparei com a hesitação de não saber como escrever.
 
Cresce em mim a vontade de reagir de forma adolescente e não usar o Acordo quando escrevo àqueles que o defendem ferozmente e usar quando escrevo aos que são violentamente contra. Mas, por vezes, tenho de escrever a ambos e, nessa altura, penso: isto é apenas uma convenção, para quê gastar tempo a pensar no assunto?
 
Se se tivessem ficado pelas minhas duas linhas, ter-se-ia poupado muito tempo...
 
João Costa
 
PS: Ao reler o texto, apercebo-me de que, por vezes, o Acordo Ortográfico não tem mesmo importância nenhuma na forma como se escreve. E garanto que não foi intencional.
 

segunda-feira, maio 18, 2015

Embaixadorias


O meu amigo Ascenso Simões publica hoje no jornal "i" um artigo sobre a nossa diplomacia. Nele escreve algumas coisas com que concordo e outras de que discordo. É a vida.
 
(Tenho com Ascenso Simões cumplicidades antigas. Na cidade de onde ambos somos originários, há 18 anos, partilhámos uma aventura política numa candidatura ao município. Ele para presidente da Câmara, eu para presidente da Assembleia Municipal. Fomos ambos derrotados. No meu caso, por Passos Coelho ... pai!)
 
Uma das ideias que avança no seu artigo, porém, não apenas merece apenas a minha discordância como convoca a minha profunda rejeição. Vou transcrever o que escreveu:
 
"A perda de valor da CPLP deve assustar os próximos governos, deve implicar uma nova parceria entre Portugal e o Brasil, por assumir parte fundamental da penetração, na Europa e nas Américas, do poder lusófono. Esta realidade deveria elevar a nossa representação em Brasília. Se as diplomacias de outros países revelam a permissão de agentes fora da carreira, tendo em conta o posto e a estratégia para cada região, Portugal deveria poder assumir a nossa representação no território onde mais falantes de língua portuguesa se revelam, através da consagração do lugar a um antigo Presidente da República ou um anterior primeiro-ministro".
 
Três comentários.
 
O primeiro para sublinhar, sem mais delongas, que a nossa "representação em Brasília" não tem estado ao nível das exigências de Ascenso Simões. Tomo a devida nota, no que pessoalmente me toca.
 
O segundo para registar que um qualificado militante socialista entende que o corpo profissional de que a diplomacia portuguesa hoje dispõe não está à altura das exigências de projeção da nossa política externa, pelo que seria necessário um "reforço", quiçá vindo de hostes político-partidárias. Constato assim que, do seio do PS, emerge, uma vez mais, o tropismo para a nomeação de "embaixadores políticos".  
 
Um terceiro comentário. Ao localizar esta aparente exceção na "nossa representação no território onde mais falantes de língua portuguesa se revelam", Ascenso Simões mostra algum pragmatismo e alarga, com generosidade, o âmbito de recrutamento: de facto, qualquer político português possuiria o requisito linguístico indispensável para o exercício do cargo. Valha-nos isso!
 
Um quarto e último comentário.
 
Um antigo presidente da República? Sabe Ascenso Simões que a lei não permite que ninguém permaneça no serviço diplomático no estrangeiro depois dos 66 anos? Eanes, Soares, Sampaio e Cavaco já passaram esse limite etário, como sabe. Muda-se a lei? Vale tudo? 
 
Um antigo primeiro-ministro? Balsemão também passou a fasquia etária, Guterres acaba de lá chegar. José Sócrates, por óbvias razões, parece excluído das contas de Ascenso Simões. Restam Durão Barroso, Santana Lopes e Passos Coelho. Venha o Ascenso e escolha... Fico curioso! 
 
Dirão alguns que este post é inoportuno. Talvez seja, tal como entendo que o artigo o foi. Porém, comigo, já deviam ter aprendido: quem se mete com o MNE leva!

O Marquês, o Benfica e as televisões

A festa benfiquista no Marquês de Pombal redundou num espetáculo triste, com alguma violência e vítimas.

No entanto, estando longe de ser benfiquista, devo dizer que acho lamentável que a generalidade das televisões informativas tenham ajudado à "glorificação" da ação de alguns energúmenos que se dedicaram a estragar a alegria de outros.

Sei que o "dever de informar" impunha a cobertura dos distúrbios, mas talvez fosse igualmente ser dever das estações de televisão, numa noite tão importante para os adeptos do mais popular clube de Portugal, cuidar em dar conta da felicidade de muita gente que, por esse país fora, saudou, em ordem e com gosto, o bi-campeonato do Benfica. Passar horas a cobrir desordeiros de garrafas na mão e polícias a persegui-los pode ser um bom espetáculo televisivo, mas é um modelo de jornalismo que há esquece que há mais Benfica para além dos incidentes do Marquês.

Carnide em festa


O Benfica ganhou o "campeonato". Sejamos justos: este ano mereceu ganhar. Mesmo se, aqui ou ali, foi ajudado por um "sistema" que hoje muito influencia, aconteceu agora ao clube de Carnide (a imagem é do largo principal do estimável bairro onde se situa a agremiação) o mesmo que, muitas vezes, ocorreu com o seu rival do Norte, isto é, ganharia mesmo se não tivesse tido essas ajudas.

"Cá dentro", não gosto que o Benfica ganhe nada, confesso. (Lá fora, fui fã entusiasmado do grande Benfica dos anos 60, "puxei" por eles numa final europeia frustrada em Stuttgard e não me recordo de ter vibrado nunca com as suas derrotas internacionais). Sei que não estou a dar nenhuma surpresa a ninguém com esta minha declaração de interesses. Como os meus amigos "encarnados" também sabem, para mim, entre o Porto e o Benfica, "venha o diabo e escolha". Mas se alguém tiver que ganhar, que não seja o Benfica, claro. O qual, às vezes, lá ganha.

Uma palavra sobre o treinador do Benfica. Jorge Jesus é uma figura patética, na expressão, na imagem e no que representa, naquela arrogância saloia, cabelo corado "à poeta", que, às vezes, irrita menos do que a pena e o ridículo que induz. Mas, uma coisa é bem certa: sabe imenso de futebol. É um grande treinador, há que reconhecê-lo, coisa que andei (erradamente) muito tempo para fazer. Ao seu lado tem um presidente do clube que é também um inenarrável "cromo", com um ar sempre a armar ao sério e ao "grave", a que, na minha terra, se qualificaria de ar de "polícia da Régua". (Já sei que o presidente do meu clube, um tal Carvalho, não é melhor e tem, além disso, o defeito acrescido de não pôr a equipa a ganhar. Mas sobre essa figura já falei quanto baste). Mas - e aqui volto a elogiar - o tal presidente-cromo demonstrou, em várias ocasiões, nomeadamente quando conservou Jorge Jesus no clube, contra tudo e contra muitos, que sabia o que fazia.

Por tudo isto, e em síntese, parabéns ao Benfica pela justeza da sua vitória, reconhecimento à qualidade do seu treinador e do seu presidente, um abraço aos meus amigos benfiquistas e aos habitantes de Carnide, bairro que muito honram. No dia de hoje estão contentes "que nem uns cucos", mas eu ficaria mais satisfeito se o não estivessem, desculpem lá! Aqui por Lisboa, irão para o Marquês comemorar. Sempre sob olhar, complacente e férreo, do leão, claro! Desse não se livram! 

domingo, maio 17, 2015

Paris, Grécia


Há coincidências curiosas.
 
Ontem, ao final da tarde, fui atestar o depósito do carro numa bomba de gasolina na rua Domingos Sequeira, entre a Estrela e Campo de Ourique. Olhei então, com a habitual tristeza, a ruína do Paris-Cinema, que ali está há anos, sem solução urbanística à vista, já que é óbvio que a sua recuperação como casa de espetáculos estaria sempre fora de causa.
 
Entrei uma única vez naquela sala de cinema. Fará exatamente meio século, lá para outubro. Passei então duas semanas em Lisboa e, com um primo, fui lá ver o "Zorba", o filme com Anthony Quinn, Alan Bates e Irene Papas, uma mulher com beleza mediterrânica muito interessante, com um olhar simultaneamente rude e misteriosamente doce. Foi um filme que, à época, me impressionou imenso. E me fez conhecer, pela primeira vez a música belíssima de Mikis Teodorakis (ao lado de quem, uma vez, viajei entre Benghazi, na Líbia, e Atenas, apenas com coragem para lhe dizer como apreciava a sua música). Foi o "Zorba" que, se bem me lembro, despertou o meu primeiro interesse pela Grécia.
 
A coincidência está no facto de, há minutos, o "Zorba" ter surgido na televisão. Não consegui evitar rever o filme e, mais do que olhar de novo a sua trama, dei comigo, como sempre acontece com coisas que me marcaram (filmes, livros, situações), a recordar-me de como, neste caso há 50 anos, eu sentira o que vira. É enquanto estou a vê-lo que escrevo este post. 
 
Sei que a Grécia não está na moda, embora creia que vai estar cada vez mais nas notícias, talvez dentro em pouco, pelas razões menos boas (no entanto, alguns palermas domésticos não deixarão de aplaudir a tragédia alheia). Foi com essa nuvem de algum desgosto que hoje apreciei o "Zorba". E a sua dança.
 
Deixo a foto do Paris-Cinema como foi no passado. Uma imagem antiga, porque a ruina que agora lá está parece-se cada vez mais com alguma Grécia dos tempos de hoje e, provavelmente, dos que aí virão. 

sexta-feira, maio 15, 2015

O tabu da homossexualidade


As revistas cor de rosa (e, desta vez, a cor é importante) vão tratar com curiosidade o casamento que hoje tem lugar entre o primeiro-ministro luxemburguês e o seu namorado, num país onde o vice-primeiro-ministro fez também já o seu "outing" como homossexual.

Os casamentos homossexuais, nos países onde eles são já permitidos, começam hoje a tornar-se vulgares e, em especial na Europa, diversos políticos têm vindo a assumir publicamente essa sua orientação. Estou certo que o chefe do governo luxemburguês tem clara consciência de que este seu caso vai ajudar muito a comunidade "gay" internacional e representará um passo mais na longa batalha de reconhecimento do direito das pessoas do mesmo sexo assumirem livremente as suas relações afetivas e, para elas, obterem um reconhecimento legal idêntico aos dos casais heterossexuais. Essa sua batalha passa, não apenas pelo fim de preconceitos, mas igualmente pela manutenção de uma constante pressão internacional sobre países cujas culturas - e até a legislação - ainda rejeitam a homossexualidade, algumas vezes considerando-a mesmo uma doença ou um grave comportamento desviante, identificado a crime.

Pertenço a uma geração em que a homossexualidade foi vista, durante muito tempo, como um desvio comportamental negativo, a que estava associado um elemento de culpabilidade e de rejeição social. Não aceite por muitos, apenas tolerada por alguns, a condição homossexual era - e ainda continua a ser, em muitos meios - alvo de uma chacota machista, das anedotas ao vocabulário identificativo. Sempre tive muito poucos amigos e amigas que se assumiam abertamente como homossexuais. Com a maioria dos restantes criou-se um "não dito", isto é, eles sabiam que eu podia saber que eles eram homossexuais, mas tinham a certeza que essa sua orientação sexual era, em absoluto, irrelevante para a nossa relação pessoal. Hoje, conto alguns entre os meus melhores amigos. Mas, repito, eles são amigos, não são "homossexuais que são meus amigos". 

As carreiras diplomáticas foram vistas, durante muitos anos, como acolhendo mais homossexuais do que outras profissões. Sem preocupações estatísticas, mas a avaliar apenas pelos casos que conheço, tenho hoje a ideia de foi sempre demasiado exagerada essa perceção pública ou, provavelmente, um certo estilo mais cosmopolita de vida terá conduzido os colegas de profissão com essa orientação sexual a serem menos preocupados em ocultarem as suas tendências. Mas já vai muito longe o tempo em que se considerava que a homossexualidade de um diplomata o expunha a chantagens e, de certo modo, podia convertê-lo num risco de segurança. O que não significa que a homossexualidade não possa ainda tornar-se num "caso" diplomático, como se verificou recentemente, com a não aceitação pela Santa Sé de um embaixador francês casado com outro homem. Mas, nesta circunstância, a questão religiosa, onde a evolução no tratamento do tema tem sido mais lenta, é a razão de ser.

Portugal vive hoje dias muito diferentes quanto à aceitação da homossexualidade e outras formas de expressão sexual, que os normativos multilaterais internacionais acolhem e protegem hoje de forma detalhada. As novas gerações portuguesas, ao que me é dado a observar, convivem com muito maior naturalidade com as diferenças na sexualidade e, muito em especial, estão cada vez menos sujeitas a formas de aculturação familiar que favoreciam a transmissão geracional dessa discriminação. Isso não significa que os homossexuais, entre nós, não tenham ainda um imenso caminho a percorrer para ganharem a sua plena liberdade e igualdade de estatuto. Esta é ainda a razão pela qual este post, que quebra pela primeira vez entre nós o tabu de falar abertamente da homossexualidade na carreira diplomática, vai, com toda a certeza, ser glosado pelos claustros das Necessidades.  

De Acordo?


Às vezes, neste país em que a crise nos trocou os dias e insoniou as noites, nos cortou os salários e a esperança, nos ajouja de impostos, neste Portugal vendido ao desbarato, na grande feira liberal exportada de Chicago para Massamá –, às vezes, afinal, é por outra razão que não essa que se levantam os mais fortes clamores de revolta.

É como se a pérfida Albion nos tivesse impedido, de novo, o sonho do mapa cor de rosa, como se os “turras” voltassem a decepar colonos incautos, como se o pandita Nehru reafundasse o “Afonso de Albuquerque” nas águas mornas de Pangim. É a pátria ofendida que regressa, desta vez pela aguda gravidade de um acento perdido, consolando a orfandade de vogais que choram o fim de alguns circunflexos telheiros gráficos.

Vá lá que, por essa bandeira, não se sai à rua para escacar montras e cabeças, não se atulham Alamedas de clamores, poetas de peito feito não anunciam “Marias da Fonte”, não se descem Avenidas, de cravos irados e de braços dados, rumando a Rossios de indignação e vilas morenas.

Esse rumor cívico trepa, contudo, há muito, pelos posts de blogues soberanistas, excita-se nas laudas severas da estimável folha diária da Sonae, num feroz “no pasarán!”, verbaliza-se, com anónimo arrojo, no vernáculo das caixas de comentários. São a brigada do asterismo, os que anuncia, lá ao fundo do texto, a sua orgulhosa não adesão ao ultraje gráfico.

No passado, andariam pelas catacumbas do MUD, hoje dão a vida cívica por uma muda consoante. São netos dos nostálgicos do “ph” da farmácia, dos chorosos, tal como Pessoa, da graça do “y” que o cisne em tempos perdeu, dos que há muito se haviam sentido tramados pela falta do trema que germanicamente lhes ornava os “u”, separados do futuro por um elidido hífen.

Essa brava aldeia de Asterix escava hoje as últimas trincheiras legais, implora a ajuda da preguiça lusófona para a sua derradeira batalha, reza pela heterodoxia de Angola e desconfia do Brasil, essa vil potência do gerúndio e das vogais indecentemente abertas. Quem sabe se ainda os veremos a ter um candidato presidencial – um Octávio com “c” ou um Baptista com um “p” dos que algumas tias velhas ainda cuidam em pronunciar ao chá.

O Acordo Ortográfico entrou agora, definitivamente, em vigor. Quem o não quiser utilizar que o não faça. Mas será assim uma questão tão importante? Afinal, se bem repararam, no artigo que acabam de ler, nem por uma vez se divergiu da velha escrita. Não estão de Acordo?
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, maio 14, 2015

Só à chapada

- Já viste o vídeo das miúdas a esbofetearem o colega?
- Vi algumas imagens.
- Aquilo é chocante, não achas?
- Tens toda a razão.
- E todas aquelas bofetadas...
- Aí já estou um bocadinho mais dividido...
- O quê?! Não me digas que achas bem que tenham torturado o miúdo!
- Não é nada disso. Não sou é totalmente contra as bofetadas.
- Essa agora! Não esperava isso de ti...
- Não percebeste nada! Chocava-te muito que os pais dessem uma boas chapadas nas filhas que fizeram aquilo? A mim, não...
- ...

quarta-feira, maio 13, 2015

Memorabilia diplomatica (XXXIII) - Mercedes

 
Numa noite, nos idos de 80, o embaixador português em Angola saiu de um jantar em minha casa, no "compound" da Embaixada - onde eram os escritórios e muitos de nós então vivíamos -, e arrancou ao volante para a sua residência, no bairro de Miramar. Tentava chegar antes da meia-noite, hora do "recolher obrigatório", que quase sempre implicava a possibilidade de encontrar patrulhas armadas, de humores variáveis e imprevisíveis.

Poucos metros corridos na Rua Karl Marx (antigamente, era Vasco da Gama...), enveredou por um caminho mais curto, que passava sob um prédio ocupado por "cooperantes cubanos". Ao aproximar-se do túnel do prédio, depara com umas pessoas que rodeavam uma senhora sentada no chão, aparentemente em dificuldades, que faziam gestos para o carro parar.

Luanda era então uma cidade sob tensão de guerra, mas as condições de segurança na cidade, em especial nessa zona, eram ainda razoáveis. Além disso, o embaixador era homem confiante e muito humano, pelo que não hesitou um segundo e parou. Tratava-se de uma grávida em aflições de parto e os circunstantes pretendiam levá-la para a maternidade de Luanda, o Hospital Josina Machel (antigo Maria Pia). As portas do carro abriram-se de imediato, para deixar entrar a senhora. Mas, fosse pelo esforço, fosse pela pressão do tempo, já não deu tempo e a criança acabou por nascer dentro do carro do embaixador de Portugal.

O nome dado à criança - vá-se lá saber porquê... - foi Maria Mercedes!

terça-feira, maio 12, 2015

Férias


Esta caloraça fora de tempo abre-me o apetite para as férias a sério. Mas, ao falar com algumas pessoas, ao dizer-lhes das minhas ideias para o Verão que aí vem, dou-me conta da imensa e simplória modéstia das expetativas que tenho. 

Conheço alguns que passam o ano a fazer intermináveis listas e listinhas, porque têm de ir a alguns locais "imperdíveis", no rol de coisas que há que ver antes de morrer (às vezes de tédio). São "paisagens de sonho", desde pirâmides e calhaus a praias e desfiladeiros que o "photoshop" da "National Geographic" lhes fez despertar nos sentidos. Com algumas "madames" armadas de "nécessaires" da Vuitton, preparam-se para se estafarem entre aeroportos, hotéis e resorts da moda, de onde chegarão, depois, com olheiras e um aspeto de ovos cozidos, com elas sempre na angústia, dilemática e sofrida, do eterno conflito entre a gula e a celulite. Outros regressam atulhados de imensa cultura sazonal - quilómetros de paredes de museus, ruínas onde ainda estão para chegar os caterpillars do Estado Islâmico, paletes de musicais da Broadway ou de peças do East End, vistas a eito. Agora que o bom-senso tecnológico nos livrou já definitivamente daquelas sinistras noitadas nas "rentrée", com suporíferos "slides" ("olha nós a chegar a Petra!", "e aquele belo pôr-do-sol no Bósforo, lembras-te, querida?"), arrasam-nos na hora os iPads com o "Instagram" (com fotos dos "piquenos" ou dos "pequenos", dependendo do bairro onde vivem) ou as "criativas" poses de família no Facebook, ornadas dos monumentos identificativos, em cenário de fundo ("onde era aquela catedral, amor?"). 

Os mais especiosos reservam, com meses de antecedência, restaurantes "étoilés", onde, depois de engolirem microscópicas espuminhas e reduções, no centro de imensos pratões, que às vezes nem lhes souberam a muito, esportulam fortunas só para fazerem o "vezinho" de terem lá ido. A maioria não teve sequer o bom gosto de experimentar o "São Gião", em Moreira de Cónegos, as delícias do "Vallecula", em Valhelhas, ou o "Tomba Lobos", lá para Portalegre. E a muitos, para quem Vila Franca fica já às portas da Galiza, nunca lhes passou pela cabeça ir passear uns dias ao Douro profundo ou ao Gerês, só viram fotos do Piódão ou da Sortelha na "Evasões" e acham a ideia de ir ao Pico uma "possidoneira" sem limites. A estranja é que está a dar.

Invejo-lhes, com sinceridade, o entusiasmo e, em especial, a voluntarista "juventude" que os faz tentar esquecer a idade, "queimar os últimos cartuchos", como bem dizia o meu pai. Mas só isso. Por mim, sou muito prosaico. Anseio apenas por uma areia lisa, bem perto de Lisboa, sem ter de andar muitos quilómetros, para estar a "driving distance" da "mesa dois" do Procópio, quando tal me der na gana (nos dias em que a "Sedonalice" se dignar abrir a loja, claro). Suspiro já pelas longas manhãs na cama ou numa espreguiçadeira, a ler os jornais na net, pelas "madrugadas" da chegada à praia pelas três da tarde, pelo banho com o sol a declinar, pela conversa com amigos e um "gin tonic" no "Pereira", a anteceder jantaradas ainda melhor regadas, bem mariscadas e conversadas, a criar lastro para a longa noite onde se põe a leitura em dia. Jornadas que, claro!, alegram o nosso colesterol, os trigliceridos, os açúcares e o ácido úrico, os quais, como é de regra, quando "cheirar a setembro", se tentarão normalizar por espartanas dietas... entre refeições. Ou, se não se conseguir, como diria um amigo meu, "olha! são menos dois anos de lar de idosos..."

Nunca mais é agosto, bolas!

A mesa e o negócio


O debate em torno da promessa socialista de baixar fortemente o IVA que incide sobre a restauração veio chamar a atenção para a importância de uma das atividades económicas com maior impacto na criação direta de emprego, como é testemunhado pelas recuperações sazonais que se refletem anualmente sobre esses índices. O que se passou nos últimos anos neste setor, fortemente fustigado pela carga fiscal e pela perda de poder generalizado de compra dos potenciais clientes nacionais, representou um golpe fatal para muitas PME do setor, com consequências no encerramento de muitos milhares de pequenas unidades, um pouco por todo o país.

Em certas zonas, contudo, graças ao esforço denodado de muitos operadores e a um notável trabalho das entidades promotoras do nosso turismo, os impactos negativos conseguiram ser relativamente atenuados e muitos restaurantes foram capazes de sustentar a sua atividade e, em alguns casos, a melhor qualificar a sua oferta.

Olhando para as últimas décadas, somos forçados a constatar que a crescente atratividade da nossa gastronomia se constituiu como um dos fatores em que se alicerça parte significativa do novo turismo que procura Portugal, o que também se liga ao reconhecimento, cada vez mais evidente, dos nossos vinhos à escala global. Basta estar atento às grandes revistas internacionais da especialidade, bem como aos suplementos da grande imprensa mundial, para concluir que, dia após dia, o produto turístico português, sem perder a tradicional oferta do sol-e-praia, e conjuntamente com a requalificação da oferta cultural, está a atrair pela gastronomia um novo mundo de clientes.

As “estrelas” obtidas por alguns restaurantes e “chefes” portugueses, que alguns ainda olham com pateta sobranceria, fazem hoje parte integrante da subida do nosso turismo na escala internacional de valor. O produto gastronómico português funciona igualmente como um meio para aumentar a visibilidade da nossa cada vez mais sofisticada indústria agro-alimentar - dos vinhos às conservas, do azeite aos queijos e outros produtos que, dia após dia, ganham relevância no nosso setor exportador e, simultaneamente, criam e fixam postos de trabalho em zonas do país até aí condenadas ao abandono e à desertificação.

Termino com uma nota de reconhecimento para duas figuras a quem o país muito deve neste domínio. Refiro-me ao jornalista e crítico José Quitério, cujo trabalho de quatro décadas em prol da cultura gastronómica portuguesa e da qualificação da oferta em matéria de restauração foi recentemente reconhecido pela Universidade de Coimbra, ao atribuir-lhe o seu prémio anual, e ao engenheiro José Bento dos Santos, produtor vinícola e presidente da Academia Portuguesa de Gastronomia, a cujo assinalável prestígio internacional, a cumular uma vida dedicada ao aprofundamento desta temática, muito se deve o facto de o nosso país ter sido recentemente escolhido para sede da Secretaria-Geral da Academia de Gastronomia da União Europeia.  

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico)

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...