quinta-feira, junho 04, 2020

Nakhchivan


Quando entrei naquele quarto de hotel em Nakhchivan, daqueles que têm um aspeto que nos leva a hesitar em sequer vir a utilizar a roupa da cama, tive um rebate de consciência. Dei comigo a pensar que vários dos embaixadores junto da Unesco, que tinham ido comigo de Paris a um congresso a Baku, no Azerbaijão, haviam sido por mim convencidos a alinhar na aventura que era fazer uma surtida a Nakhchivan.

Comecemos pelo princípio. O Azerbaijão organizava com regularidade um congresso cultural, nesse ano de 2012 em torno de uma temática central que já não recordo. Decidi nele participar, confesso, porque, desde as descrições de Calouste Gulbenkian, tinha uma forte curiosidade em ir a Baku. Havia pago do meu bolso a hospedagem, sendo a viagem, desde Paris, oferecida pelo governo local, dada a minha qualidade de “keynote speaker” convidado num dos painéis.

Na papelada que, à chegada, nos foi entregue, vinha uma oferta: o governo azeri dava-nos a escolher uma de duas viagens de dois dias, na parte final do congresso. As alternativas eram uma ida de autocarro ao Azerbaijão profundo, com comezainas, folclore e visitas culturais, ou uma ida de avião a Nakhchivan. Qualquer das deslocações só se faria se houvesse um quorum mínimo de participantes.

Dos meus colegas, fui quem mais “puxou” pela deslocação a Nakhchivan. Porquê? Porque aquela tinha sido uma das mais misteriosas repúblicas soviéticas, com uma história bem curiosa, que sempre justificara o seu estatuto institucional muito atípico. Como bem atípica ainda se mantinha a sua situação presente.

O Nakhchivan - de que muitos dos leitores nunca terão ouvido falar e que duvido algum tenha visitado - é um território autónomo do Azerbaijão, tão “autónomo”, nos dias de hoje, que não tem qualquer ligação por terra com o resto do país. Trata-se de um enclave isolado, com uma curta fronteira de menos de oito quilómetros com a Turquia, outra com o Irão, uma outra ainda com a Arménia, tendo o território do Nagorno-Karabakh (disputado pelo Azerbaijão e pela Arménia) a tapar-lhe o acesso ao resto do Azerbaijão, de que faz parte. O Nagorno-Karabakh é uma área “neutralizada” pela disputa territorial, onde, nos anos 90, teve lugar uma guerra muito mortífera, sendo ainda palco de regulares incidentes armados. Para chegar de Baku a Nakhchivan é, pois, necessário ir sempre de avião, pedindo os azeris de empréstimo o espaço aéreo iraniano, dado que tentar voar sobre o Nagorno-Karabakh ou sobre o país seu arqui-inimigo, a Arménia, seria um suicídio garantido. Por todas estas razões, pode perceber-se que uma ida àquele bizarro destino não fosse uma coisa tida por cómoda para alguns dos diplomatas que comigo viajavam.

Muitos desses meus colegas inclinavam-se para aceitar o convite para o passeio sereno, de autocarro, pelo território, oportunidade para comprar tapetes e fazer belas fotografias. Fui eu, numa noite de conversa, em Baku, quem conseguiu juntar um grupo que tornara aquela ida a Nakhchivan possível. Invoquei a História e também devo ter inventado histórias que lá os convenceram.

Daí a minha preocupação culposa: o hotel era sinistro, a comida pouco menos, todo o ambiente parecia saído de um filme soviético dos anos 50, com uma coreografia teatral a envolver aquela que devia ser uma rara visita de uma delegação de diplomatas estrangeiros. À nossa volta, havia umas lojas “fake”, com coisas para um turismo que manifestamente não existia, salvo para aquele grupo de maduros, de várias nacionalidades, que o embaixador português conseguira arrebanhar, para poder concretizar o objetivo de uma ida a um local que o seu vício por lugares estranhos motivara.

A cidade de Nakhchivan, capital do território do mesmo nome, não é muito grande. Foi-nos proposto um passeio de autocarro. Eu trazia de Paris um raro guia com um mapa da cidade e, com base nele, comecei por pedir para passarmos junto da mesquita iraniana. Assisti então a uma conversa embaraçada entre o guia, que falava um péssimo inglês, e o motorista, tendo ambos concluído que... não sabiam onde era! Voluntariei-me: “Eu indico. Vai-se por esta avenida abaixo, corta-se na 3ª rua à esquerda e a mesquita fica numa praça ao fundo”. Qual quê! Novo conciliábulo, concluído pela recusa absoluta, com um argumento definitivo: a zona estava vedada, por obras. Pois...

E lá fomos, como é de regra nestes regimes, apenas aos locais a que eles nos queriam levar. Desde logo, para grande excitação de alguns dos meus colegas, àquilo que se diz ser o tumulo de Noé. Três anos mais tarde, fui de Lisboa a um congresso na Arménia e, perto da capital, Ierevan, lá fui ver ... os restos da Arca de Noé. Noé está muito presente no Cáucaso do Sul, sempre ligado ao monte Ararat, que ali prepondera na paisagem!

O ponto alto da visita seria, no entanto, a ida ao museu em honra de Heydar Aliyev, o filho mais ilustre de Nakhchivan, presidente do Azerbaijão por uma década, pai do atual líder. A visita foi longa, com uma explicação detalhada da vida da figura, desde o berço à morte. A certo ponto, a guia do museu esclareceu mesmo que fora Aliyev quem “livrara o Azerbaijão do comunismo”.

Aí, passei-me. Um diplomata, ainda por cima convidado, deve conter-se, mas a minha irritação foi mais forte do que eu: “Mas o presidente Aliyev não foi membro do Soviete Supremo da União Soviética?”. Aliyev havia sido, aliás, muito mais do que isso: foi uma figura destacada do KGB e da governação comunista no Azerbaijão. O seu conflito foi com a “perestroika” de Gorbachev, isto é, com quem quis “democratizar” o comunismo. Mas não entrei nestes detalhes, claro.

A guia sorria, perdida, não sabendo o que fazer: não ousava contraditar-me, mas a minha questão estava fora do seu roteiro. Recordo-me que as minhas colegas do Omã e da Albânia, duas boas amigas, imploraram, em voz baixa, que eu não embaraçasse a senhora e eu lá “deixei cair” os meus preciosismos históricos. E a palestra prosseguiu, para grande alívio dos nossos acompanhantes.

Não vou maçar quem aqui me lê com muitos mais detalhes dessa viagem, que também incluiu uma longa deslocação à fronteira iraniana, junto da qual havia uma espetacular mina de sal, transformada em clínica para doenças pulmonares.

A noite acabou, divertida, com uma refeição bem regada a vodka, como é de regra naquelas paragens. No final, um responsável local, com ar de autoridade política, aproximou-se de mim e disse, num tom cujo sentido não era de leitura unívoca: “Já vimos que é bastante interessado pela nossa terra. Esperamos vê-lo por cá de novo. Nessa altura, poderá ir ver a mesquita iraniana. E até o poderemos levar a outros lugares, que nem imagina que temos, para os estrangeiros curiosos...” A conversa acabou por ali. Desafiar ditaduras pode ter um preço.

Para o que me importa, nesse dia cumpri o meu objetivo de ir a Nakhchivan. Como costumava dizer alguém que já tive como amigo: “Você gosta de fazer ‘vezinhos’ em várias coisas bizarras, pelo mundo”. É verdade. Cada um é como é.

quarta-feira, junho 03, 2020

A “Visão” de Portugal


Porque há mais vida para além da pandemia, amanhã, na “Visão”, dou algumas ideias sobre onde fazer turismo em Portugal. 

Aproveitem, se puderem.

Europa


A força de Trump


O fenómeno Trump, qualquer que venha a ser o seu saldo final, tem já garantido um lugar na história política americana. Não o vai ser, com toda a certeza, pelas melhores razões, mas os Estados Unidos que sairão da sua passagem pela Casa Branca serão bastante diferentes daqueles que herdou de Obama. Não sabemos ainda é quanto.

Depois de Trump, todos iremos perceber se o corpo institucional americano permanece preservado no seu papel de gestor essencial dos “checks and balances”, ou se o desgaste induzido por um presidente que fez das roturas uma doutrina de ação acabou por se consagrar como um fator descaraterizador, com efeitos duradouros.

Trump chegou ao poder com uma intenção evidente: mudar a América de Obama. Fazer o contrário do seu antecessor foi a estratégia definida desde a primeira hora, numa linha que, tendo bastante de primário e de impressionista, traduzia o que ele pressentiu ser a vontade maioritária da sociedade.

Percebeu que havia uma parte do país violentada por uma leitura urbana, reverente a causas filosóficas da modernidade, que, na ordem externa, dava ares de fragilizar a imagem do país, colocado a jeito da satisfação de interesses que essa parte da América não via como americanos. A nostalgia de um país com um poder respeitado, que os oito anos de Obama teriam deixado banalizar, com compromissos económicos dependentes de um sistema multilateral globalizante, tido como responsável por desemprego e falências, conduziu ao “Make America great again”. Simples como slogan, eficaz como leit-motiv.

Como aquelas equipas de futebol que abrem o jogo “ao ataque”, que fazem do “pressing” a tática permanente e vivem as semanas, nas redes de televisão, a insultar os adversários e a proclamar que são “os maiores”, a onda Trump é uma espécie de “bullying” político permanente.

Curiosamente, se olharmos em perspetiva, estamos, desde o primeiro momento, perante um puro “one man show”, onde os atores secundários são mesmo secundários e descartáveis, à menor tentação de dissenso. 

O debate eleitoral que se aproxima, depois de uma pandemia com mais de 100 mil mortos e um rasto económico trágico, não vai ser entre Trump e Biden. Vai ser entre os que acreditam que, depois do vírus, é Trump quem tem mais força para afirmar a América no combate mundial de interesses, nomeadamente contra a diabolizada China, e os que entendem que a solução é recolocar no poder um “genérico de Obama”, da tal América fraca e dialogante. Espero estar enganado, mas os dados parecem lançados.

terça-feira, junho 02, 2020

Forte Príncipe da Beira


Várias foram as pessoas que, antes da minha ida como embaixador para o Brasil, em 2005, me falaram no Forte Príncipe da Beira, a maior edificação militar portuguesa construída fora da Europa. Todas essas pessoas, sem exceção, tinham “ouvido falar” do forte, mas nenhuma lá tinha ido. A fortaleza de São José de Macapá, de que há dias aqui falei, segue-se-lhe, em dimensão e importância estratégica.

Intimamente, prometi a mim mesmo que tudo faria para conseguir fazer aquela visita, durante a minha estada no Brasil.

O Forte Príncipe da Beira fica localizado no Estado brasileiro da Rondónia, numa zona remota, junto ao rio Guaporé, que faz fronteira com a Bolívia.

O forte teve várias utilizações, desde a sua inauguração, em 1783, até aos últimos anos do século XIX, quando era presídio militar, altura em que foi abandonado. Foi “descoberto” em 1913, mas a sua planeada recuperação não foi então avante. Só em 1930, o marechal Rondon, que daria o nome ao Estado em que a estrutura militar se situa, já com o forte uma vez mais tapado pela vegetação amazónica, conseguiu recuperá-lo. Em 1983, o presidente brasileiro João Figueiredo e o embaixador de Portugal, Adriano de Carvalho, visitaram o forte, lançando as bases para uma recuperação que a Fundação Calouste Gulbenkian viria, posteriormente, a ajudar a concretizar.

Hoje, a fortaleza, com os seus belos canhões com as armas portugueses, mantém-se preservada, na estrutura essencial, graças a uma pequena guarnição militar, que cuida da sua conservação. Se assim, não acontecesse, a mata amazónica “tomaria conta”, de novo, do forte.

Em 2008, a meu pedido, o nosso Adido de Defesa, coronel Jorge Santos, conseguiu montar uma “operação” de ida-e-volta ao forte, a partir da capital da Rondónia, Porto Velho, numa visita de trabalho que fiz a esse Estado e ao vizinho Acre. Junto ao forte, existe uma curta e improvisada pista, a que os aviões da Força Aérea brasileira conseguem aceder.

A viagem fez-se sobre uma imensa paisagem amazónica, tendo-nos acompanhado a figura magnífica do cineasta e historiador Beto Bertagna, um gaúcho que tem dedicado a sua vida à história da Rondónia. Foi um dia inesquecível, que guardo nas minhas memórias para sempre.

A entrada no forte, belíssimo e com uma construção muito curiosa, no conhecido modelo Vauban, foi para todos nós um momento emotivo. E sê-lo-ia mais quando deparei, na parede, com uma placa onde se lê um extrato de uma carta de junho de 1776, enviada por D. Luis de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, governador e 4º capitão-general da capitania de Mato Grosso.

O que está escrito nesse texto passou para mim a consubstanciar o verdadeiro conceito de Serviço Público:

"A soberania e o respeito de Portugal impõem que, neste lugar, se erga um Forte, e isso é obra e serviço dos homens de El-Rei nosso Senhor e, como tal, por mais duro, por mais difícil e por mais trabalhos que isso dê, é serviço de Portugal. E tem que se cumprir".

Em honra do embaixador de Portugal, a guarnição fez disparar na ocasião um velho canhão português. (Anos depois, o meu sucessor em Brasília, numa viagem idêntica, teve menos sorte do que eu, tendo então ocorrido um acidente durante a mesma cerimónia.)

Regressado a Brasília, consegui (sem encargos para o Estado, diga-se), reunir meios para enviar um jovem e talentoso fotógrafo brasileiro ao Forte Príncipe da Beira, tendo sido organizada, em dezembro desse ano, no Instituto Camões, em Brasília, uma belissima exposição com fotografias dessa visita. Foi, aliás, no ambiente dessa exposição que organizei a minha despedida oficial da capital brasileira.

Passaram entretanto alguns anos e, já em Portugal, fui uma noite dormir a um palacete, transformado em unidade hoteleira, em Penalva do Castelo (hoje incluído na rede dos Paradores espanhóis), a Casa da Ínsua. Qual não foi a minha surpresa quando descobri que o primeiro proprietário daquele belo solar fora D. Luis de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, o responsável pela edificação do Forte Príncipe da Beira, lá longe, na atual Rondónia brasileira.

O mundo é pequeno, mas o mundo português é grande.

segunda-feira, junho 01, 2020

Hoje, na TVI


Hoje, durante o “Jornal das 8”, da TVI, estive à conversa com Pedro Pinto e Miguel Sousa Tavares sobre a situação nos Estados Unidos e no Brasil. Pode ver estas conversas, respetivamente aqui e aqui.n

America


domingo, maio 31, 2020

Olhar os olhos


A cada dia que passa, atento mais na beleza dos olhos de algumas mulheres, acima das máscaras. E, por vezes, dou comigo a tentar adivinhar, pelos olhos, como será o resto da cara. Estes também são efeitos colaterais da pandemia.

António Costa Silva


Viver no estrangeiro, durante bastantes anos, mesmo procurando estar atento à realidade portuguesa, traz como consequência que sejamos surpreendidos pela emergência de novas personalidades na cena pública.

Um dia, creio que de 2013, num debate em que participei no Teatro Nacional D. Maria II, “contracenei” com António Costa Silva. Não faço ideia do tema. Já nos tinhamos encontrado antes, num posto que eu ocupara, mas foi só durante esse colóquio que pude apreciar a sua exposição estruturada, informada e fundamentada, o saber “olhar em frente” sem cair na especulação irresponsável. Ligando uma sólida formação académica a uma relevante experiência prática no mundo dos petróleos, António Costa Silva é servido por uma capacidade pedagógica serena, o que dá imensa credibilidade às suas análises.

Daí em diante, e já lá vão alguns anos, sempre que penso em nomes para estruturar um colóquio ou conferência, sobre temáticas geopolíticas, o nome de António Costa Silva surge-me como uma obviedade. É o que tem acontecido em iniciativas do Clube de Lisboa, a que presido. E não posso deixar de destacar também a sua excelente contribuição no grupo de estudos criado pela Fundação Calouste Gulbenkian para pensar o seu futuro, a que ambos pertencemos.

Vejo agora que o primeiro-ministro decidiu recorrer a António Costa Silva para o ajudar a racionalizar a aplicação das novas ajudas europeias. Fá-lo, aparentemente, num modelo novo, desligado das estruturas institucionais tradicionais, o que já provocou uma expectável reação da “velha política”. Costa Silva estará nessa iniciativa “pro bono”, sem receber salário, apenas num ato de serviço público que decidiu assumir. Esperemos que, cedo ou tarde, da atual informalidade, essa sua relação com o governo possa vir a densificar-se. O país só ganharia com isso. É esse o meu voto.

sábado, maio 30, 2020

Mazagão Velho

 
Um dia, sendo embaixador no Brasil, recebi do governador do Estado do Amapá, Waldir Goes, um convite para estar presente numa solenidade em que seria feita uma homenagem aos fundadores da cidade de Mazagão Velho.

À época, 2006, tinha uma ideia muito vaga da história da localidade. Mazagão Velho fora criada, em 1775, para apoiar a fortaleza de São José de Macapá, na defesa do norte do Pará. O nome advinha do facto de ter sido fundada pelos antigos ocupantes da fortaleza de Mazagão (atual El Jadida), em Marrocos, a última que os portugueses haviam sido forçados a abandonar, já em 1769, dentre as várias que, desde o século XVI, haviam sido implantadas na costa marroquina.

É impressionante pensar, nos dias de hoje, como o poder político em Lisboa tomou a decisão de enviar, recém-saído da costa africana, depois de uma breve passagem pela Europa, um contingente mais de 300 famílias, mistas de portugueses e familiares marroquinos, para aquele remoto território, na fronteira norte do Brasil.

Olhando em perspetiva, em termos de resultados práticos, somos levados a concluir que essa terá sido uma decisão que acabou por contribuir para uma eficaz proteção dessa entrada do Amazonas, com vista à preservação da soberania setentrional do que é atualmente o Brasil.

É no Amapá, para quem não saiba, que o Brasil tem fronteira com ... a França! De facto, do outro lado do rio Amazonas, está a Guiana Francesa. É, no plano político-administrativo, um Estado brasileiro relativamente recente, fruto de uma divisão do Estado do Pará, ocorrida em 1943.

A data do evento era-me, contudo, bastante inconveniente: tratava-se do dia seguinte às eleições presidenciais em Portugal, a cujo encerramento da votação eu queria estar presente na capital federal. Isso obrigar-me-ia a sair de Brasília bastante tarde e chegar ao Amapá já bem dentro da madrugada, naqueles aviões noturnos que a insuperável imaginação brasileira crismou de "corujões", porque andam de noite, com preços mais baratos, que vão pousando, como se fosse um autocarro, por vários aeroportos, ao longo de milhares de quilómetros de território, o que transformava a viagem numa longuíssima jornada.

Foi a amável e reiterada pressão telefónica do governador Waldir Goes que me convenceu a ir. Cheguei ao aeroporto de Macapá, capital do Amapá, depois das duas da manhã, acompanhado por um diplomata marroquino, conselheiro cultural da sua embaixada. Esperava-nos uma simpática receção e, para nossa surpresa, aguardáva-nos uma ceia, no hotel, com convidados, tudo feito sem grandes pressas, com imensa cordialidade. No final, foi-nos dito que, às sete horas da manhã (!), passariam a buscar-nos... Se, depois do lauto repasto, acaso dormi uma hora, sob um inesquecível fundo musical, chegado das ruas de Macapá, terá sido já muito!

Logo de manhã, fomos levados do hotel ao porto, de onde embarcámos com destino a Mazagão Velho. A viagem acabou por ser problemática: a meio do rio, o barco avariou. Foi preciso mandar vir uma nova embarcação. O governador Waldir Goes mostrava uma serena fúria com o incidente, que perturbava o cerimonial previsto. Mas tudo se resolveu e a expedição continuou. Já perto do nosso destino, mudámo-nos para uma piroga, com remadores, em que havia músicos/cantores, com tambores e violas, que entoavam modinhas antigas, da tradição luso-mourisca do século XVIII, que viémos a saber ser a imagem de marca identitária da localidade. Uma experiência inesquecível!

Quer eu quer o diplomata marroquino estávamos comovidos. E mais ficámos ao aproximar-nos de Mazagão Velho, ao constatar que o que parecia ser toda população da cidade nos aguardava, na margem do braço de rio, chefiada pelo prefeito José Carlos "Marmitão", nome que condizia, à justa, com a dimensão da amável figura. Era enquadrada por garbosos cavaleiros, vestidos com coloridos trajes, que se pretendiam representativos da época remota de celebrávamos, das lutas entre os cristãos e os muçulmanos.

Dali saímos diretamente para o evento, pontuado por diversos momentos religiosos, que teria como ponto alto a inauguração de um memorial, onde ficaram depositados os restos mortais dos portugueses e das suas famílias marroquinas, que haviam sido descobertos em escavações recentes. Sentia-se um ambiente, ao mesmo tempo, de emoção e júbilo. Mazagão Velho tinha ali o seu momento de consagração histórica e eu senti o imenso privilégio que era poder representar Portugal naquela ocasião.

O calor do doa era imenso. Lembro-me de, na longa cerimónia, ter proferido, do palanque, à frente de uma multidão a perder de vista, um emocionado discurso, com os olhos a arder, pelo sal que vinha do suor que me caía da testa.

Seguir-se-ia um lauto almoço, no seio de uma multidão entusiasmada com o relevo que assim era dado à sua terra.

Hoje, sabendo o que sei, ficaria arrependido para toda a vida se acaso não tivesse estado, nesse dia, ao Amapá.

No regresso, bem mais longo, por terra a Macapá, tinha um pedido a fazer: queria visitar o Zerão. E foi feita a minha vontade. O que é o Zerão? É o estádio de futebol perto da capital do Amapá, cuja linha divisória, a meio, é ... a linha do equador. Tirar uma fotografia, com um pé em cada hemisfério, era uma experiência que eu, por nada, queria perder! E não perdi.

No dia seguinte, com o governador Waldir Goes, fui visitar a fantástica fortaleza de São José de Macapá, construída no tempo colonial português, um marco de soberania que, felizmente, nunca teve de disparar um único tiro, durante toda a sua história - o que é a glória máxima da eficácia da dissuasão.

Prometi então - e vim a cumprir, meses mais tarde - enviar o conselheiro cultural português no Brasil, o pianista Adriano Jordão, para fazer um concerto naquele belíssimo espaço, convertido em espaço cultural. Não foi fácil concretizar a iniciativa: os pianos não abundavam no Amapá! Mas essas são contas de outro rosário, que o Adriano, se quiser, contará.

Lembrei-me disto, há pouco, por uma razão triste, ao constatar, na televisão brasileira, que o Amapá é um dos Estados brasileiros onde a situação da pandemia é hoje bem trágica.

sexta-feira, maio 29, 2020

quinta-feira, maio 28, 2020

Modas


A máscara no queixo é o equivalente pandémico dos óculos de sol na cabeça.

Questões

Mafalda Anjos, diretora da “Visão”, suscita hoje uma questão que também já me tinha colocado: “Por que razão serão (...) menos independentes os meios (de comunicação social) que aceitam uma compra de espaço publicitário pelo Estado, que é “cega”, pública e indiscriminada, do que os que a recusam, mas vivem de subsidiação de dezenas de empresários com agendas políticas e interesses privados?”

Eu colocaria ainda a questão: se, desde o ínício, tivesse ficado claro que a ajuda do Estado era substancialmente maior, tê-la-iam recusado?

TAP

Percebo que a presença de capital público na TAP deva objetivar-se em orientações no sentido de interesses do país, definidos pelo Estado. Mas gostava de lembrar que foram decisões insensatas sobre “rotas políticas” que, no passado, ajudaram a levar a TAP ao descalabro.

Os novos libertários

Em alguns tolinhos, a moda começou mais cedo. Noutros, é coisa mais recente. É a “revolta”, o apelo à “desobediência” contra a “ditadura” do confinamento “oficial”, uma espécie de deriva libertária, a darem-se ares liberais.

E se tivessem um pai ou uma mãe no hospital, com respirador? Diriam o mesmo?

Será impressão minha?

É minha impressão ou Portugal paga hoje, nas idas ao mercado de dívida soberana, as taxas mais baixas de todos os países do sul da Europa?

O mundo adversativo

O jornalismo adversativo é uma forma muito triste de exercer a profissão.

Para compensar qualquer notícia que possa ser lida com tendo um tom positivo, algo que esteja a correr bem, é colocada logo depois uma frase antecedida de um “mas”, “porém” ou “contudo”.

Estejam atentos.

Adeus, CDS ?

O teor das declarações do nóvel líder do CDS, quanto ao Chega e a Orbán, deixa claro a que mercado de votos pretende aceder. Fica tudo mais claro, facilitando e legitimando a escolha dos adjetivos para qualificá-lo.

A Europa mexe

A acreditar na primeira leitura das medidas europeias anunciadas, há duas resistências que se quebram: a mutualização de alguma dívida e a eventual criação de novos recursos próprios. A Europa mexe.

quarta-feira, maio 27, 2020

Mobilidade humana


Hoje, 4ª feira, 27 de maio, entre as 17:00 e as 17:30, no Facebook e no YouTube, António Vitorino, diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações, falou comigo sobre o futuro da Mobilidade Humana depois do Covid 19.

Pode assistir aqui.

Nós por lá


Quando era embaixador em França, foi-me um dia chamada a atenção para o facto de um comediante, Patrick Timsit, ter feito comentários depreciativos sobre a comunidade portuguesa.

No meu anterior posto no Brasil, tinha-me defrontado, por mais de uma ocasião, com situações idênticas. Algumas vezes houve em que achei oportuno responder a esses comentários, às vezes com “estrondo” mediático. Outras, decidi não reagir.

Este é um problema que se coloca, de forma recorrente, aos embaixadores: avaliar se devem ou não atuar, em face de ataques públicos ao seu país ou aos seus cidadãos. Há que ponderar se tal reacção não acabará por ter um efeito desproporcionado, isto é, se não ajudará a chamar mais atenção para a questão do que aquela que ela teve no momento em que ocorreu. E, depois, nos casos em que decidirmos intervir, há que ainda que escolher e medir o tom que essa intervenção deve ter. Podem crer que é uma questão nada fácil.

No caso de Timsit, optei por aguardar, com vista a perceber se a questão tinha repercussão. Não teve e o assunto morreu.

Há dias, surgiu num canal televisivo um filme que tinha fados de Amália como banda sonora. Parei o zapping por ali. Era uma comédia francesa, com alguma graça, “Marie-Francine” - por cá seria chamada “50 são os novos 30” - assente num romance entre uma técnica de laboratório e um cozinheiro, cuja mãe era uma porteira portuguesa. O papel desse franco-português era desempenhado por Patrick Timsit.

Apetece-me dizer que tudo está bem quando acaba bem.

A dispensa do jornalismo


Os governos, todos os governos, pela natureza das coisas, querem dar de si próprios e da sua ação uma imagem favorável. E tentam que os cidadãos acreditem na narrativa que projetam. Em democracia, as oposições funcionam como contraponto às versões oficiosas. Mas é, muitas vezes, graças a intrusividade da imprensa, que se especializou em explorar os escaninhos do dissenso e a não se deixar encantar pelas versões únicas que se fica a saber, mais cedo ou mais tarde, que as coisas nem sempre são aquilo que nos foi apresentado.

Para isso, surgem versões dos factos, o diz-que-disse, os relatos parciais. É essa a riqueza do trabalho dos jornalistas, esses “impacientes da História”, como lhes chamou Jean Lacouture, para bem caraterizar a sua função antecipadora dos juízos definitivos, com o recuo do tempo.

Contudo, às vezes, vezes que são raras, a realidade dispensa o jornalismo. Há factos que são tão evidentes que não necessitam de mediadores de leitura.

Vem isto a propósito do vídeo que revelou a reunião do presidente brasileiro com os seus ministros e alguns convidados do inner circle. Embora estivesse a ser gravada, aquela reunião não estava destinada a vir a ser conhecida pelo grande público - e muito menos o seria depois do que ali foi dito, em especial da forma com o foi. Era uma reunião de pura coordenação política – e daí decorre a sua “riqueza”.

Naquelas escassas horas, todo o brasileiro ficou a conhecer a “cultura de balneário” do team Bolsonaro. Foi muito interessante perceber que o Brasil tem no topo do Estado uma figura que entende que o voto conjuntural que recebeu o ungiu de uma autoridade quase sem limites, só prejudicada, no seu exercício, pelo empecilho não resolvido de outros poderes, como o legislativo e o judicial.

Ouvir (e ver) o que ali disseram ministros como o da Educação, num arroubo filo-fascista não contraditado por ninguém, do Ambiente, com afirmações para além da decência básica para o exercício de um cargo público, da Economia, cheio da consciência de ser o derradeiro fiador de Bolsonaro perante o empresariado, com as certezas da “mão invisível” a orientar-lhe as escassas dúvidas éticas – tudo isso constituiu um espetáculo memorável. E, nessas horas, foi imperdível a cara do militar vice-presidente, com um auto-controlo no fácies que era um verdadeiro livro aberto.

São raros os momentos como este, em que História, por um acaso, se fez no instante, sem esperar pelo amadurecimento do tempo. Tudo ali ficou imensamente claro, para sempre.

terça-feira, maio 26, 2020

A voz do Porto


Ouvindo hoje Rui Moreira a clamar, lembrei-me do Porto e do seu poder ou falta dele.

Curiosamente, sendo embora a segunda cidade do país, o Porto só com a democracia conseguiu obter uma expressão significativa a nível do poder central. Se olharmos para a história da ditadura – e mesmo da primeira República, passado um tempo de evidência no republicanismo novecentista - verificaremos que a influência política do Porto, como cidade, junto do poder central, foi sempre muito escassa. E, curiosamente, é uma evidência que o Porto teve sempre, em particular nesse tempo, um forte tecido de instituições, formais e informais, desde logo na área empresarial, mas igualmente no domínio cultural e no terreno social.

Tudo indica que Salazar nunca gostou do Porto, talvez porque a cidade projetasse uma sofisticação, quiçá algo snobe e elitista, que se contrapunha ao ruralismo pretendidamente esclarecido que ele próprio representava e que Coimbra, com Lisboa, aqui também através da universidade, era suficiente na sua tarefa de cooptar o pessoal político da ditadura. 

Graças à sua força económica – recordo que então se dizia: “o Porto trabalha, Lisboa diverte-se” -, o Porto como que se isolou um pouco no processo político à escala nacional, mantendo uma dinâmica própria, uma burguesia longe do cosmopolitismo do dinheiro “novo” de Lisboa, mais Clube Portuense e muito pouco Linha do Estoril. O Porto ia fazendo pela vida...

Diga-se, contudo, que o Porto burguês não era maioritariamente anti-regime, muito longe disso. O peso da igreja e a proteção dos negócios encontraram sempre no Porto um terreno sólido de apoio ao salazarismo. Mas o Porto da ditadura foi também aquele que deu o maior banho de multidão a Humberto Delgado, em 1958, como já tinha proporcionado o maior comício a Norton de Matos, nove anos antes, na Fonte da Moura. E é o Porto que gera um bispo que atazanou o ditador e, verdadeiramente, abriu caminho às vias católicas dissidentes à escala nacional. Esse é, alias, o mesmo Porto que produziu Sá Carneiro, esse inesperado incómodo que veio a destapar a fraude da abertura marcelista.

Foi o 25 de Abril que levou o Porto a perder esse seu relativo isolamento político. Com Sá Carneiro e as suas adjacências, o Porto entrou muito cedo para a partilha do poder político central. E por lá tem ficado, às vezes de forma influente, outras numa presença simbólica. Quando se forma um novo governo, à esquerda ou à direita, imagino que a pergunta deve surgir: “E do Porto, quem é que se põe?”. Pode soar um tanto cruel estar a dizer isto, mas é esta parece ser a realidade. 

Desta vez, no governo, o Porto não se pode queixar... E tem mesmo a liderança da oposição. Porém, não obstante a inegável excelência de muito do pessoal que a política doméstica foi buscar ao Porto, nas últimas décadas, isso só marginalmente quis significar o peso real acrescido da cidade no jogo político nacional. 

Mas Porto desenha um outro modelo curioso, sendo nisso quase um “case-study”. Refiro-me ao seu perfil reivindicativo. A cidade do Porto assume sempre um discurso tenso, uma mostra de mal-estar permanente, uma queixa de quem se sente mal tratado. Até as distritais portuenses dos dois partidos do novo rotativismo sofrem desta obsessiva necessidade de terem uma idiossincrasia própria, um discurso façanhudo e de cara dura frente aos aparelhos de Lisboa. 

Com regularidade, o Porto convoca os poderes económicos e os seus nomes sonantes para a retoma dos vários episódios dessa espécie de permanente batalha virtual que mantém com Lisboa. E, com o tempo, mas sempre com o sobrolho cerrado, nas entrevistas e proclamações, o Porto lá vai conseguindo levar a água ao seu moinho de vento, melhorar o aeroporto, ter as suas novas pontes, o seu metro, as vias que o seu jogo de cintura interna é sempre capaz de arrancar.

Mas convém que fique muito claro: essa guerrilha política, nas formas curiosas, típicas e mediáticas que por vezes assume, não deixa de ter uma indiscutível legitimidade. Porque a verdade é que, neste país, continua a haver uma macrocefalia muito evidente em torno e em favor de Lisboa

A política e a Cultura

Os titulares da Cultura são, entre nós, uma espécie governativa com uma esperança de sobrevivência potencialmente escassa. O financiamento orçamental que é alocado ao setor é, desde há muito, bastante inferior às reais necessidades para satisfazer as esperanças dos vários lóbis. Alguns, com capacidade de movimentação nas franjas político-partidárias do poder, ainda conseguem assegurar umas linhas promissoras, mas genéricas, nos programas de governo. Esses grupos de interesses movimentam-se logo que chega um novo titular, na ânsia de serem eles, dessa vez, os beneficiados. Os governantes disfarçam quanto podem o óbvio “bluff” em que atuam e vão ganhando tempo junto dos agentes do setor, até ao momento em que, para alguns destes, fica muito claro que a manta está longe de poder cobrir todos e não vai abranger muitos. Entram então em processos reivindicativos - em si mesmos justos, porque foram iludidos nas suas expetativas - com forte cumplicidade dos media, onde, por natureza, encontram ecos de simpatia, facilitaos pela notoriedade de algumas das personalidades que são a cara do setor. Nessa altura, com um qualquer pretexto ou por desgaste, os titulares acabam por ser mudados e recomeça a dança. Esta é a minha visão. Corresponderá à realidade?

segunda-feira, maio 25, 2020

A sina dos diplomatas

Em democracia, um diplomata representa o Estado e executa as instruções que são emanadas dos governos que o voto popular escolheu para dirigir esse Estado.

Mas o diplomata não é um mero executante. À luz da sua experiência e da leitura que desta tenha extraído, ao longo dos anos que leva de serviço público, sobre aquilo que melhor defende o interesse nacional - que é algo que transcende os ciclos políticos -, deve ser criativo na sua tarefa de dar corpo à política externa do país, sugerindo caminhos, alvitrando formas de atuar. Mas, no derradeiro momento, deve obedecer às instruções definidas por aqueles a quem foi conferida a legitimidade democrática para decidir.

E se um diplomata estiver em desacordo com aquilo que o mandam fazer? Há duas hipóteses. Se acha que, ao executá-lo, isso fere a sua consciência ou valores limite, só lhe resta demitir-se e abandonar a carreira. Se se trata apenas de uma divergência de orientação, o diplomata tem obrigação de expor a sua leitura contraditória mas, se a decisão lhe for reiterada, deve cumpri-la, mesmo contra a sua vontade. E, ponto muito importante, a prova da lealdade de um servidor público está, não apenas no cumprimento das instruções recebidas, mas no estrito dever de não publicitar essa discordância.

Em quase quatro décadas de carreira, com 21 ministros dos Negócios Estrangeiros, algumas vezes houve em que, pontualmente, não estive de acordo com aquilo que me foi dito para fazer. Mas, em nenhuma dessas ocasiões, fiz algo contra a minha consciência.

Por que é que trago hoje esta questão? Porque acabo de ler uma carta dirigida pelo embaixador brasileiro em França ao jornal “Le Monde”, reclamando contra a cobertura crítica feita à situação da pandemia no Brasil.

A carta, compreensivelmente, defende a política de Bolsonaro. Quero crer que o argumentário deve ter chegado ao embaixador emanado da capital, dada a sensibilidade do tema. Mas devo dizer que me impressionou muito ver um profissional da diplomacia, embaixador num dos principais postos do mundo, oriundo de uma carreira que tem um património histórico de prestígio e qualidade, por sua iniciativa ou sob instruções, aceder a subscrever uma argumentação que, num determinado ponto, vai a este extremo: os governadores dos Estados brasileiros, quase esmagadoramente críticos da política de “portas abertas”, terão optado pela política de confinamento ou mesmo de “lockdown”, com o deliberado propósito de provocarem a destruição da economia do país, por forma a dificultar as condições para a reeleição do presidente em 2022. Como se fosse minimamente plausível que esses governadores, de vários partidos, se tivessem conluiado para arruinar a economia dos Estados que os elegeram! 

Assinar um pensamento tão mesquinho e absurdo como este não honra uma diplomacia como a brasileira. Tenho a certeza que muitos amigos que tenho na carreira diplomática do Brasil, patriotas e alguns até com iniciais simpatias por Bolsonaro, menos por ele e mais por rejeição da alternativa que se lhe opunha, devem ter ficado algo incomodados ao verem o bom nome do Itamaraty descer a este ponto.

Parabéns!


Hoje, celebram-se 98 anos de vida do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles.

Somos um país com muito poucas unanimidades. Ribeiro Telles faz parte das escassas figuras, em Portugal, que merece um generalizado respeito, pela sua obra profissional mas, essencialmente, por ter visto, antes de quase todos, a importância das questões ambientais para o nosso futuro coletivo e de ter tido a coragem e o desassombro de nos alertar para elas, num tempo em que fazê-lo era considerado uma bizarria, quase uma ideia ridícula e sem sentido.

Deixo aqui a minha homenagem a essa grande figura de cidadania que é Gonçalo Ribeiro Telles.

domingo, maio 24, 2020

Bolsonaro (2)

O baixíssimo nível do discurso de Bolsonaro, que um vídeo de uma reunião ministerial revelou, pode acabar por ter um efeito positivo junto do eleitorado que o elegeu. Na realidade, muitas dessas pessoas, que têm, elas próprias, uma linguagem e estão num patamar cultural não muito diferente daquele que ali ficou projetado, sentem, afinal, que têm um presidente que está próximo de si.

sábado, maio 23, 2020

Bolsonaro

Para melhor se entender o caráter da reunião presidida por Bolsonaro, de que há horas foi divulgado um vídeo, é importante ter presente que, num regime presidencialista como o brasileiro (ou como o americano, mas já não como o francês), não existe o conceito de um “conselho de ministros” que reúne todas as semanas, onde é aprovada legislação, como sucede em regimes como o nosso. 

Reuniões como a que agora foi mostrada, ocorrem apenas ocasionalmente e têm um caráter de coordenação política, delas não emanando qualquer decisão de natureza colegial. O conceito de colegialidade governamental não faz parte, aliás, do ordenamento constitucional brasileiro. Neste, cada ministro faz chegar ao presidente os projetos de legislação do seu departamento, através da Casa Civil da Presidência da República, a cuja chefia compete, em princípio, assegurar a coerência da ação governativa.

sexta-feira, maio 22, 2020

Eles ai estão!

 

Se fosse só assistir a jogos de futebol, um dos mais belos desportos do mundo, era excelente!

Mas não: vai ser uma enxurrada de verborreia dos comentadores, das imensas conferências de imprensa, das críticas dos dirigentes e treinadores aos árbitros, com a polícia, que devia ter coisas mais úteis para fazer, a ser gasta a controlar manadas de claques ululantes, raivosas de ódios, cheias de ultras e racistas.

E lá estarão - atentas, veneradoras e muito obrigadas - todas as televisões, a toda a hora, telejornais de quilómetro incluídos, subservientes aos poderes de facto, inventando peças, filmando treinos, alimentando as intrigas, com notícias repicadas do jornais desportivos.

Há por aí um país que estava sedento do regresso às trincheiras clubistas, morto por ouvir falar de bola, nem que seja naquelas emissões patéticas, em que não se vê nenhum jogo, mais apenas uns tipos a falar do que eles estão a ver e os outros não.

Só um país triste se alegra desta forma.

Quem tem capa...

Parece que passou a ser moda, nas redes sociais, inventar-se imagens falsas, dando-lhes uma aparência de plausibilidade. Esta semana acontece com a capa da Visão.

Há poucos dias, um outro vigarista gráfico alterou o rodapé de uma imagem televisiva, colocando um palavrão onde estava outra palavra. Foi um festim de difusão de algo que nunca tinha sucedido e que, a acontecer, poria em causa o rigor profissional dos responsáveis pela legendagem daquela estação.

Posso estar enganado, mas tudo isso tem muito a ver com um certo tipo de humor profissional alarve que por aí anda, que joga com as fronteiras da verdade e, claro, com a ignorância de muitos. E como parece que vivemos no reino da inimputabilidade e do vale tudo...

Nas redes sociais, há sempre gente para acreditar em tudo, e a regra é: “toca a fazer rapidamente ‘partilhas’ dessas vigarices, para mostrar como sou engraçado”. Em lugar de pôr de quarentena quem promove essas imbecilidades, a “cultura” deste mundo de graçola primária leva à difusão imediata daquilo que surge como insólito. Depois, se não for verdade, pronto!, não tem importância, olha!, afinal era falso...

Com a divulgação intensiva dessas imbecilidades, cada dia se abandalha mais a comunicação entre as pessoas, que este tipo de espaços de comunicação poderia proporcionar.

quinta-feira, maio 21, 2020

PCP


Sempre que se fala em remodelação na liderança no PCP, parte-se do princípio de que ter gente mais jovem à frente do partido significaria menor rigidez ideológica. Ora isso está por provar. Como igualmente não é certo que, se o PCP se tivesse “aggiornato”, ainda existiria hoje.

Brasil


quarta-feira, maio 20, 2020

Os medos da Europa


Há dias, ao selecionar livros para entregar a uma biblioteca, dei-me conta de que começava a dispensar dezenas de volumes sobre questões europeias. Tendo encerrado anos de experiência diplomática, e depois académica, a utilidade daqueles livros tinha desaparecido. Por ali estavam coisas desde os primórdios a tempos mais recentes da construção europeia. Alguns desses textos, na sua época, foram tidos como “definitivos”, pelo que, se houvesse tempo, teria graça serem comparados com a realidade superveniente. Mas não há tempo.

A Europa integrada é um ser mutante. Vai-se adaptando e procurando encontrar medidas capazes de protegerem os seus interesses, mas apenas pode fazê-lo quando constata ter condições para as consensualizar, o que se tem revelado cada vez mais difícil. Tem uma evolução não uniforme, aos “saltos” e por ciclos. Por isso, quando se fala do projeto integrador europeu, estamos, ano após ano, a referir-nos a coisas que vão sendo sempre diferentes. 

Do mesmo modo, as ambições iniciais nada têm a ver com aquilo que os Estados membros querem da atual União Europeia - e é hoje muito claro que nem todos querem a mesma coisa e, em certos casos, querem mesmo coisas que, não sendo à partida opostas, acabam por se opor. O aumento do corpo de políticas e da cobertura geográfica, esta com uma imensa diversidade introduzida, desenham uma realidade que torna o processo decisório muito mais complexo.

A experiência provou que, ao lado do grande catalisador de opiniões que foi o seu inegável sucesso como projeto de paz e de desenvolvimento, os temores – isso mesmo, os medos – tiveram um papel não despiciendo na construção europeia, pela positiva e pela negativa. 

Desde os receios que fundaram a Guerra Fria até às dúvidas traumáticas que se instalaram aquando da crise financeira, passando pelas tempestades de opinião criadas em torno do terrorismo, mas também dos debates sobre refugiados e migrantes, tudo mostra que, sempre de modo não linear, a Europa reage motivada por ciclos de temores. Foram esses temores que levaram os britânicos ao Brexit, foi o medo do Brexit que levou os restantes 27 a criarem uma eficaz frente negocial face a Londres.

Nos últimos dias, através da força motriz que, mesmo com altos e baixos, sempre foi o eixo franco-alemão, terá ficado gizada uma possível resposta aos efeitos devastadores da pandemia, num tempo político global que já era de extrema complexidade. Uma vez mais, a Europa parece ter acordado à beira do precipício. 

terça-feira, maio 19, 2020

Ai, Brasil!


Parece que o mundo ainda não se apercebeu da tragédia que está a atravessar o Brasil, com esta pandemia. Mais de 1.100 mortos, só hoje! Os números crescem exponencialmente, todos os dias.

Afinal...

É fácil constatar que alguns dos maiores alarmistas na questão dos ventiladores (que não faltaram a ninguém) coincidem com os que agora criticam as regras e o ritmo de desconfinamento. E são também os que mostram um evidente mal-estar perante o saldo político revelado pelas sondagens. É tudo tão simples, afinal...

segunda-feira, maio 18, 2020

O passado ficou lá


Há uns meses, lá por Vila Real, numa arrumação de férias, surgiu, creio que de dentro de uma mala, um maço de cartas, atado com fita. Aberta uma delas, constatei que ali se juntava correspondência entre o meu pai e a minha mãe.

Como o namoro entre ambos teve lugar, durante pouco mais de um ano, em Vila Real, onde ambos então viviam, presumi que a correspondência fosse da época em que o meu pai, durante um tempo que também não terá sido muito longo, esteve destacado a trabalhar em Monção. Nesse período, a minha mãe tinha continuado a viver em casa dos seus pais, em Vila Real. Por isso, as cartas trocadas entre ambos foram já depois de casados. Imagino mesmo que, em algumas delas, se falará da gravidez que deu origem a quem escreve este texto.

Escrevi “imagino” porque não consegui passar das primeiras linhas da carta que abri. Como filho único, senti que continuar nessa leitura era pura bisbilhotice, era um abuso de intimidade, a cujo luxo me não podia dar.

E não imaginam como eu gostaria de poder conhecer o que os meus pais diziam sobre as família de ambos, de ler notas de como viam o seu futuro, podendo agora confrontá-lo com o que, de facto, ele acabou por ser, de perceber como era afinal a sua vida comum nesse final dos anos 40, do que então pensavam e os preocupava, das dificuldades que eventualmente enfrentavam, enfim, do seu mútuo olhar sobre o seu mundo. Como eu nasci estando o meu pai ainda em Monção, e como a minha mãe escrevia bastante bem, imagino que deva haver belas descrições, embora enviezadas pela afetividade, sobre o seu “rebento”. Como é que eu “seria”, na visão da minha mãe?

Tenho uma grande curiosidade, mas, apesar disso, não vou ler as cartas. Os meus pais já morreram há bastante tempo. Não preciso de “aprender” mais nada sobre eles. O passado ficou lá.

O velho normal

A prova real de que o país entrou em desconfinamento é o regresso às manchetes dos jornais daquilo que ocupava os portugueses antes da chegada do vírus: o futebol e as presidenciais.

“Um espetro ameaça...”

A paranóia conspirativa, sobre o fantasma do “marxismo cultural”, que anda aí a excitar algumas meninges pouco dotadas, esconde uma realidade que esses setores não são capazes de reconhecer: é que, pelas bandas deles, não há muito para apresentar como alternativa pensante.

domingo, maio 17, 2020

José Cutileiro


Hesito sempre, quando penso em José Cutileiro, se destacar mais o genial criador dos “Bilhetes de Colares”, essas pequenas crónicas ficcionadas, supostamente da autoria de um inglês residente na Várzea, reformado dos serviços secretos e com um “caso” subliminar com um cabo do Exército, que lhe traduzia os textos e aconchegava os lençóis, escritos num português límpido e enriquecido por uma memória culta, atento como poucos às nossas idiossincrasias, ali refletidas de forma por vezes cruel mas, nem por isso, menos verdadeira, típica de quem, estando cá dentro, manteve o seu olhar por fora, se a figura pública, misto de interventor político e de personalidade académica, que terá ficado na memória da maioria de quantos apenas o conheciam pelo nome, em especial pelas suas informadas análises da situação internacional, para onde decantara anos de uma vivência atenta ao terreno global, com especial relevo para o trabalho mediador desempenhado nos Balcãs, ao lado de lorde Carrington, visão que nele sempre refletia um realismo cético, marcado por um sentido assumidamente pessimista dos rumos do mundo, quiçá fruto da sua passagem pela diplomacia, onde um dia acedeu por escolha política, para uma casa que o aceitou e que indiscutivelmente beneficiou da válida contribuição que ele lhe prestou, e que acabou por lhe induzir uma espécie de sentido do que é possível fazer com as coisas tais como elas estão, a ele que vinha de uma afetividade e de uma nostalgia óbvia pelos tempos em que a relação transatlântica fora o centro incontestado do equilíbrio geopolítico que protegia a nossa segurança, a que o fim da Guerra Fria começou por introduzir muita esperança para acabar por se consagrar, como hoje está, num ambiente de desconfiança, criando alguma orfandade não resolvida à Europa, de cujo instrumento político-militar formal, a UEO, ele foi o derradeiro secretário-geral, tarefa da qual saiu, com prestígio, para uma experiência universitária breve, cumulada ao seu sempre inteligente comentário público sobre os rumos do mundo, para as nótulas sobre o quotidiano e as suas histórias com os outros que deliciam no seu “Inventário” bloguista, bem como para os ricos obituários de figuras, algumas ignotas para quantos não faziam parte do mundo anglo-saxónico que era a sua nunca desmentida “praia”, escritas semanalmente no “Expresso”, num estilo que se distinguia por não usar pontos finais a sincopar o texto, o que, em jeito de homenagem, arremedo neste que aqui lhe dedico, na hora da sua morte, que hoje foi anunciada, com um beijo de pesar à Myriam.

sábado, maio 16, 2020

“Angola é nossa!”


Há uma imagem que me marcou. Um final de tarde, ou uma noite, em frente ao edifício do governo civil de Vila Real, com gente a discursar da varanda central. Eu tinha pouco menos de 13 anos e recordo-me de que fui ali com o meu pai. Era uma manifestação de repúdio pela tomada da então chamada Índia portuguesa, pelas tropas invasoras da União Indiana, ocorrida dias antes. Os discursos eram inflamados e, de entre os oradores, recordo-me do Dr. Carlos Sanches, professor liceal e, ao que creio, presidente da Junta Distrital. O meu pai também ali estava no meio da multidão, solidário com a forte rejeição do país perante a ação violenta que “nos tinha roubado” o Estado da Índia.

Poucos meses eram passados, ainda nesse mesmo ano de 1961, e guardo a imagem de ter visto marchar pela cidade, desde o Regimento de Infantaria 13 até à estação de caminho de ferro, o primeiro contingente que dali partia para Angola, em “missão de soberania”, como então se dizia. Tinham uma farda de caqui bege, com um boné de pala da mesma cor. A cidade aplaudia-os. Provavelmente, também o fiz.

O país tinha ficado visivelmente chocado com as imagens, abundantemente mostradas, de corpos de “brancos, pretos e mulatos” chacinados à catana, no norte de Angola, durante os ataques da UPA. Pela rádio, diariamente, chegavam-nos relatos, em tom épico de reportagem patriótica, através de uma voz inconfundível que descrevia essas atrocidades. “De Angola, Ferreira da Costa”, era assim que terminavam essas reportagens na Emissora Nacional.

Em minha casa havia unanimidade: desde o meu avô, que eu sentia como salazarista, de quem fora “condiscípulo” em Coimbra, até ao meu pai e aos seus cunhados, filhos desse avô, que detestavam o ditador. “Angola é nossa” era então a palavra de ordem indiscutível.

Faço estas notas para sublinhar algo que, às vezes, tem sido esquecido: nesse tempo, podia ser-se ferozmente anti-salazarista e, no entanto, ser-se a favor da manutenção das “possessões portuguesas no Ultramar “. 

Era o caso do meu pai, apoiante de Humberto Delgado, que ficou deliciado com a tomada do Santa Maria por Henrique Galvão, que teve forte pena de que Botelho Moniz não tivesse conseguido derrubar Salazar, que viria a lastimar que o posterior “golpe de Beja” se tivesse gorado. E que, no entanto, ficou indignado com a invasão do Estado da Índia e apoiou a reação militar portuguesa às “ações terroristas” em Angola.

Passados que foram esses primeiros tempos de choque, que foi muito genuíno, a captação emocional do país em favor da “guerra do Ultramar” começou a declinar. Não me recordo de mais nenhum ato de empenhamento “ultramarinista” significativo, lá por Vila Real, embora os deva ter havido, promovidos pelos apoiantes do regime. O início da mobilização militar dos civis, num ambiente político onde a aceitação da exaltação nacionalista já tinha tido melhores dias, viria a tornar a causa da guerra pouco popular em Portugal.

Mas voltemos um pouco atrás. Como é sabido, o republicanismo português havia sido, desde a sua origem, fortemente “colonialista”, tendo a palavra, aliás, uma conotação muito positiva no seu discurso. 

Da crise do Ultimatum à entrada na Grande Guerra, a questão do “Portugal pluricontinental”, por muito tempo, esteve no centro da doutrina republicana e, depois do 28 de Maio de 1926, nunca dividiu as forças oposicionistas da linha que prevalecia na “situação” consagrada pela ditadura. 

Vale a pena lembrar que, no final dos anos 40, a unidade das forças oposicionistas fez-se à volta de Norton de Matos, um general que se orgulhava de ser um criativo “colonialista”, tendo no seu orgulhoso currículo o governo de Angola. E, menos de uma década depois, essa mesma oposição juntou-se para apoiar Humberto Delgado, um general dissidente do salazarismo, que havia defendido desde a primeira hora, e a quem, à época, ninguém tinha ouvido uma palavra de contestação da política colonial do regime.

Só nessa segunda metade dos anos 50, com o surto de independências de antigas colónias europeias e, em especial, depois da Conferência de Bandung, em 1955, que se reuniu em torno dos novos países descolonizados, o PCP, seguindo a linha da URSS, passou a defender o direito à independência dos povos coloniais. Seria, aliás, a primeira força da oposição a fazê-lo. Porém, logo a partir de então, a linha anti-colonial tornou-se rapidamente maioritária no seio da oposição à ditadura, em especial na extrema-esquerda de orientação pró-chinesa, alargando-se depois aos meios católicos radicais, onde começou a germinar um discurso pela “paz” que viria a tornar-se muito popular.

Lembro-me, contudo, que, na Comissão Democrática Eleitoral (CDE) de Vila Real, ainda em 1969, que tinha uma natureza “catch all” de todos quantos se opunham ao Estado Novo, o tema era ainda bastante divisivo. O facto de um dos nossos candidatos ter afirmado que queria “manter o Ultramar português”, num discurso num comício, levou-me, uma noite, a provocar uma “crise” na CDE de Vila Real.

Quase até ao 25 de Abril, subsistiu, na vida política portuguesa, um setor oposicionista mais conservador, em torno do chamado Diretório da Ação Democrato-Social, que sempre se recusou a subscrever a postura anti-colonialista do resto da oposição. Após o 25 de abril, esse setor viria a aderir, quase em bloco, ao então PPD.

Apeteceu-me deixar hoje aqui esta nota memorialística dos tempos em que, também eu, cantei o “Angola é nossa!” Ninguém é perfeito!

sexta-feira, maio 15, 2020

Tristeza

Quem por aqui me segue, já terá percebido que a frequência regular das livrarias (que falta me fez, este ano, a Feira do Livro!) e as idas regulares com amigos a restaurantes - e a ordem pode tambem ser inversa, assumo-o, sem rebuço - fazem parte dos meus hábitos e prazeres mais arraigados e regulares.

Ouço agora que, com a “pancada” da crise, muitas livrarias entraram numa séria crise de existência. Leio que a “Barata”, da Avenida de Roma, que tem uma “história” e que, na sua atual encarnação, representou uma bela onda de modernidade na cidade, pode vir a encerrar.

Também vários restaurantes, em especial os mais pequenos, confrontados com a esperada relutância de alguma clientela em correr riscos e com a dificuldade de compatibilizarem um mínimo de rendimento com as novas regras sanitárias, entraram em crise, em certos casos, já definitiva.

Confesso que tudo isto me entristece.

“Remake”?

“Santana pediu dispensa de funções executivas no Aliança”, diz hoje a imprensa.

Há por aí presidenciais? Há muita gente cansada de Marcelo? Há quem fale em arranjar um candidato de direita que não seja o atual PR nem o homem do Chega?

Eu já nem digo nada!

Alma de ateu


Há dias, a propósito da dignidade inteligente com que a hierarquia religiosa lusitana geriu o 13 de maio em Fátima, em tempo de pandemia, a contrastar com o que parecia ser um exercício de ginástica rítmica na Alameda, deixei claro num escrito que fazia esse homenagem na minha qualidade de ateu.

Logo houve quem reagisse, dizendo que o termo era muito “desagradável”. Alguns disseram que usar “agnóstico”, embora não sendo sinónimo, seria talvez menos agressivo.

Ao longo dos anos, criei a firme impressão de que os crentes das várias religiões exigem, para si e para aquilo em que acreditam, um maior respeito do que aquele que estão dispostos a conceder aos que o não são.

Ora eu, que sou ateu, requeiro para esta minha forma de estar na vida exatamente a mesma consideração que tenho por quem segue uma religião, seja ela qual for. Não aceito a menor superioridade moral de ninguém, só por que acredita em algo que a mim nada me diz.

Sou ateu, desde que me conheço. A minha mãe era católica, embora apenas escassamente praticante. O meu pai, embora viesse de uma família com forte pendor anti-clerical, era claramente um agnóstico, com um grande respeito pelas referências católicas: em toda a sua vida, que foi muito longa, sempre o vi tirar o chapéu quando passava em frente a uma igreja ou a um cemitério.

Os meus pais casaram pela igreja e sempre existiram, lá por casa, símbolos religiosos. Batizaram-me, ato a que, como verifico pelas fotografias, fui já a pé, com mais de dois anos. Ao que o meu pai dizia, entre a brincadeira e o sério, terá sido a água gélida do batismo, que o bom do padre Domingos (que batizou, casou e fez o funeral de muitos dos meus familiares) usou na igreja de São Martinho, que me provocou uma pneumonia, que me ia levando desta para melhor (não extraiam da frase de estilo nenhuma ilação religiosa, por favor). Foi esse o meu último, embora involuntário, cruzamento pessoal com as liturgias católicas.

Um dos grandes mistérios da minha vida foi sempre perceber a razão pela qual nunca fiz a primeira comunhão. Tenho uma ideia muito vaga de ter andado na “doutrina” de uma tal Dona Maria Vilar, uma senhora pequenina que oficiava num primeiro andar da Rua Direita, lá por Vila Real, onde recordo haver uns pequenos bancos, uns mochos, onde nos sentávamos e vagamente recordo que, em coro, repetíamos orações. Um contemporâneo a quem falei há tempos do assunto, contrariou-me: ali aprendia-se a tabuada, não as orações. Não seria “dois em um”?

Algo se terá passado - talvez uma nova maleita, porque tenho ideia de ser então muito enfermiço - que levou a que eu não fizesse parte do grupo dos miúdos da minha idade que, nesse ano, fizeram a primeira comunhão.

Provavelmente, tendo faltado nesse ano, na vez seguinte já não fui chamado em grupo ao exercício. Mas, sem dúvida, isso também demonstra alguma falta de empenhamento familiar na minha aculturação religiosa, o que, segundo conversas mais tarde ouvidas lá de casa, teria sido para não contrariar o “menino”, filho único e muito voluntarioso, que se terá mostrado refratário a cumprir tal dever. A assim ser, com assinalável êxito, pelos vistos.

De uma coisa tenho quase a certeza: terei sido a única criança dessa geração vilarrealense que não “fez” a primeira comunhão. Mas a religião era, para mim, uma coisa alheia? Em casa, lembro-me vagamente de ter aprendido a “Avé Maria” e o “Pai nosso”, mas nunca cheguei a decorar a “Salvé Rainha”. Ah! E também me diziam que nunca me soube benzer, trocando sempre a sinalética, numa dislexia que, pelos vistos, tinha uma anti-doutrina por detrás.

Contudo, a questão da existência de deus não deixou naturalmente de se me colocar, a mim e a outros da minha geração. Recordo-me de um “teste”, arriscado e que só nos dias de hoje tenho como divertido, que, bem miúdos, fizemos, uma noite: caminhámos, de braços abertos para nos equilibrar, sobre a antiga pérgola que existia no miradouro atrás do cemitério (na imagem).

Lá do alto, olhando o despenhadeiro que ia dar ao Cabril, insultámos deus, com palavras fortes, desafiando-o a matar-nos, se acaso existisse. Como não matou e nós nos safámos, logo ali ficou bem provada a sua inexistência. Pelo menos, o meu velho amigo Olívio fez parte comigo desse ousado desafio ao poder celestial, aliás bem sucedido, sob o olhar próximo e sombrio dos mortos do cemitério de D. Dinis.

(Nós, à época, não tínhamos lido, em “A Capital”, do Eça, a cena coimbrã em que o Damião “deu cinco minutos a Deus para que o fulminasse, e, passados os cinco minutos num grande silêncio do Céu, atirar desdenhosamente o cebolão de prata para a algibeira, dizendo com tédio: “está superabundantemente provado que não há nada lá no Céu”)

Não sei se os outros comparsas dessas minhas aventuras de infância acabaram ateus. Eu, que já o era, mantive-me como tal, até hoje.

Por isso, embora não faça o menor proselitismo do ateísmo, exijo sempre para esta minha forma de estar na vida um respeito idêntico àquele que vou tendo pelos meus amigos crentes e pelas liturgias que lhes são próximas, a algumas das quais os acompanho, quando a vida, ou a morte, a tal exige.

A segunda morte do caixeiro viajante


Quando dirigi cursos universitários de preparação para candidatos à carreira diplomática, um dos conselhos que sempre dava aos aspirantes à profissão era evitarem responder, se acaso lhes perguntassem por que razão queriam ser diplomatas, que “gostavam de viajar”. Essa tinha sido uma recomendação que me tinha sido dada antes do meu próprio exame de acesso, pela má impressão que a resposta causava, porque associada a uma vocação apenas lúdica.

O “glamour” das viagens, tal como a vida social dos cocktails e receções, está no imaginário que o comum dos cidadãos liga à diplomacia. Não nego que isso tem alguma razão de ser, porque, de facto, esses aspetos faziam parte da coreografia da profissão. Escrevi “faziam” porque, com o decurso dos anos, a liturgia social foi-se atenuando, muito do protocolo foi-se aligeirando e a diplomacia cada vez mais se aproximou de uma comum atividade técnica, marcada apenas pela dispersão dos seus atores pelo mundo, comum a outras profissões.

Durante as décadas que permaneci na carreira, as viagens foram uma constante em certos tempos da profissão. A entrada de Portugal para as instituições europeias fez disparar as deslocações entre as capitais e Bruxelas. Mas se, no início da profissão, o cosmopolitismo das viagens tinha um aspeto sedutor, devo confessar que, nos últimos tempos, era bastante mais sofrido do que apreciado. O peso da burocracia e da segurança nos aeroportos, as distâncias entre estes e os hotéis, tudo isso foi convertendo as viagens de trabalho numa tarefa cansativa e incómoda, que, para muita gente, era cada vez menos ansiada. Mas não escondo que, por vezes, dar uma saltada a uma cidade diferente daquela onde vivíamos refrescava os dias e espairecia o quotidiano.

A vídeo-conferência raramente fez parte do meu tempo diplomático. Era um método pouco utilizado, obrigava a uma logística algo pesada e sofria de deficiências técnicas muito limitativas. De facto, não fazia parte da nossa cultura de trabalho. Curiosamente, só a vim a encontrar com maior frequência, e, mesmo assim, sempre como solução alternativa de recurso à prática presencial, nas atividades no setor privado que hoje exerço.

Com os efeitos previsíveis da pandemia que se instalou, há duas realidades que, claramente, vieram para ficar: vai passar a haver menos viagens de trabalho e o recurso aos meios de comunicação à distância tenderá a generalizar-se. Estes últimos, contudo, têm rapidamente que dar um “salto técnico”, porque, nas últimas décadas, a sua evolução foi muito escassa. O Skype de hoje é muito parecido com o que tínhamos há quase 20 anos e todas as outras plataformas similares, algumas que só conhecemos nas últimas semanas, têm ainda fortes defeitos, que se tornam incómodos e cansativos. Verdade seja que, muito rapidamente, temos também de interiorizar regras comportamentais próprias da gestão desse tipo de reuniões.

Mas sejamos honestos: ter uma reunião presencial, com pessoas à volta de uma mesa, ou ter uma sessão por vídeo-conferência, está longe de ser a mesma coisa. Nada, repito, nada substitui o contacto pessoal, da mesma forma que o telefone nunca foi um meio alternativo ideal do cara-a-cara. Há conversas e cumplicidades que, em especial na vida internacional, no lidar com gente de culturas diferentes, só se ganham com o diálogo frente a frente, com o copo no bar ao final do dia, com um almoço calmo e descontraído. 

Talvez o fim da banalização do “presentismo” acabe por valorizar mais as ocasiões em que as viagens e o contacto pessoal são, de facto, indispensáveis, fazendo-nos refletir duas vezes sobre se esta ou aquela deslocação não será, afinal, desnecessária. 

Uma sensível melhoria técnica nos meios de trabalho à distância talvez nos torne assim mais conscientes de que esse mundo de “caixeiros viajantes” executivos, trazendo à trela aquelas caixas com rodas, com as medidas da IATA, que cruzávamos aos milhares, entre aviões, por corredores sem fim, gerando um peso ecológico insuportável, tem mesmo de ir acabando.

quinta-feira, maio 14, 2020

As Seveiros


Há tempos, passei por aquela casa, de traça modernista, a caminho do Pioledo, nas traseiras do Colégio de São José, lá por Vila Real, perto do Núcleo do (meu) Sporting, e lembrei-me delas, das Seveiros.

Quem eram as Seveiros? Não sei, nunca as vi, mas a minha memória de infância guardou para sempre esse plural, algo majestático e misterioso, que designava umas senhoras (imagino que fosse mais do que uma) que eram, à época, as "modistas" mais qualificadas da cidade. "Mandou fazer o vestido nas Seveiros", dizia-se em Vila Real, como selo de qualidade garantida. 

(Vale a pena dizer que, para os homens, os alfaiates "a sério" eram, então, o Batalha e o Pontes. Este último, caprichava mesmo em anunciar os seus méritos nos altifalantes do Campo do Calvário, no intervalo do jogos, ou nas noites de passeio das famílias na Avenida, com duas quadras que ficaram na memória local: "Se quer um fato perfeito / de acabamento ideal / tê-lo-á, mas se for feito / no Pontes, Vila Real" ou "Se deseja no trajar / ser modelo em Trás-os-Montes / seus fatos mande talhar / pelas hábeis mãos do Pontes". Não sei quem foi o poeta, mas reconheçamos que era "inspirado", como então se dizia.)

Nesse tempo, nas cidades, havia as "costureiras" e havia as "modistas". Lembro-me que as primeiras iam "lá a casa". Todos os anos ficavam um dia ou dois, a subir ou descer baínhas, a fazer pequenos arranjos. Já às modistas eram as senhoras quem se deslocava, levando às vezes na mão um modelo tirado da "Modas & Bordados", outras vezes com uma página rasgada da "Flama" ou de alguma revista brasileira.  

De uma cena, que, sei lá porquê, ligo sempre ao final das tardes de sextas-feiras, me recordo bastante bem: as Seveiros enviavam a minha casa o produto do seu trabalho pelas mãos de uma miúda, com um tabuleiro coberto com um pano de linho, tendo no fundo uma nota manuscrita com os seus honorários, sem o IVA que o dr. Cadilhe inventou e que o dr. Centeno não dispensa. Lembro-me da miúda porquê? Porque tinha mais ou menos a minha idade e uns olhos que perdi de vista mas não de memória.

Voltando ao princípio: “as Seveiros” é um grande nome! Posso estar enganado, mas estou convicto de que, se o Eça tivesse "apanhado" o nome das Seveiros, tê-lo-ia usado num qualquer enredo de província.

quarta-feira, maio 13, 2020

Centeno


Mário Centeno está a ser vítima da conjugação negativa de vários fatores, o principal dos quais é a falta de peso político próprio. Este é um tempo muito injusto para alguém que foi um excelente ministro das Finanças e a quem o PS muito deve.

Agora, até pode chover...


Quando Rui Rio foi reeleito no partido, escrevi aqui que ele teria feito bem se tivesse anunciado logo o apoio à recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa. Não o fez, perdeu o “timing” e agora, quando (inevitavelmente) vier a fazê-lo, vai ter de ir a reboque.

"Então e o ... ?"

Agora, parece que anda na moda. Fala-se ou escreve-se sobre um determinado assunto e é certo e sabido que aparece logo um fabiano a dizer: ...