Há dias, na apresentação que fiz do primeiro volume do diário de Eugénio Lisboa, “Aperto Libro”, na livraria Ferin, contei um episódio passado em Londres, em 1993. Eu estava então ocasionalmente “encarregado de negócios” (isto é, chefiava a embaixada, na ausência do embaixador). O Eugénio - professor universitário, ensaísta e escritor, com vasta obra publicada - era ali Conselheiro Cultural, um cargo em que muito fez pelo prestígio da cultura portuguesa no Reino Unido, como fui testemunha privilegiada durante mais de quatro anos.
José Saramago tinha ido a Londres receber o prémio do “The Independent”, um importante galardão literário. Como todos nos recordamos, o escritor vivia então nas Canárias, numa espécie de “exílio” voluntário, e as suas relações com o governo de Cavaco Silva eram as que se sabe.
Sem a menor instrução do meu Ministério, fiz o que entendi melhor na ocasião. Além de estar presente com Eugénio Lisboa na sessão de entrega do prémio, convidei Saramago para fazer uma palestra na embaixada, com edição de uma tradução desse texto em inglês, evento para a qual convidei umas dezenas de interessados locais na obra do escritor. No dia seguinte, não querendo utilizar a residência oficial, na ausência do embaixador, ofereci-lhe, bem como a Pilar del Rio, um almoço num belo restaurante da moda (propriedade de Michael Caine, que, recordo, por ali andava nesse dia), com algumas figuras da nossa comunidade intelectual em Londres, como Paula Rego, Bartolomeu Cid dos Santos, Helder Macedo, Luís de Sousa Rebelo e, da embaixada, Eugénio Lisboa e Rui Knopfli.
Era já então evidente que a relação entre Saramago e Eugénio Lisboa era marcada por uma certa tensão, mas, talvez um pouco ingenuamente, julguei que o desinteressado apoio proporcionado pela embaixada ao escritor, ainda por cima correndo nós alguns riscos aos olhos do governo, pelo acolhimento proporcionado, teria atenuado as coisas. Enganei-me, como se verá.
Passado que foi sobre a visita creio que um ano, num dos primeiros volumes dos “Cadernos de Lanzarote”, Saramago descreve essa sua estada em Londres de uma forma muito pouco simpática para as pessoas da embaixada e, em especial, para o Eugénio Lisboa - cujo evidente empenhamento no sucesso da visita tinha sido ainda mais meritório, se tivermos em conta a sua completa falta de empatia (e isto é um “understatement”...) com o escritor. Todos ficámos chocados por ver, em letra de forma, uma leitura francamente distorcida do que, afinal, tinha sido um ato profissional muito correto.
Profundamente indignado, em face do que Saramago publicara, nomeadamente um episódio que envolvia umas passagens aéreas, Eugénio Lisboa decidiu divulgar por várias pessoas uma violenta ”carta aberta” ao escritor, que viria a ser publicada tempos mais tarde. Recordo-me que o embaixador Vaz Pereira, posto por mim ao corrente dos factos, não apreciou muito a divulgação da “carta aberta” mas, lá no fundo, creio que compreendeu o gesto de Eugénio Lisboa.
No que me tocou da história, fiquei naturalmente desagradado com o modo como Saramago tratou a embaixada, bem como a sua injusta leitura do meu próprio papel na visita. E fiz-lho saber, por amigos comuns. A questão acabaria por ficar ultrapassada entre nós: “reconciliámo-nos” num jantar em Nova Iorque, uma década depois, e mantivemos, a partir de então, uma boa relação, reforçada mais tarde no Brasil. Ainda o tentei convencer ir a França, mas foi tarde.
O volume do diário de Eugénio Lisboa que apresentei no dia 5 na Ferin não abrange ainda o ano de 1993, mas nem por isso Saramago (como outras tantas figuras, diga-se) sai dele incólume, embora neste caso por outros motivos. Aguardemos um próximo volume...
Eugénio Lisboa é um homem de ideias fortes, sólidas, fundadas, com opiniões que cuida em não esconder, com uma frontalidade e uma honestidade de atitude muito raras. Nesse domínio, faz parte de um Portugal intelectual que, infelizmente, está a desaparecer. Lê-lo é ter o gosto de regressar a esse que foi um tempo magnífico das grandes polémicas intelectuais, de que, devo dizer, sinto hoje alguma falta.
Foi para mim um imenso prazer apresentar esta obra do meu amigo Eugénio Lisboa, uma grande figura da nossa cultura que admiro e respeito.