sábado, dezembro 15, 2018

A fezada


Foi em finais de 2004. Eu estava a escassos meses de ir chefiar a nossa embaixada em Brasília. Numa noite, na minha casa em Viena, recebia um casal amigo - amigos de há muitos anos. Embora vivêssemos na mesma cidade, as nossas muito diferentes vidas faziam com que raramente nos encontrássemos.

Nesse jantar, pressenti, desde o início, que nos queriam dizer alguma coisa de especial. E assim foi. “Entre la poire et le fromage”, como dizem os franceses, naquele momento das refeições em que se abrem as “hostilidades” para os assuntos que as motivam, ele perguntou-me: “Diz-me lá uma coisa: tu ainda continuas a acreditar apenas naquilo que vês?” Dei uma gargalhada e disse-lhe: “Claro e, às vezes, nem mesmo no que vejo... Mas por que é que fazes essa pergunta?”

Notei que eles se entreolharam e ele prosseguiu: “Continuas então a não acreditar no sobrenatural, não é?”. Ele conhecia-me há mais de trinta anos e sabia que eu era, desde sempre e em absoluto, imune a crenças de qualquer natureza, sem nunca ter tido na vida a menor inquietação mística, nem a mais leve vocação para aceitar nada para além do óbvio. Comecei a intrigar-me com a questão mas ele deu-me, logo a seguir, uma excelente razão para ficar exultante: “Vou-me aposentar e vamos viver para o Brasil”.

Olhámo-los com surpresa, satisfeitíssimos com a notícia e ainda mais ficámos quando nos disseram que se iam instalar bastante perto de Brasília. Ia ser excelente! Talvez ali tivéssemos uma oportunidade de nos encontrar mais vezes, nós que, quase um quarto de século antes, havíamos sido as testemunhas do seu casamento civil.

Porém, dentro de mim, ficou instalada uma interrogação: por que diabo tinha surgido aquela questão religiosa? O que é que isso podia ter a ver com a ida para o Brasil? Tinha tudo, como logo se concluiu. Esses amigos tinham decidido vender tudo e ir abrir uma “pousada” (o que, no Brasil, significa uma espécie de pensão ou pequeno hotel) numa pequena vila a umas dezenas de quilómetros de Brasília. E isso estava, em absoluto, ligado ao “sobrenatural”.

Foi então que ele nos contou, fitando-me de frente, já antecipando o meu ceticismo, que ambos haviam tido uma experiência excecional. Perante um problema de saúde que ele tinha tido, fora aconselhado a deslocar-se à localidade de Abadiânia, para consultar uma figura que fazia curas extraordinárias. No seu caso, havia sido “operado ao coração”, sem qualquer incisão no corpo, apenas pelo trabalho exterior de mãos dessa figura. E ficara curado! Desde então, ambos haviam decidido mudar-se para lá, ligar-se profundamente a esse projeto.

Eu procurava, com o maior cuidado, nem ser hipócrita, fingindo que acreditava naquilo, nem ser jocoso, deixando fluir a minha total incredulidade, que ia muito para além daquilo que ele me contava. “Já sei que não acreditas em nada disto, não é? Deves achar-nos uns tontos...”. Pelo plural utilizado, concluí que ela também acreditava em pleno. Assim era. Eu fazia o meu melhor para descobrir o registo certo para me manter sério na conversa, que descambava para pormenores cada vez mais inverosímeis. Devo, entretanto, ter ido buscar mais gelo para o whisky ou coisa assim...

“To make a long story short”: eles tinham-se convertido em fãs incondicionais de João de Deus, a figura que transformou Abadiânia num conhecido local de romagem de milhares de pessoas à procura de curas milagrosas, com carrinhas diárias que saíam do aeroporto de Brasília, oriundas de todo o Brasil e cada vez mais dos Estados Unidos. E iam viver para junto dessa figura de “medium”, abrindo uma “pousada” como suporte de vida.

Partimos para o Brasil poucos meses depois daquele jantar. A curiosidade motivou-me a visitar Abadiânia, logo após a nossa instalação. Era um lugar sinistro, uma vilória sem a menor graça, no meio de um espaço árido e poeirento. Mas por lá pululavam, em direção ao endereço de João de Deus, imensas viaturas, com alojamentos em crescendo por todo o lado.

Lembro-me bem que telefonei, nesse momento, ao meu amigo, para a Áustria, de um “boteco” no meio da vila: “Estamos a passar em Abadiânia. Lembrámo-nos de vocês”. Não senti que tivesse ficado muito entusiasmado com o meu contacto, mas levei isso à conta de achar que eu poderia estar “a gozá-lo”.

Desde Viena que sabíamos que eles só iriam uns tempos mais tarde. Porém, um dia, recebi dele um telefonema a informar-me de que, afinal, haviam desistido de se mudar para o Brasil. Aparentemente, sem que mo explicitasse, algo se teria passado que os teria, entretanto, feito desiludir da figura de João de Deus. Nunca soube exatamente o quê. Voltámos a encontrar-nos anos mais tarde e o assunto nem sequer veio à baila da conversa. E eu achei melhor não o suscitar. Ele, entretanto, já morreu. Era um excelente amigo.

Ontem, li na comunicação social brasileira que João de Deus foi detido, acusado de algumas fortes patifarias. Aquele meu amigo podia ter perdido a “fezada” que nele tinha, mas, durante os anos em que vivi no Brasil, posso testemunhar que encontrei gente altamente qualificada - ministros, deputados, diplomatas, empresários - que me asseguraram, sem a menor sombra de dúvida, a sua admiração extrema pelo “medium” de Abadiânia, com uma confiança inabalável nas suas capacidades curadoras. Não me parece que a sua prisão reverta essa admiração.

1 comentário:

Anónimo disse...

Na zona de Benfica andava há pouco (22:30!!!) alguém a circular rezando o Avé Maria com recurso a um megafone. Este também devia ser preso!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...