quarta-feira, novembro 28, 2018

Enganei-me


Há três anos, para surpresa de alguns, coloquei reticências à fórmula encontrada por António Costa para envolver forças políticas mais à esquerda no apoio a uma solução minoritária de governo do PS. 

Havia três razões para os meus receios. Por um lado, o efeito externo que essa solução poderia vir a desencadear nos mercados económicos e financeiros, com impacto na recuperação da débil situação portuguesa. (Há quem se esteja “nas tintas” para os mercados, mas essas pessoas fazem parte de quantos sabem que nunca terão a responsabilidade de garantir a subsistência financeira do país). A segunda razão tinha a ver com a fiabilidade dessas mesmas forças políticas, no suporte a um executivo que se previa fosse defrontar, como defrontou, a acrimónia de quem se sentia desapossado do poder. (Também sei que algum tropismo ideológico considerava isto uma irrelevância, porque a “maioria de esquerda” era o seu sonho eterno, “e depois logo se veria”). Acrescia, finalmente, a imprevisibilidade de um novo presidente da República, cuja base natural assentava em quantos então regressavam à oposição.

As coisas correram bastante bem. Surfando uma conjuntura europeia e internacional favorável, António Costa cumpriu a promessa de respeitar os compromissos financeiros que Portugal tinha subscrito na Europa. (Claro que há quem ache que o país deve “romper” com aquilo que assinou, porque a irresponsabilidade é um produto barato, mas o barato quase sempre sai caro). Os parceiros foram, no essencial, fiéis àquilo que tinham garantido, da mesma forma que o governo, pagando algum preço político (no caso das reversões das privatizações, por exemplo), mostrou cumprir com a palavra. O presidente foi uma agradável surpresa: demonstrou sentido de Estado e elevado espírito de cooperação. 

O parlamento estava assim certo quando escolheu este modelo. Pelas sondagens, concluir-se-á que o país, maioritariamente, está satisfeito. Eu estava errado.

Há dias, passou o 25 de novembro, data que, estranhamente, alguns teimam em erigir em trincheira com que pretendem fazer uma leitura “autêntica” do 25 de abril. É uma atitude típica de vencidos inconsoláveis, de saudosos de algo que afinal, os reais vencedores daquela data não deixaram que acontecesse: a ilegalização do PCP. Na realidade, ver hoje as forças políticas que um dia foram tentadas por uma via revolucionária integradas numa solução democrática e constitucional de governo é talvez a verdadeira vitória do 25 de novembro.

8 comentários:

Luís Lavoura disse...

De facto, esta legislatura tem sido das mais estáveis que Portugal já teve. Tão estável que, em muitos dias, os noticiários têm estado completamente sem tema, tal a placidez com que corre a vida política.
Lembremo-nos que a legislatura anterior foi tudo menos exemplar, com uma grave crise política a meio.

aamgvieira disse...

Realmente enganou-se:

António Costa é o campeão do "com a verdade me enganas", porque usa números bons para criar uma realidade doirada que na verdade não existe. Mas o que está a despontar é uma espécie de cauda do diabo de que a esquerda tanto fez troça.

Diógenes disse...


António Costa, tem sido muito hábil na gestão politica do seu governo. Tem conseguido apropriar-se de muitas causas da direita, retirando-lhe margem de manobra. A esta só resta a esperança que apareça no horizonte um qualquer Bolsonaro em versão portuguesa…..

Reaça disse...

"Na realidade, ver hoje as forças políticas que um dia foram tentadas por uma via revolucionária integradas numa solução democrática e constitucional de governo é talvez a verdadeira vitória do 25 de novembro".

Foi cumprido o 25 de Novembro com a geringonça?

Se sim, concordemos, e agradeçamos a este "estranho" Costa.

Joaquim de Freitas disse...

« Mas o que está a despontar é uma espécie de cauda do diabo de que a esquerda tanto fez troça.”

Escreve o Sr. aamgvieira. Quase como um profundo e secreto desejo que o diabo seja mau !

E creio que tem razão; Nos tempos que vivemos, no mundo inteiro, a probabilidade que tudo vá mal é altamente possível…

Claro que algumas perspectivas não são necessariamente todas “rosa”, como a cor do Sr. António Costa…

Um aquecimento global impossível a travar, desastres naturais cada vez mais violentos, uma 6ª extinção em massa em curso causada pela influência do homem no seu ambiente, o quebra-cabeças agronómico que representa a alimentação de 10.000.000.000 de seres humanos.

Acrescente-se a isso a omnipresença do plástico, o improvável futuro dos resíduos nucleares, e uma inteligência artificial galopante que irá gradualmente substituir os nossos empregos. O colapso está à nossa porta, bem-vindo ao próximo mundo.

Mas, tendo lido frequentemente o Sr. aamgvieira, não creio que é nesta “cauda do diabo” que pensa …
Tenho a impressão que o “ sistema “ de governança conhecido como “geringonça” enerva muitos na minha Terra natal…Que ainda dure é qualquer coisa que ultrapassa todos os prognósticos. Mesmo o nosso ilustre Embaixador confessa que se enganou… Claro que nem todos têm a ciência da Pythia.

Também é um facto que a “geringonça” é um sistema híbrido, num sistema económico capitalista. O capitalismo não é um sistema, é um meio sistema. Sem a outra metade, tão essencial que a segunda perna para andar, chama-se o liberalismo.

Uma pretende-se económica, a outra política, e os dois pretendem-se separados e independentes mas apesar de todo o aparelho posto em movimento para nos fazer crer, a população não se deixa iludir. Daí algumas fricções com a cauda mais à esquerda…

A palavra"capitalismo" designa um objecto muito complexo, mesmo se provém de princípios muito simples. Pode dizer-se que é um objecto muito parecido com a Lua. A Lua tem uma face luminosa e uma face sombria, que nunca se vê. O capitalismo é a mesma coisa, porque nos mostra sempre a sua face luminosa: a capacidade de produção maior, o crescimento económico, a realização de proezas tecnológicas, as prodigiosas vitórias do Homem sobre a natureza, e todos os avanços do liberalismo (democracia, direitos e liberdades da pessoa, etc.).

Tudo isso é bem real e tudo isso compõe a imagem iluminada do capitalismo. E portanto, a sua face sombria concerne sempre muitos mais humanos que a sua face luminosa. Os direitos e liberdade dos pobres, e sobretudo os dos países mais pobres onde o capitalismo é entretanto muito bem implantado, restam uma total abstracção que se deve ignorar para poder repetir os nossos gloriosos discursos.

Pois bem: os princípios de base do capitalismo e do liberalismo limitam-se a dois, a liberdade (individual) para o liberalismo e a propriedade (privada) para o capitalismo, mas na realidade, estes dois princípios resumem-se num só: é a liberdade de ser proprietário, ou como se diz, a liberdade da raposa no galinheiro.

E é talvez isso que irrita a direita e portanto os inimigos da”geringonça”: é que no seu sistema híbrido coabitam alguns comparsas radicais que têm um olho fico na raposa, o que evita que esta coma todas as galinhas…pois que já come algumas indevidamente!

APS disse...

Desculpe-me o desvio do tema da sua "mea culpa", senhor Embaixador, mas este Vieira Sacarrabos é um cómico impagável e divertido. E eu não podia deixar de sublinhar a sua tendência zoológica especializada.

aamgvieira disse...

"Quem ri por último ri sempre melhor", infelizmemente neste caso..!

A Nossa Travessa disse...

Meu caro Franciscamigo

Estava em Badajoz - onde fui acertar as datas dos Cursillos de Verano que regularmente ali dou sobre o tema de Língua e Cultura Portuguesas, não por especial mérito mas porque o castelhano é a minha segunda língua (já estou a ver alguns Bolsonaros à portuguesa a chamar-me traidor...) - quando publicaste este artigo.

Por isso só agora venho , aliás uma vez mais, dizer-te que concordo 198,7% (???) com o que escreves.

Segue um abração deste teu amigo e admirador
Henrique, o Leãozão��

NB - 1) E o Keizer? Pelo andar da carruagem parece que acertámos! e
2) Ao Senhor Vieira recomendo (se fora médico receitava) umas quantas Rennie

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...