sexta-feira, novembro 03, 2017

Carta ao Dinis


Conheci-te muito pequeno, em Paris. Eras irrequieto e vivo. Temi sempre pelos “bibelots” da minha casa quanto os teus pais anunciavam que te traziam para jantar. Tenho um belo pato de lápis-lazúli que te divertias a revirar, sob o meu olhar inquieto e a calma irritante deles. Lembro-me agora de ti, ao ver aquela peça que te sobreviveuEras um miúdo inteligente, que se passeava de pijama, por entre nós, nos encontros na residência da delegação portuguesa junto da Unesco, onde o teu pai era embaixador. Recordo, por aí, noites de conversas muito agradáveis, com a vossa família e alguns amigos, naquela que, por essa época, tenho a certeza de que não era uma felicidade fingida.

O teu pai, Dinis, tinha sido meu colega de governo, durante alguns anos. Foi um ministro que deixou marca na nossa Cultura. Estávamos longe de ser íntimos, mas entre nós passou uma corrente de simpatia e estabeleceu-se então uma boa relaçãoCuriosamente, coincidiu irmos viver para Paris na mesma altura, ele como “embaixador político” (coisa de que os diplomatas profissionais não gostam muito) na Unesco, eu para embaixador em França. Demo-nos sempre bem, nesses dois mundos separados que cada um tinha a seu cargo.

Foi já em Paris que conhecemos a tua mãe, de quem, instantaneamente, ficámos amigos. A vedeta que víamos na televisão era uma mulher encantadora, simples, criadora de um ambiente magnífico à sua volta. Nesse tempo, tudo se passava ao lado de um homem com quem a vida parecia um mar de felicidade, de que tu, Dinis, aos nossos olhos, eras a prova provada.

nossa história convosco, com essa família serena, num ambiente de bem-estar, contigo e com o teu sorriso traquina pelo meio, ia terminar ali. Ainda vimos nascer a tua irmã, para logo começarmos assistir às novas atribulações em que o teu pai se iria envolver, no mundo da diplomacia e da política. Lembro-me dos esforços que fiz para tentar ser tão útil à diluição de algumas tensões quanto o meu estatuto permitia. Sem grande sucesso, confesso.

Um dia, percebi que a felicidade familiar que tinha testemunhado em Paris tinha acabado. Lisboa, para onde todos tínhamos entretanto regressado, enchia-se de rumores que eu procurava ter razões para não aceitar como verdadeiros. Achava então que era a obsessiva especulação mediática que empolava as coisas. Parece que, afinal, eu estava enganado.

Caro Dinis, nem sei bem o que te diga, por estas horas. A ti, como à tua irmã, só posso desejar que o futuro vos poupe, quanto puder, às memórias traumáticas de um tempo estranho que vos foi dado vivernum quadro de tensão, conflito e violência. Só gostaria que o vosso destino não ficasse definitivamente refém dos anos tristes por que estão a passar.

quinta-feira, novembro 02, 2017

O solo do Coroliano



Ontem, soube que o meu velho amigo Coroliano Gonçalves Clemente está com problemas graves de saúde. O Coroliano, filho do senhor Clemente, polícia, era um dos meus companheiros de aventuras, nos últimos anos do liceu em Vila Real.

Lembro-me de ele ser um garboso graduado da Mocidade Portuguesa, ramo de atividade pelo qual nunca fui tentado a enveredar. Estou a vê-lo, mangas da camisa verde arregaçadas, sobre as calças castanhas, botas de Vanguardista, com os galões de Comandande de Bandeira (categoria abaixo de Comandante de Falange e acima de Comandante de Castelo - algumas das hierarquias dessa associação onde eu nem sequer tive interesse de chegar a Chefe de Quina). 

O Coroliano era um pouco mais velho do que eu e, contrariamente a mim, fez vida por Vila Real. Alto, sempre um pouco curvado, fomo-nos cruzando e dando abraços de reencontro, ao longo dos anos, nas minhas visitas à cidade, onde ele era bancário, ali ao lado da Sé. Mas já há muito que o não vejo.

Por essa primeira metade dos anos 60, nas aulas de “Canto Coral”, o Coroliano, o Edmundo, o Chico Abel e eu criámos um “núcleo” que se colocava estrategicamente no topo do auditório e que se dedicava a desenvolver um processo de desestabilização das aulas. O professor era uma figura pequena, de seu nome Mário Neves, a quem dávamos, sei lá bem porquê, o nome de Quelhas. Lembro-me de que o Quelhas, uma figura pequena e lingrinhas, tinha uma Isetta, um patusco e minúsculo carro, cuja porta de abria pela frente. Por qualquer razão, o Quelhas, visivelmente, detestava-me, talvez porque eu teimasse em desinquietar as aulas e em rir à sua passagem. Fui expulso duas vezes das aulas do Quelhas.

Um dia, esse nosso “núcleo” aproveitou uma pausa na aula e testou uma breve canção que eu tinha aprendido com um amigo da família, e que há dias ensaiávamos nos intervalos. Na altura eram muito vulgares, na televisão, os grupos, em especial americanos, que cantavam “a capela”, sem música. Acho que nos inspirámos neles. A curta letra da “canção” que eu trouxera não era notável: “O circo desceu à cidade / numa tarde de imenso calor / trazia focas e ursos / e até um grande domador”. Depois, separadas as palavras com ênfase, dizia-se: “Mas / a principal atração / era o rapaz do trapézio voador / que num salto de grande emoção / se estatelava com grande fragor”. O Coroliano tinha-se especializado, entre o “grande emoção” e o “se estatelava”, a produzir na madeira da bancada em frente dos nossos assentos, um “solo” de imitação de bateria, para criar “suspense”. O Quelhas, tomado de surpresa pela ousadia, tinha deixado prosseguir a cantoria mas irritou-se com o “solo” do Coroliano, que levou à conta de gozação. E pô-lo “na rua”. 

Foi o bom e o bonito! O pai do Coroliano, embora já aposentado da polícia, mantinha toda a “doçura” inerente à profissão e sabia-se que, logo que soubesse da expulsão do filho, ia ter uma reação irada. Foi necessário uma “delegação de meninas” ir implorar ao Quelhas que “limpasse” a falta ao Coroliano, caso contrário o senhor Clemente dar-lhe-ia “um enxerto de criar bicho” (espero que as novas gerações entendam isto). A diligência teve sucesso, o Quelhas recuou e, pasme-se, autorizou mesmo a que, na aula seguinte, repetíssemos a “performance”, que recolheu fortes aplausos. Mas o historial do “quarteto” esgotou-se, para sempre, nesse minuto de glória.

O Coroliano, nesse dia legitimado pelo Quelhas, fez o seu “solo” manual na madeira com um garbo nunca visto. Não sei se ele ainda se lembra desse momento da nossa fátua glória, mas anoto-o aqui com um abraço de forte amizade, agora que a vida parece que lhe está a pregar uma partida, desta vez sem qualquer graça.

José Carlos de Vasconcelos


Foi num “convívio”, nome que então se dava a eventos culturais organizados pelas associações de estudantes, no final de 1968, no palacete da Junqueira, onde então funcionava o ISCSPU, que me cruzei pela primeira vez com José Carlos de Vasconcelos. O Zé Carlos (como nos dias de hoje o trato) tinha ido com o Tóssan (quem se lembra dele?) ler poesia aos estudantes que nós éramos. Tratava-se, com certeza, dos belos panfletos rimados que o neo-realismo então proporcionava, para animar as hostes e, subliminarmente, ir acendendo o rastilho que, seis anos depois, nos traria a liberdade. Caramba, já passou quase meio século!

José Carlos de Vasconcelos era já então um jornalista prestigiado, que iria fazer o seu curriculum no “Diário de Lisboa”, no “Diário de Notícias”, em “O Jornal” e, depois, na “Visão”. Antes, fora dirigente universitário em Coimbra, onde se licenciou em Direito, formação que lhe permitiu manter, simultaneamente, uma carreira de advocacia, durante a qual, nomeadamente, defendeu presos políticos da ditadura. Nos anos 80, fez uma incursão pela política ativa, sendo deputado pelo PRD.

O Zé Carlos e eu fomo-nos vendo e conhecendo melhor ao longo da vida, mantendo um contacto esporádico mas sempre muito cordial, construindo mesmo uma amizade que hoje também nos leva a trabalhar em conjunto numa instância da Fundação Calouste Gulbenkian. Às vezes, tenho conseguido corresponder aos seus cíclicos pedidos para colaborar no seu “JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias”, mas, aqui entre nós, a minha vida nem sempre me tem permitido estar à altura desses seus generosos convites. Vou tentar mais e melhor, no futuro, prometo.

Há uma década precisa, num colóquio na Casa Fernando Pessoa, em que ambos participávamos a convite de Inês Pedrosa, fiz notar que estavam três embaixadores no nosso painel. A sala ficou perplexa, porque só contava o embaixador Lauro Moreira, representante do Brasil na CPLP, e eu próprio. Expliquei que o terceiro embaixador presente se chamava José Carlos de Vasconcelos, “embaixador da língua portuguesa”, alguém que, com persistência e uma dedicação sem paralelo, mantinha o JL como um magnífico elo de ligação entre todas as culturas que se expressam em Português. Disse-o, não como uma flor de retórica ou para ser simpático para com o Zé Carlos, mas porque, muito sinceramente, mantenho por ele e pela atividade que desenvolve uma imensa admiração e respeito. 

O Zé Carlos tem hoje todo o reconhecimento que poderia desejar ter, de Portugal ao Brasil, passando pelos países africanos de língua portuguesa, por Timor e Macau. Escrevi “poderia”, porque a sua modéstia condu-lo a não procurar as ribaltas que a qualidade da sua ação plenamente justificaria. O seu jornal, ao longo das dezenas de anos de vida (difícil) que leva, é hoje um arquivo ímpar dessas culturas e de quantos cuidam em cultivá-las e ligá-las. Quem dera que fosse possível mantê-lo assim no futuro.

Esta nota, neste momento, tem uma justificação de oportunidade. É que o José Carlos de Vasconcelos acaba, muito justamente, de receber uma nova distinção, desta vez o Prémio cultural Vasco Graça Moura, sucedendo ao primeiro galardoado, Eduardo Lourenço. Imagino que ele o receba com aquele seu sorriso jovial, aquela forma simples de se apresentar ao serviço na vida, simultaneamente atenta e viva, numa espécie de juventude eterna que visivelmente lhe dá o ânimo para continuar a sua bela tarefa de cidadania cultural.

Um forte abraço, Zé Carlos! 

quarta-feira, novembro 01, 2017

Índios e outras cowboiadas


Há dias, contei por aqui um episódio passado no Teatro Sá de Miranda, em tempos de antanho. Com o Cine Palácio, essa sala foi, por muitos anos, uma das duas salas de cinema de Viana do Castelo.

O meu amigo Francisco Trindade Lopes, que meia Viana de outros tempos conhece como o Chico Rendeiro, desportista mítico da cidade, lembrou, em comentários feitos ao meu post no Facebook, duas notas complementares, que ajudam muito a ilustrar o espírito da época. Achei que era pena esses comentários perderem-se, pelo que os destaco aqui.

A primeira é passada no Sá de Miranda. A gente de poucas posses ia lá para cima, para o designado balcão. Um dia, num filme de cowboys, quando a atriz estava a tomar banho numa daquelas banheiras curvas, alguém, lá de cima, do dito balcão, disse em voz alta, para despertar a inveja da plateia, teoricamente não beneficiada com uma perspetiva do interior da banheira: “daqui é que se vê bem, c....!”

O segundo prende-se com o cinema Palácio, que era a sala de cinema por excelência da cidade. A sala estava dividida, quer física quer socialmente. Quem tinha algum estatuto social ia para os camarotes, que deviam ser dez, para a tribuna e, a seguir, para a plateia. Dividida por um fosso, ficava a geral, frequentada sobretudo por gentes da Ribeira. Quando eram exibidos filmes de cowboys ou de capa-e-espada, a geral enchia. Quando índios e cowboys se defrontavam, o pessoal, na brincadeira, no dia seguinte, comentava: “ontem, na geral, no Palácio, morreram dois gajos na fila da frente, por causa das flechas. Não se pode ver estes filmes de tão perto!”

Os dias da Catalunha



O saldo do conflito na Catalunha, até ao momento, parece confortar a estratégia do governo espanhol. Tudo indica estar a decorrer como o executivo de Madrid desejaria, desde o modo surpreendentemente pouco conflitual como se processa a implementação do artº 155 da Constituição, até à sujeição (também bem mais fácil do que seria provável) das forças independentistas ao modelo eleitoral de dezembro, passando pelo (mais expectável) comportamento dos atores judiciais e pela “ajuda” dada pelo comportamento menos curial de Puigdemont. Como cereja no bolo, as ruas catalãs encheram-se no passado fim de semana de gente, com uma dimensão sem precedentes, para recusar a secessão.

A declaração de independência acabou por não ter nenhuma sequência institucional sustentável e a atitude do chefe do governo catalão, quer na véspera da declaração, quer nos momentos subsequentes a ela, revelaram ao mundo uma figura indecisa e errática e, mais do que isso, sem um carisma capaz de levar atrás de si, sob uma orientação clara e determinada, o conjunto de forças que antes havia estado na base da realização do referendo. 

O “melhor” que poderia acontecer a Puigdemont - vale a pena ser claro - teria sido ser detido, erigindo-se em vítima da repressão anti-independência. O movimento republicano poderia apontar ao mundo o seu “mártir”, o governo espanhol estaria sob forte crítica e vigilância quanto ao modo como ia tratar o prisioneiro, tanto mais que já tinha pago um preço internacional pelas ações repressivas no dia do referendo. Mas o patético episódio belga foi bastante penalizante para a sua imagem.

A meu ver, o referendo, em especial a legitimidade política que os independentistas dele procuraram retirar, acaba por ser a principal “casualty” de todo este processo. Porquê? Porque o referendo era o “alfa e o ómega” da legitimidade para o governo declarar a independência. Desde logo, e como primeiro sinal de tibieza, ao optar por sujeitar essa declaração ao voto do parlamento catalão, Puigdemont mostrou falta de coragem, porque nada o obrigava a fazê-lo. Agora, a progressiva resignação à realização das eleições de dezembro, determinadas pelo poder central (e não por proposta própria), assumida pelas forças políticas independentistas, representa um recuo humilhante. Estas forças, ao perceberem a inevitabilidade do “refrescamento” do parlamento - ideia que algumas dentre elas antes rejeitavam liminarmente - terão concluído que, se acaso não concorressem, ficariam sem um palco político legal para a continuidade da sua luta. Mas isso também significa que o independentismo reconhece implicitamente não ter força suficiente para boicotar o ato eleitoral - e essa é uma constatação política muito importante.

Mesmo que tudo continue a correr de acordo com a agenda do governo espanhol, a sua aposta não está ganha à partida. Se acaso os partidos independentistas vierem a obter uma maioria no novo parlamento, a questão da secessão, mais cedo do que tarde, voltará a reabrir-se. Se isso não vier a acontecer nas próximas eleições - e esse cenário, num quadro de possível bipolarização, é talvez o mais provável -, a ideia da independência catalã entrará num período de algum adormecimento político. Mas, como todos estes tropismos nacionalistas, renascerá sempre um dia mais tarde.

terça-feira, outubro 31, 2017

A hora do senhor Duarte


“Sabias que o Duarte nunca muda a hora?”

Era o meu tio quem fazia a pergunta ao meu pai. Este estava farto de saber, há décadas, que o Duarte, para mim o “senhor Duarte”, nunca mudava a hora no seu velho relógio de bolso. Mas, com um leve sorriso, e talvez com um “Ah! Sim?!”, o meu pai ficou a olhá-lo a tirar a “cebola” do pequeno bolso do colete preto, sob o fato preto, que ia a rigor com os sapatos pretos imaculados, que reluziam naquele quarto-sala onde a minha velha avó recebia as pessoas mais íntimas. E ao lado, pousado no banco de pedra sob o parapeito da janela, estava o chapéu, também preto, de que o Duarte nunca se separava. Talvez o Duarte fosse viúvo, não sei.

O Duarte, então com quase 90 anos, tinha sido empregado do meu avô. A cena passa-se no final dos anos 50 e o meu avô tinha deixado viúva a minha avó Filomena, muito tempo antes, em 1925. 

Duas vezes por ano, o Duarte deslocava-se a Viana, ido de Ponte de Lima, para visitar minha avó, que devia ter aproximadamente a sua idade. Imagino que as conversas com a minha avó assentassem nos retalhos comuns da memória de outros tempos por lá.

Mas voltemos à cena. O Duarte, depois de mostrar a sua inflexibilidade perante as mudanças oficiais da hora, recolhera o relógio. Mas não por muito tempo. O meu tio, que já chamara a atenção do meu pai para essa teimosia do Duarte, referiu, de passagem, que achava que o relógio era alemão. O velho empregado não perdeu tempo e lá mostrou a marca inglesa de fabrico do aparelho. Confusão esclarecida.

O meu tio, um tanto estranhamente, não abandonou o assunto do relógio do Duarte e comentou que era uma temeridade, mas simultaneamente uma mostra de coragem, o Duarte andar pela rua com uma corrente de ouro do relógio a brilhar. O homem reagiu: “Antes fosse, antes fosse! Mas é só de prata”, mostrando-a, bem como, de novo, o relógio, dando-a a ver aos circunstantes, nos quais eu me incluía, silencioso e reverente perante a figura grave daquele senhor que mal dava pela minha presença. 

Na passada da conversa, o meu tio deixou cair um comentário: “Pena é que se atrase bastante, não é, Duarte?”. O velho senhor, quase ofendido, sacou uma vez mais do relógio e afadigou-se a conferir, perante os relógios de pulso em volta, que a sua máquina era de um rigor inultrapassável. Quando muito adiantava-se um minuto por ano.

“A propósito de minutos. Esses relógios, Duarte, ganhavam muito se tivessem ponteiros de segundos”, comentou o meu tio. “Mas tem!”, reagiu o homem. “Veja aqui!”, mostrando uma vez mais o relógio. Lá estava o pequeno mostrador dos segundos, claro. E o Duarte sorria de razão.

O leitor deve estranhar este relato do vai-e-vem do relógio do bolso do senhor Duarte para fora. Mas não estranhe. O Duarte iria ainda tirar o relógio precisamente mais cinco vezes, com cinco outros tantos pretextos que o meu tio iria inventar para que tal acontecesse. A aposta dele com o meu pai - de que arranjaria forma do Duarte tirar dez vezes o relógio do bolso - ia ser ganha por esse meu tio, um mestre das “partidas”. 

Não era aquela a primeira vez, e que me conste não foi a última, em que, lá por casa da minha avó Filomena, o “número” do relógio do Duarte era praticado, com um pretexto ou com outro, com um êxito proporcional à progressiva perda de memória do velho cavalheiro. E, o que é muito mais curioso, isso era feito perante o olhar complacente da minha velha avó, que implicitamente autorizava a brincadeira, divertindo-se mesmo com ela, ciente da sua inocuidade, e a completa inocência da criança que eu era.

Era este o ambiente, são e divertido, na casa da minha avó Filomena, em Viana do Castelo, onde íamos de Vila Real umas três semanas nas férias “grandes”, uns dias pelo Natal e, às vezes, uma “saltada” breve na Páscoa. Nesse tempo inocente e feliz, a história do “relógio do senhor Duarte” passou a fazer parte do património de memória da nossa família.

Que terá acontecido ao relógio do Duarte? Alguém, ontem, pô-lo de acordo com a “hora nova” ou terá herdado a caturreira do antigo dono?

segunda-feira, outubro 30, 2017

Notícias da Ossétia



Nas últimas horas, ouviu-se falar muito da Ossétia do Sul. Essa República do Cáucaso, que decidiu a sua independência em 2008, na sequência de um episódio mais no seu conflito com a Geórgia, que a considera um seu território, deu um ar da sua graça ao reconhecer a República da Catalunha. Não uso por aqui o clássico e irritante “auto-proclamado” da imprensa sem imaginação.

( A Ossétia do Sul - diferente da Ossétia do Norte, região russa adjacente, a que está curiosamente ligada por um túnel, e que há anos foi muito falada pelo massacre ocorrido numa escola na cidade de Beslan - não faz parte da ONU e, por esse motivo, não é reconhecida como um Estado pela comunidade internacional. Tem um estatuto quase idêntico ao da Abcásia (que declarou independência na mesma altura e que tem igual dissídio com a Geórgia), ao da Transnístria (que se cindiu da Moldova), ao do Nagorno-Karabakh (que se separou do Azerbaijão e pretende unir-se à Arménia) e ao de Chipre Norte (que divide a ilha de Chipre com a República reconhecida que ocupa o resto da ilha e está hoje na União Europeia). São tudo falsos países, reconhecidos por muitos poucos Estados, num limbo político de que dificilmente irão algum dia sair. Com um estatuto bastante mais sólido, mas igualmente sem presença na ONU nem hipóteses de a vir a ter, há também o caso de Taiwan, a ilha Formosa da nossa História, que vive uma existência separada da República Popular da China que a reivindica. )

Um dia, quando a Ossétia do Sul estava já separada da Geórgia, mas não tinha ainda declarado a sua independência, integrei uma “fact-finding mission” (no jargão internacional) à Ossétia do Sul, que vivia (e vive) totalmente dependente do apoio da Rússia, tal como acontece com a Abcásia e, em escala ligeiramente menor, com a Transnístria.

A sua capital, Tskhinvali, é uma vilória pobre, de arquitetura soviética de província, sem a menor graça. Em redor, veem-se casas por acabar, camponeses pobres e envelhecidos, mulheres de lenço rural na cabeça, num misto de descaso e deixa-andar, tudo sem cor, gente que nos mira com um olhar sem a menor esperança. E que tem toda a razão para assim se sentir. Fomos a Tskhinvali através de uma fronteira improvisada, numa zona cheia de ruínas da guerra recente, à época com “peacekeepers” à conta da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa). Éramos aí uma trintena de pessoas, em carros protegidos pelo nosso estatuto internacional, o qual, à partida, nos colocava teoricamente ao abrigo dos impulsos guerreiros dos dois lados, protagonistas de regulares escaramuças.

No meu carro, viajavam os meus colegas francês e italiano, chefes das respetivas missões diplomáticas em Viena. Entre nós, e desde a saída da capital georgiana, Tbilisi, onde estávamos alojados, tínhamos gizado um plano para, acabada que fosse a visita de trabalho à Ossétia do Sul, e logo que reentrados na Geórgia, em lugar de regressarmos logo ao hotel, abandonarmos a caravana coletiva e fazermos duas rápidas incursões com alguma dimensão turístico-política. 

Eu tinha-os desafiado a fazer uma visita a Gori, terra natal de Estaline, para vermos uma rara e imponente estátua do antigo líder soviético, colocada na praça principal (foi retirada em 2010), na impossibilidade temporal de ainda visitarmos o museu em seu nome. O meu colega italiano trazia na agenda a visita à igreja de Ateni Sioni, a uma dezena de quilómetros de Gori, que nos dizia ser magnífica (e era). O consenso político-religioso foi fácil de obter. 

Mais complicado foi convencer o motorista, um “apparatchik” do governo da Geórgia, a seguir as nossas ordens, desviando-se da rota oficial. Deu bastante trabalho, confesso. No final, teve direito uma boa gorjeta e, à chegada ao hotel, explicámos ao chefe da segurança que o homem não tinha tido a menor culpa no desvio, que imagino tenha contado em pormenor aos superiores.

Ao jantar, com a presença dos vários embaixadores, a nossa “aventura”, fugindo do cortejo, foi a conversa da noite. Tínhamos combinado evitar referir a ida a Gori (Estaline não é um nome muito popular) e destacar apenas a visita à igreja. E assim fizémos, com amplo detalhe de pormenores sobre a história e a beleza do edifício, despertando mesmo a inveja turística dos colegas, já arrependidos de se nos não terem juntado na expedição religiosa.

No final, num corredor, o meu colega embaixador russo, um amigo antigo que muito prezo, meteu-me o braço e, em voz baixa, disse-me: “Já sei que vocês também foram a Gori ver a estátua de Josef Vissariónovitch. Por que não me avisaram? Eu ia convosco...”

domingo, outubro 29, 2017

Terrim!


Há minutos, ao ver no Twitter uma fotografia atual do belo Teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo, onde há meses recebi a minha cidadania honorária da capital do Alto Minho, veio-me à memória uma história contada pelo meu pai (que daqui a dias faria 107 anos), passada naquela mesma sala, creio que nos anos 30 ou 40.

O Sá de Miranda era a única sala de teatro da cidade. Antes da criação do Cine Palácio, era também a sala onde se projetava cinema. Sala e “pátio”, diria eu, que ainda me recordo de ir ali ver, no Verões do meu contentamento adolescente, cinema ao ar livre, no espaço junto ao teatro.

Num desses dias da primeira metade do século que se foi, o filme era de “suspense”, como antigamente eram designados os “thrillers” (mas será que também esta palavra ainda se diz?). Aparentemente, a trama era muito bem conseguida, com o público preso aos desenrolar das cenas, que se encadeavam de forma empolgante. Contudo, no auge de um dos momentos mais emocionantes, o filme parou, a luz acendeu-se e o intervalo começou.

Por muito tempo, os intervalos nas sessões de cinema eram uma regra sem exceção. Os filmes projetados sem intervalo foi uma “modernice”, creio que dos anos 70. Nem se diga que era uma oportunidade para um cigarro, porque me recordo muito bem de se poder fumar livremente nos cinemas. Esses 10 minutos de pausa, porém, eram um momento de sociabilidade, para conversar ou tomar um café, nos mal fornecidos bares, que sempre recordo com prateleiras quase vazias.

Nessa noite, o facto do filme ter sido interrompido no meio de uma cena fundamental, em que os segundos seguintes à sequência projetada iam ser essenciais para entender o desfecho, fez com que ninguém se atrasasse no regresso aos lugares, nem sequer esperando pela estridente campainha que, tal como no início, iria anunciar o iminente fecho da luz. É que toda a gente estava ansiosa pelo retomar do filme. Nos lugares mais baratos, o pessoal pobre da cidade, os pescadores da Ribeira, agitavam-se nas cadeiras ditas de “sumopáu”, por contraste irónico com a cómoda sumaúma, com que se revestiam os lugares almofadados.

O filme, no entanto, por uma qualquer razão, teimava em não recomeçar. A campainha não soava e as hostes iam ficando cada vez mais nervosas. Algumas bocas, já muito para o “rasca”, começavam a ouvir-se. Foi então que, com aquele ondulado musical na pronúncia das sílabas, com as vogais bem abertas ao ouvido alheio, coisa impossível de descrever em escrita, mas sempre presente na linguagem popular da gente da Ribeira, saiu um berro bem sonoro, clamando pelo toque da campaínha que marcaria o regresso à aventura:

- “Terrim!”, carago!

A campainha lá soou, a luz apagou-se, o filme recomeçou, a cena ressurgiu, as emoções soltaram-se no olhar ávido dos espetadores e o “artista” (como então também se dizia) acabou a noite e a fita, com certeza, num final feliz. 

sábado, outubro 28, 2017

Alain Demoustier (1931-2017)



Partiu o Alain Demoustier. Uma existência cheia, uma forma de estar no mundo feita de um imenso interesse pelos outros, do culto da amizade, tudo embrulhado num olhar, simultaneamente arguto e divertido, sobre este país que ele adorava e sobre o qual sabia imenso. O Alain, não obstante os embates da vida, mantinha uma jovialidade quase adolescente, que teimava em espalhar em quem estivesse à sua volta. Conhecemo-nos melhor bastante tarde, através de grandes amigos comuns, mas rapidamente gizámos uma cumplicidade divertida, um gosto comum pela blague inteligente, que nos enchia os episódicos encontros. Nesta hora triste, deixo um beijo nosso de grande pesar à Friquette.

sexta-feira, outubro 27, 2017

Lideraça


A líder do Ciudadanos no parlamento catalão, com o nome sugestivo de Inés Arrimadas, tem uma qualidade de expressão política muito evidente, numa “arena” das mais difíceis da política contemporânea. É claramente uma das figuras políticas espanholas do futuro. 

Além disso, é uma mulher muito bonita. 

(Espero que dizê-lo não provoque reações feministas, com acusações de sexismo. Por mim, enquanto isso não for proibido (já estivemos mais longe...), direi que uma mulher é bonita e atraente quando me apetecer. É que parece haver uma “lei” que permite que as mulheres possam lançar piropos aos homens tidos por bonitos (foi por aí um currupio de comentários lânguidos sobre os olhos do vereador do Bloco à Câmara de Lisboa), mas que esse direito não é reconhecido aos homens.)

O jornalismo, a opinião e a fraude


A questão da Catalunha é um bom ensejo para revisitar a questão do jornalismo e da opinião.

Fazer jornalismo nada tem a ver com mandar “bitaites” sobre quem tem razão. Isso é matéria para os comentadores, que muitas vezes tomam partido - há, no tema da Catalunha, os que acham totalmente irresponsáveis os dirigentes catalães ou os que entendem como quase criminosa a intransigência de Madrid. Mas isso nada tem a ver com jornalismo. É pura matéria de opinião.

O jornalismo não tem de dizer quem tem razão, compete-lhe informar, com rigor e neutralidade, sobre as razões em que cada lado fundamenta a sua posição, bem como analisar, com serenidade, as eventuais consequências práticas dessas mesmas atitudes. Ao jornalismo compete explicar as coisas, deixando o leitor ou espetador com os elementos que lhe permitam formular o seu juízo, não se substituindo ao raciocínio do recetor da mensagem.

Esperemos que o excelente jornalismo dedicado às relações internacionais que existe entre nós não se sinta tentado a seguiu o triste caminho do já quase desaparecido jornalismo económico, cujo atual curso para a ruína em muito se ficou a dever ao facto da grande maioria dos jornalistas ter passado (pouco subtilmente) a comentador, achando-se no direito de tomar partido (quase sempre para o mesmo lado, aliás) e passando o tempo a “dizer o que pensa”, em lugar de modestamente explicar as questões de forma independente e neutral.

A opinião disfarçada de jornalismo é uma imensa fraude.

Sudão do Norte?


O último Estado independente reconhecido pela comunidade internacional, com assento nas Nações Unidas, foi o Sudão do Sul. 

Posso estar enganado, mas tão cedo a Catalunha não será o novo “Sudão do Norte”. 

Hoje, só me apetece desejar um futuro de paz e serenidade política para toda a península ibérica.

A greve



Hoje é dia de greve da Função Pública. Não obstante este ser, porventura, o governo que, de há muito, mais tem feito pelos servidores públicos, os sindicatos decidiram fazer uma greve. À sexta é mais simpático, não é? E, com algum jeito, sempre dá para ligar à semana com feriado. Depois de largos meses em que o PC tinha recomendado alguma contenção para proteger a Geringonça, o avançar da legislatura em direção às legislativas de 2019, a necessidade de mostrar bem quem força o governo às cedências (as autárquicas revelaram muita gente “esquecida” e que, por “ilusão”, votou PS), leva os comunistas a dar uma vez mais “mão livre” ao mundo das Avoilas, Nogueiras & ofícios correlativos. Nada de novo, tudo previsível, embora eu gostasse de ser mosca para estar no Comité Central do partido, essa espécie de “balneário” onde a CGTP recebe (e ajuda a fazer) a “tática”. Mas não há também a UGT?, perguntarão alguns. Pois há, vai tudo no andor, mas não é bem a mesma coisa, como bem sabe o meu amigo e conterrâneo Abraão, do alto do seu branco bigode bíblico.

Crónica “gastrófila”


Hoje, na edição da revista “Evasões”, que acompanha gratuitamente o “Diário de Notícias” e o “Jornal de Notícias”, publico uma crónica “gastrófila” sobre o Restaurante Laranjeira, em Viana do Castelo, um pouso culinário que frequento desde a minha infância.

Pode ler o texto aqui, mas não é a mesma coisa que na revista.

Elogio da habilidade



Sempre achei que a co-habitação entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa ia ter alguma graça. Olhando o perfil pessoal e político de ambos, as condições para uma relação “criativa” pareciam reunidas. Não era necessariamente sinónimo de entendimento eterno, mas havia uma “química” potencial, cuja durabilidade logo se veria.

Marcelo Rebelo de Sousa herdou a “geringonça”. Vale a pena lembrar que foi Cavaco Silva quem entronizou esta fórmula governativa, depois de um gesticular de remoques que transformou a sua saída num espetáculo ainda mais patético do que aquele que, em qualquer circunstância, sempre seria. Alguma direita, aturdida e confusa, ainda pensou que o novo presidente, que a dispensara institucionalmente no caminho para Belém, poderia ser tentado a uma dissolução parlamentar.

Era não conhecer Marcelo! O presidente deu todo o espaço ao governo legítimo de António Costa, cavalgou os seus êxitos, não questionou as suas opções internas, porque eram constitucionais, porque as sentiu consonantes com a descrispação por que o país ansiava e que só a acrimónia enquistada da pretérita liderança do PSD se obstinava a não entender. Daí também a rápida mudança de agulha do CDS, que se soube demarcar, com discreta elegância, de tão ruim defunto político. Nesse entretanto, Marcelo crescia, nos “afetos”, na postura institucional, na legitimidade que, para além do voto inicial, a sua atitude de Estado progressivamente lhe grangeou. 

António Costa também fazia o seu caminho. Hábil (não é insulto ser hábil), com rara capacidade de compromisso, soube criar um “firewall” governativo, preservando os compromissos europeus da “poluição” do PC e do Bloco. Estes, empanicados com a hipótese de um regresso da direita, trocaram o apoio ao governo pela recuperação de muito daquilo que os amigos da “troika” tinham retirado ao seu eleitorado. Tudo parecia ir bem.

Entretanto, chegaram os fogos, isto é, o velho país real, desordenado e frágil, impreparado ao primeiro abanão – e este foi forte. Marcelo já não cavalgou o percurso hesitante do governo. O PS reage agora, chocado. A fórmula é clássica: o governo tem a atitude de Estado, o partido tem erupções de indignação. Faz mal: provocar a quase unanimidade de Marcelo é um erro político, como Passos Coelho sentiu na carne. Partir da moção de censura embrulhado numa “frente de esquerda” (fórmula de Santana Lopes que, tal como o autor, veio para ficar), convencido de que assim será mais fácil ao PS ganhar as legislativas de 2019, é uma imprudência histórica. Mas o país não está “à esquerda”?, perguntarão alguns. Talvez, mas sair abruptamente da “selfie” com Marcelo é uma temeridade. Estou certo de que António Costa, que é um político hábil – e isto, repito, é um elogio –, não vai correr esse risco.

quinta-feira, outubro 26, 2017

O novo embaixador


Há dias, alguém me deu notícias do antigo embaixador francês em Lisboa, Pascal Teixeira da Silva, que terminou há pouco a sua missão como representante diplomático francês na Áustria. Vai agora ser embaixador especial para as migrações. E isso recordou-me uma história passada comigo, em Paris, a propósito da sua nomeação para Portugal, em 2010.

Pascal é, como o seu apelido indica, de ascendência portuguesa. Faz parte de quantos, e já são imensos, que, tendo nascido em França com essa origem, ascenderam na vida daquele país, ocupando hoje postos da maior importância na sua sociedade - do setor público às áreas económica, cultural, científica, entre outras. Em regra, essas pessoas pouco ou nada devem a Portugal, que, na generalidade dos casos, obrigou os seus antepassados a terem de abandonar o país onde nasceram, para se acolherem em França, que lhes garantiu condições dignas de vida e lhes renovou a esperança no futuro. São hoje franceses plenos, sendo para nós um orgulho que muitos reivindiquem a sua ascendência portuguesa.

Num dia de 2010, fui chamado ao chefe do Protocolo do ministério francês dos Negócios Estrangeiros, o Quai d’Orsay, que me anunciou que o embaixador francês em Lisboa fora instruído para apresentar o pedido da “agrément” para o seu sucessor, e que este ia ser um diplomata de ascendência portuguesa, de que eu nunca ouvira falar até então - Pascal Teixeira da Silva. Agradeci a informação, documentei-me nas horas seguintes sobre o futuro titular do Palácio de Santos, dei imediata conta a Lisboa de tudo quanto apurara e recomendei que a nossa resposta, naturalmente positiva, fosse dada com grande brevidade. 

Um ou dois dias depois, numa cerimónia na embaixada da Polónia em Paris, o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Bernard Kouchner, que estava à conversa com o embaixador polaco, Tomasz Orlowski, ao ver-me passar, muito no seu estilo efusivo e fortemente gestual, chamou-me e deu-me conta da “novidade, em primeira mão” da nomeação de Teixeira da Silva para Lisboa. Fê-lo com grande ênfase, sublinhando a ascendência portuguesa do diplomata e o que isso significava para “a importância dos franceses de origem portuguesa” na vida do seu país. 

Agradeci, fiz de conta que estava a receber a notícia pela primeira vez, fiz um “figurão” dando logo mostras de estar ao corrente do curriculum do diplomata, trocámos mais algumas palavras e Kouchner perdeu-se na voragem da cerimónia. O anfitrião, Tomasz Orlowski, que conheço há bem mais de duas décadas, que foi um dos meus melhores amigos em Paris e me conhece pessoalmente muito bem, terá detetado alguma falta de entusiasmo da minha parte, perante a “revelação” do ministro e fez-me notar isso: “Não me pareceu que tivesses ficado muito entusiasmado com a notícia. Não é bom para Portugal ter, como embaixador em Lisboa, um francês de origem portuguesa? No fundo, Kouchner tem razão: simboliza bem o reconhecimento da integração da vossa comunidade.”

Expliquei ao meu velho amigo polaco, depois embaixador do seu país em Roma, que, claro está!, estava muito satisfeito com a nomeação de um descendente de portugueses para a embaixada francesa em Lisboa. Mas acrescentei: “Não te posso esconder que a integração da comunidade portuguesa em França só estará plenamente assegurada quando diplomatas seus descendentes forem nomeados, não para Lisboa, mas para Washington ou para a ONU”. Ele percebeu. 

quarta-feira, outubro 25, 2017

Diretores



O Raul Vaz, que agora deixa a direção do “Jornal de Negócios”, já havia sido “meu diretor” no “Diário Económico” onde, por sugestão da Gisa Martinho, comecei a escrever em 2013, a convite de António Costa, que desse jornal iria sair para, tempos mais tarde, fundar o informático ECO. 

Em 2015, ainda antes do fim do DE, “transferi-me” para o “Negócios”, acolhido pela Helena Garrido, a qual, no ano passado, iria ser substituída pelo Raul, o qual, por sua vez, depois de amanhã, deixará a direção do jornal. 

A quem não é do ramo, parece tudo muito confuso? É só porque não “sabe da missa a metade”, no mundo muito difícil que é hoje o dos jornais económicos. Uma crise que, a meu ver, nem sequer é inevitável nem muito difícil de explicar...

Um abraço e votos de boa sorte, Raul!

Navegação gastronómica

Um restaurante caro é um restaurante ao qual se exige uma refeição memorável, que saia da banalidade e nos deixe vontade de voltar, mesmo sabendo nós que o preço torna difícil que isso aconteça com frequência. Com o turismo a ajudar, alguns restaurantes estão, cada vez mais, a “meter a mão”. Há preços estúpidos e, em alguns casos, só pagos por gente que se lhes equipara.

Nas últimas duas semanas, estive (à minha custa, diga-se), em três restaurantes desse nível, em Lisboa. Em todos os casos, saí de lá arrependido da visita. 

Nas três ocasiões, a comida não estava a grande nível, nem o serviço foi excecional. Num deles, o barulho na sala era imenso, noutro, as cadeiras eram incomodíssimas. Num deles, um empregado servia pela frente das pessoas, noutro, uma empregada tratava os clientes por “você”. Em dois casos, tive de pôr travão à compulsão para manterem os copos cheios (e procurar afanosamente abrir novas garrafas...) As gorjetas finais ressentiram-se dessas falhas no serviço, claro. E foi deixada (com a simpatia compatível com a conta acabada de pagar) uma opinião (relativamente) sincera, no final da refeição. 

Contudo, não cheguei a fazer como um amigo que, quando não gostava de um restaurante que acabara de conhecer, dizia, à saída: “Vim cá três vezes!” Perante o sorriso de satisfação dos proprietários, esclarecia: “A primeira, a única e a última!” Nunca tive lata para dizer uma coisa parecida, mas, a estes três (caros, repito) restaurantes (um renovado e dois novos), só voltarei quando me esquecer da vez que lá fui. E, para tentar evitar que isso aconteça, deixo isto aqui escrito.

Não refiro os nomes dos restaurantes (nem por mensagem privada, desde já aviso), porque os gostos são de cada um e há negócios e empregos que não tenho o direito de pôr em risco com os meus (discutíveis) humores gastronómicos. Este espaço ainda não é de serviço público, mas apenas para desabafos privados.

terça-feira, outubro 24, 2017

Homenagem

Não posso deixar de fazer aqui uma singela homenagem, em termos de apontamento musical, a essa insigne figura da magistratura lusitana que é Neto de Moura.

Ouçam bem aqui.

Os Leixões

Há uns anos, um site de uma rádio trazia esta pérola: “Leixões empatam com Guimarães”. 

Hoje, para manterem a mesma “pluralidade”, espero que escrevam: “Leixões empatam com Andrades“, para fazer justiça ao empate arrancado pelo Leixões (e não “pelos” Leixões, como o estagiário ignorante da rádio tinha intuído) no campo a que leixonenses e salgueiristas (os boavisteiros, menos) nunca deixarão de chamar “as antas”, tentando mesmo que, se possível, seja audível a minúscula inicial.

Imagino que um grande amigo meu, lá por Moçambique, adepto ferrenho do Leixões e furioso anti-portista, tenha dormido melhor esta noite.

Corações ao alto


Notável, em sensibilidade e bom senso, esta declaração do presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia sobre o aumento de possibilidades de “oferta” de corações para um transplante ao cantor Salvador Sobral: “Com as primeiras chuvas, surgem os acidentes de viação e aumenta a oferta de corações saudáveis”.

Na minha terra, a alguém que dissesse isto, costumava aplicar-se: “quem lhe atasse um arado...”

Frente e verso

Os Estados Unidos são dirigidos por uma figura sinistra, que dá alento aos grupos de extrema-direita e não se arrepende de graçolas machistas. Os Estados Unidos têm em curso uma saudável denúncia do assédio e exploração sexista, que tem exposto figuras do “establishment”, mesmo daquele que tinha as mais sólidas credenciais de proximidade aos Democratas. Há duas Américas.

Portugal é dirigido por um governo de raízes fortemente progressistas, com um suporte parlamentar onde é possível encontrar forças com uma agenda muito avançada em temas vulgarmente chamados de fraturantes. Portugal revela, na sua magistratura, pulsões medievais, moralismos ridículos, que trazem para a jurisprudência sinais, velhos e relhos, de um outro tempo. Há dois Portugais.

segunda-feira, outubro 23, 2017

José Palla e Carmo


Há algumas pessoas que gostaria de ter encontrado ao longo da minha vida. Uma delas foi José Palla e Carmo, curiosamente pai de uma querida amiga, a Bárbara, a quem eu nunca disse isto. 

Palla e Carmo nasceu em 1923 e morreu em 1995. Era diretor bancário, especialista em literatura americana, crítico, tradutor e outras coisas mais no mundo das letras. Realizava-se através de uma escrita bem disposta, culta, quase surrealista. Dizem-me que era uma pessoa divertidíssima. Escrevia lindamente e (creio) tudo quanto publicou assinava como José Sesinando. Andei uma vida a pensar que era um pseudónimo, quando afinal, na realidade, são também verdadeiros nomes seus.

Há pouco, “cruzei-me”, num estante, com a sua “Obra Ântuma” (escusam de ir ao dicionário, é um neologismo que significa “antes de morrer”). E, por via desse ”encontro”, lembrei-me de uma história que ouvi contada, há semanas, por Vasco Vieira de Almeida, seu amigo e chefe no BPA.

Um dia, o banco recebia uma delegação americana, do grupo Rockfeller, que andava a selecionar instituições nas quais pretendia investir na Europa. Esse contacto era, assim, muito importante. Palla e Carmo era o diretor internacional, mas Vasco Vieira de Almeida, conhecendo a verve humorística do seu colaborador, achou dever avisá-lo de que ele deveria deixar-se de brincadeiras durante a reunião, tanto mais que os americanos só costumam achar piada às suas próprias graças.

O encontro corria bem. Palla e Carmo mantinha-se no combinado mutismo, até que um dos visitantes, mirando-o diretamente, perguntou: “Quantas pessoas trabalham no banco?”. Era um “estímulo” demasiado para Palla e Carmo, que logo respondeu, de forma curta, mas clara: “50% !”

(A imaginativa fotografia de JPC a ler um jornal é da autoria do seu irmão, o arquiteto Victor Palla)

domingo, outubro 22, 2017

Santana Lopes

O PSD está cada vez mais PPD/PSD. Tendo conseguido garantir-se já como a continuidade “soft” de Pedro Passos Coelho, cuja larga maioria dos apoiantes tem a seu lado, Santana Lopes parece estar já um bom passo à frente de Rui Rio, a quem é muito evidente faltarem nomes de “notáveis” em seu apoio.

O jornalismo é isto?

Ontem, no “Público”, João Miguel Tavares escrevia coisa espantosa: ”Acredito que o dever de quem escreve nos jornais é, em primeiro lugar, denunciar o que está mal. Mas pode - e deve - haver exceções”.

Não sabia. E gostava de saber se as pessoas, ligadas ao jornalismo, que acaso leem esta página concordam com esta asserção perentória que ajuda muito a explicar o caráter maioritariamente negativo do que surge na nossa comunicação social, a propósito do nosso dia-a-dia.

Para mim, como leitor, gostaria de ver uma comunicação social que, sem esconder e sabendo revelar com rigor o que vai mal por aí, desse igual destaque ao que vai bem, ao que melhora, transformando-se num instrumento da esperança no futuro.

sábado, outubro 21, 2017

Arménio Mendes e o Consulado em Santos


Nos últimos dois anos da minha estada como embaixador no Brasil, vi-me confrontado com a decisão de Lisboa de efetuar uma redução da rede consular portuguesa no país e, muito em particular, de diminuir drasticamente a presença de diplomatas à frente dos postos que viessem a ser mantidos. Não me interessa, aqui e agora, analisar as razões - algumas financeiras, outras de sujeição a lógicas corporativas - que estavam por detrás desta orientação, mas devo dizer que, no íntimo, sempre considerei a sua legitimidade e eficácia de efeitos mais do que duvidosa. 

Como principal responsável diplomático português no Brasil competia-me, no entanto, fazer aquilo que cabe a um servidor público: expressar, frontal mas discretamente, a minha opinião (e ela era oposta à do governo) mas, no final, cumprir, lealmente e da melhor forma possível, a decisão final que acabasse por ser tomada. Em matéria de opções sobre a rede consular, aliás, a minha experiência profissional viria a ser interessante nos anos seguintes: no Brasil, contrariei abertamente um governo socialista; mais tarde, em França, opus-me a um executivo PSD/CDS.

Uma das decisões mais controversas que havia sido sugerida por Lisboa era o encerramento, puro e simples, do Consulado português em Santos, onde, desde há muitas décadas, funcionava uma unidade chefiada por um funcionário diplomático. Com o argumento de que havia um Consulado-Geral em S. Paulo, a menos de uma centena de quilómetros, a orientação inicial de Lisboa ia no sentido de encerrar aquela unidade que, desde há muitas décadas, cobria a cidade de Santos e a Baixada Santista. Isso não só significava, na minha perspetiva, um desserviço prático à importante comunidade portuguesa local como representava uma falta de respeito devido à relevância histórica da presença oficial nacional junto de um setor da nossa diáspora onde existia um movimento associativo da maior importância e prestígio. Esses setores, bem como as autoridades locais, não deixaram de reagir publicamente da forma mais veemente - a meu ver com toda a razão (embora eu lha não pudesse dar, porque me competia representar a orientação de Lisboa, fosse ela a que fosse, errada ou certa).

Perante a determinação de acabar com a unidade consular em Santos chefiada por um funcionário do MNE, a minha proposta "de recuo", para minorar o impacto da medida, foi propor a criação de um Consulado Honorário em Santos, dependente do Consulado-geral em S. Paulo. Era, à partida, uma solução insatisfatória, mas era "the next best", porque permitiria a permanência de uma unidade física em Santos. Aceite por Lisboa, com visível relutância, a minha proposta, restava escolher a personalidade para o cargo.

Um cônsul honorário é alguém que não emerge do serviço público do Estado que vai representar. Tanto pode ser um seu nacional como alguém que tenha a nacionalidade do país onde vai atuar, ou ser mesmo de outra nacionalidade. Escolhem-se, em princípio, figuras cuja potencial disponibilidade pessoal se possa constituir numa ajuda para os cidadãos portugueses, residentes ou de passagem, pelo que vulgarmente se tentam encontrar personalidades com um bom entrosamento local, respeitadas pelas nossas comunidades e, simultaneamente, com prestígio (e até influência) na área geográfica onde vão atuar. Os cônsules honorários não têm todos as mesmas competências. Alguns são apenas figuras de representação, a outros são pedidas tarefas e diligências várias, pelo que lhes é fixado um quadro de competências mais alargado. Esse era o caso de Santos, onde ia ser encerrado um consulado de carreira e se pretendia criar um escritório que pudesse estar à altura das expetativas de continuidade da nossa comunidade.

As diligências para a seleção de um cônsul honorário são quase sempre muito complexas. Sendo embaixador em Brasília, a uma imensa distância física, eu não podia ter uma visão concreta da lista potencial de pessoas a contactar - pessoas a quem ia ser pedido trabalho delicado, a troco de uma remuneração mínima, com grandes responsabilidades. Fazer muitos telefonemas, a procurar ou sondar nomes, era o primeiro passo para o assunto “cair na rua”. Aceitar candidaturas auto-propostas foi sempre algo que rejeitei. Tinha assim de ser muito discreto (já tinha nomeado outros cônsules honorários e sabia da dificuldade da tarefa), embora, no final, eficaz. 

Numa conversa com um quadro superior da banca portuguesa em S. Paulo, João Teixeira de Abreu, pessoa da minha confiança, que sabia ter regulares contactos em Santos, cheguei ao nome de Arménio Mendes. Não para o indicar como futuro cônsul honorário (Arménio Mendes, que eu conhecia pessoalmente, era um homem profissionalmente muito ocupado, cuja previsível falta de disponibilidade o colocava “fora da lista”) mas para o utilizar como fonte fidedigna de conselho sobre um possível nome a propor a Lisboa. Tratava-se de um empresário prestigiado e de sucesso, uma figura altamente respeitada localmente, pela comunidade e pelas autoridades. Com ele falei, por diversas vezes, desenhando o perfil desejável, aventado sucessivos nomes que nele coubessem. 

Ao final de algumas semanas, mantinha-me insatisfeito. Por uma razão ou por outra, as pessoas que íamos alvitrando não correspondiam ao “modelo” desejado, por terem resistências em setores da comunidade, problemas pessoais ou falta da disponibilidade necessária. O tempo passava, a solução temporária que eu tinha gizado para o Consulado em Santos estava a esgotar-se e Lisboa devia já “esfregar as mãos” de contentamento: sem uma solução razoável por mim apresentada, Santos fecharia, tal como originalmente fora desejado.

Numa nova conversa com João Teixeira de Abreu pedi-lhe uma derradeira diligência: que abordasse o próprio Arménio Mendes, no sentido de aferir da sua disponibilidade para aceitar o cargo. Eu far-lhe-ia o convite, se ele verificasse o mínimo de abertura para a respetiva aceitação. Assim se fez. Arménio Mendes ficou surpreendido, começou por resistir imenso à ideia mas, depois de várias insistências e apelos meus, e colocando condições mínimas da sua parte, acabou por aceitar a tarefa que eu lhe propunha.

Foi uma solução que se revelou mais do que excelente. De um Consulado que estava a funcionar com regulares queixas, Arménio Mendes, com o espírito empreendedor de quem sabia o que fazia, estruturou, em grande parte a expensas suas, uma unidade consular modelar, que passou a satisfazer bem melhor a nossa comunidade santista, tornando-se mesmo num exemplo para a rede consular portuguesa no Brasil. Saí do país muito satisfeito com a solução encontrada e, à distância e com grande agrado, fui acompanhando o seu crescente sucesso.

Há dias, essa dedicada figura do jornalismo português no Brasil que é Odair Sene deu-me conta da doença grave que rondava os dias de Arménio Mendes. Pedi-lhe que fosse portador do meu solidário abraço para ele. Há dias, com grande pena minha, através do nosso amigo comum João Teixeira de Abreu, recebi a notícia do seu falecimento. Com as condolências à sua Família, seguem aqui também os meus votos de que seja possível encontrar para Santos um cônsul honorário à altura daquele que agora desaparece.

sexta-feira, outubro 20, 2017

Olhar para o lado


Vou ser sincero. Habituei-me desde sempre a uma Espanha unida, não porque tenha um gosto particular pelo atual formato do nosso único vizinho terrestre, mas porque fui profissionalmente “treinado” para lidar com “nuestros hermanos” nesse modelo. 

Na vida diplomática, rotinamo-nos a viver com as circunstâncias. Na vida dos povos há sempre um “comodismo” que limita a vontade de se verem confrontados com o novo. Em política externa, isso é visivelmente assim.

A Espanha una é um parceiro que a História nos forçou a conhecer razoavelmente bem. Passado o tempo das desconfianças identitárias, disfarçadas no olhar de viés das alianças de oportunidade, em tempos de exceção autoritária, a entrada comum para a Europa política, num registo democrático, limitou fortemente o risco das crises, encaixadas que estas foram no normativo integrador, impulsionado pelo exterior. 

A Espanha, contudo, continua a não ser um interlocutor fácil, sempre que entende que estão em causa interesses próprios que reputa como essenciais. Da gestão dos rios comuns a Almaraz, dos limites marítimos de pesca à definição geopolítica e económica das águas atlânticas, do protecionismo por via de expedientes administrativos ao egoísmo na gestão das redes de energia, Madrid tem mostrado que pode, de um momento para o outro, transformar a normalidade num problema.

O interesse comum é, como resulta óbvio, tentar atenuar todas as tensões conjunturais que possam emergir. Nesse esforço, contudo, Portugal revela-se, em regra, bastante mais empenhado do que o seu vizinho, talvez porque este se sente confortado pela maior força relativa. Tentamos não magnificar os dissídios e procuramos quase sempre (mas nem sempre) controlar a expressão mediática dos confrontos. Não nos assustam os conflitos, até porque, no quadro internacional sereno em que nos movemos, sabemos que os podemos ganhar, desde que a razão claramente nos assista. Mas procuramos, sabiamente, evitá-los, porque entendemos que a sua cumulação pode acarretar desagradáveis sinergias negativas. Não é essa, frequentemente, a postura de Madrid. Não é um drama, mas pode converter-se num incómodo conjuntural. 

A nossa relação bilateral com a Espanha é hoje, contudo, francamente saudável e, felizmente, não depende de qualquer sintonia ou cumplicidade político-ideológica entre os dois lados da fronteira. O espaço para entendimentos ultrapassa assim, em muito, a margem provável para a emergência de dissídios.

E o futuro? E se a Espanha entrar em ebulição? E se o centralismo, potenciado pelo nacionalismo que sopra de Castela, não resistir à tentação de partir para o embate com o secessionismo e enveredar por uma aventura interpretada como uma “ocupação” pelo orgulho catalão? E se as ruas de Barcelona se converterem à agitação, em moldes que redundem em cenas de violência, da qual saiam vítimas que, como bem se sabe, podem ser “a faúlha que incendeia a pradaria”, como alguém disse um dia?

Não há muito que, por ora, possamos fazer. De uma coisa estou certo: no atual estado de coisas, devemo-nos manter fiéis ao diálogo exclusivo com Madrid. Se e quando alguma coisa vier a ser feita do exterior, intervindo na questão interna espanhola, só deveremos apoiá-la desde que tal não seja desconfortável para as autoridades centrais espanholas. Qualquer sinal de estímulo da nossa parte a uma “balcanização” da Espanha, além de nos colocar perante a natural reação indignada do seu governo, representaria um salto irresponsável no “escuro” político. Bem basta se isso vier, de facto, a acontecer. Nesse caso, lá teremos de abandonar a nossa “preguiça” estratégica e descobrir soluções para os novos problemas. Estar a antecipá-los seria convocar fantasmas antes do Halloween, e este é só para a semana.

Um futuro diferente


Foi há pouco mais de um mês, no empedrado de Andorra-a-Velha, que o presidente da República desabafou para os jornalistas: “Quando viro à direita, em Portugal, a direita não nota”. Era uma óbvia mensagem, que alguns entenderam algo precipitada, para tentar responder à orfandade que se sabia atravessar uma parte do país político, desiludida com aquilo que lhe parecia ser um conúbio entre Marcelo Rebelo de Sousa e o governo de António Costa. 

Ao longo de mais de um ano, esse setor político viveu num desespero quase patético. Das ironias iniciais que se ouviam ou liam contra o presidente que lhe não tinha ficado a dever quase nada na eleição de janeiro de 2016, a direita portuguesa tinha já entretanto desembestado contra Marcelo Rebelo de Sousa. Esse barómetro do radicalismo conservador que é a “opinião” de um jornal informático, somado a certos opinadores e a espaços conhecidos nas redes sociais, reclamava diariamente pela simpatia que o chefe de Estado parecia destilar em favor do governo. Alguns já nem estranhavam: “É o Marcelo, pronto, que se há-de fazer!” Houve mesmo quem dissesse que o avanço de Santana Lopes se tinha destinado a colocá-lo como alternativa potencial a um presidente que, não obstante a sua esmagadora popularidade, se tinha deslocado demasiado da sua base natural de apoio.

O discurso de Oliveira do Hospital tudo mudou. Críticos ácidos do presidente sentiram-se subitamente confortados com a severidade inequívoca de Marcelo para com o governo, com a distância marcada face a António Costa, com a afirmação de uma “magistratura de interferência”, que acentua claramente uma das leituras do nosso semi-presidencialismo.

Ao dizer o que disse, em palavras escritas para serem lidas ao microscópio, Marcelo Rebelo de Sousa sabia duas coisas: que estava em básica sintonia com o sentimento maioritário prevalecente no país e que, a partir daquele momento, algo iria mudar na sua relação com o governo. Ao ter encostado António Costa “às cordas” políticas, obrigando-o abertamente a uma remodelação e sujeitando-o a um indiscutível “ralhete” público, o presidente tinha plena consciência de que estava aberta uma ferida na “lua-de-mel” que vivia com a maioria, por muito que esta agora possa ser tentada a assobiar para o ar.

A direita parece hoje reconciliada com Marcelo, fazendo figas para que o discurso de Oliveira do Hospital seja o início de uma viragem drástica no relacionamento entre Belém e S. Bento. Julgando conhecer as personagens principais no terreno, quero crer que nem o presidente, a partir de agora, vai ser tentado a forçar excessivamente a mão ao primeiro-ministro, nem este vai ceder à tentação de exteriorizar qualquer acrimónia institucional. Mas uma certeza tenho: nada será igual daqui para a frente, embora ninguém saiba o que, de facto, o futuro nos vai trazer de diferente. 

(Artigo hoje publicado no “Jornal de Notícias”)

quinta-feira, outubro 19, 2017

Uma noite à Bertelo


Foi em 9 de março de 1966 (confirmei agora na net). O Benfica recebia, no velho estádio da Luz, o Manchester United, para a Taça dos Campeões Europeus. (Como ontem aconteceu, desta vez para a Champions). Nessa fatídica noite, o Benfica perdeu por 5-1. 

(Curiosamente, poucos meses depois, uma seleção nacional com a sua linha avançada do Benfica (José Augusto, Eusébio, Torres, Coluna e Simões) iria garantir o 3° lugar no Campeonato do Mundo... mas que foi ganho pelos ingleses.)

Voltemos à tal noite de 1966, na Luz. De Vila Real, havia-se deslocado a Lisboa um grupo de fanáticos "lampiões". Decidiram trazer com eles, oferecendo-lhe o bilhete, o António "Bertelo", figura típica da cidade, carregador de peixe e tarefeiro para tudo quanto viesse à rede, benfiquista à 5a potência, desvairado com a sua equipa de sempre, como toda a cidade bem sabia. 

Desde o início do jogo, as coisas correram mal ao Benfica. A tribo de Vila Real foi então surpreendida com o facto do Bertelo parecer entusiasmado com os primeiros avanços do Manchester United, incitando a equipa com berros da bancada. E logo, de um deles, saltou um "cachaço" para a cabeça do Bertelo, da parte de um furioso vila-realense que não estava a perceber aquela traição, em forma de aplauso ao "inimigo".

A explicação ficou para sempre no anedotário da "Bila". O Bertelo via bastante mal. O Benfica, nessa noite, como era então hábito quando as equipas visitantes tinham um equipamento da mesma cor do do anfitrião (e, nesse tempo, as camisolas não variavam, de jogo para jogo, como hoje acontece, para potenciar o "merchandising"), jogava com um equipamento branco. Os "Red Devils" mantinham-se assim de vermelho (na imprensa escrevia-se "encarnado", porque a censura não deixava "passar" a palavra, temente de conotações políticas). Ora, para o Bertelo, os vermelhos sempre tinham sido os do Benfica e, por isso, durante algum tempo, entusiasmou-se com os que assim equipavam. Até que o tal "cachaço" o fez entrar na ordem e, seguramente, na tristeza pela "abada" histórica que ficou para os anais da Luz. Ontem, mesmo perdendo em casa, o Benfica "melhorou", desde essa noite do Bertelo...

quarta-feira, outubro 18, 2017

No adeus


Constança Urbano de Sousa era, de há muito, a mais previsível remodelação que o primeiro-ministro teimava em não fazer. Porque as mudanças de governantes são lidas, em regra, como a constatação implícita de que algo falhou, os chefes dos governos adiam-nas até ao limite do suportável. E, claro, evitam sempre fazê-las sob pressão. Até ao dia em que isso também ocorre, como foi o caso.

A agora ex-ministra pode não ser a pessoa mais dotada para o exercício de um cargo político - e, sinceramente, acho que isso nada tem em si de negativo para ninguém, exceto se tiver de exercer... um cargo político! O seu discurso, recheado de óbvia sinceridade, ficou, por vezes, ao lado daquilo que parecia ser o mais adequado dizer. O seu ar permanentemente sofrido transmitia uma imagem angustiada e quase anti-política, num mundo em que a passagem de um mensagem de confiança se torna absolutamente essencial - em especial numa área governativa que lida com a gestão de temores públicos.

Nunca falei com Constância Urbano de Sousa. Mas, pelo que dela sei através de quem a conhece bem, e também por ter observado a forma como exerceu o cargo, tenho-a por uma pessoa extremamente dedicada à causa pública e intelectualmente muito capaz. Falhou na missão de que António Costa a encarregou? Talvez, mas, para além das culpas próprias, acho que ela foi também o bode expiatório mais óbvio de tudo quanto correu mal - das insuficiências funcionais aos picos climáticos, da falta de planeamento florestal ao insuportável impacto das mortes ocorridas. 

Sinto agora a obrigação de dizer isto, porque é isto que penso, por muito impopular que isto agora possa ser.

Ajuda

Se Pedro Passos Coelho pensou que abandonar o sótão político onde o país o via confinado ia ser uma ajuda à oposição no combate contra o governo, julgo que se engana redondamente. (Aliás, vai ser muito interessante observar se os putativos candidatos à sua sucessão seguem o seu discurso). Creio também que a lider conjuntural da oposição não lhe vai agradecer muito esta inusitada aparição.

terça-feira, outubro 17, 2017

E agora, António?


“Toda a vida é feita de mudança”, escrevia Camões. Em poucos meses, do Portugal otimista - do Europeu à Eurovisão, dos sorrisos das agências de “rating” ao namoro Belém-S. Bento, do deslumbre dos turistas ao colorido orgulho nacional, enfim, do país das maravilhas abençoado até pelo papa - caiu-se na depressão, por culpa da tragédia dos fogos e dos mortos que eles trouxeram. A tragicomédia de Tancos também ajudou ao fim da festa. E a fácil ciclotimia emocional lusitana confirmou-se, uma vez mais. 

Há que convir que o governo não tem conseguido gizar um discurso totalmente convincente, pelo que uma parte do país, mesmo dentre aqueles que o apoiam, passou a colá-lo à insegurança que hoje visivelmente muitos sentem. Alguns já pensam que o executivo “is in office, but not in charge”, para usar a clássica dualidade anglo-saxónica. Governar é também saber transmitir confiança, e esta está hoje visivelmente em carência. 

As pessoas até sabem que o estado da floresta é o que é, que a inconsciência e o crime espreitam por aí, que a meteorologia tem sido excecionalmente adversa, que os meios disponíveis seriam sempre finitos e insuficientes se acaso as condições ultrapassassem, como ultrapassaram, o razoável e o expectável, que quem chefia as operações fez seguramente todo o melhor que sabia, fosse o que fosse esse melhor - sabem tudo isso, mas não conseguem aceitar o que lhes sucedeu. A racionalidade é um bem escasso, por estes tempos, com tantas tragédias em cenário de fundo.

Saído de uma vitória eleitoral sólida, há meia-dúzia de dias, António Costa vê-se assim, da noite para a manhã, objeto de um clamor nacional, fruto de um imenso desespero, convertido em desesperança. O presidente da República, sintonizado com a óbvia emoção das pessoas, entrega agora ao parlamento a resposta sobre a sustentabilidade da solução política que gere o país. E sublinha isso com rara ênfase. Coloca-se numa posição de atentismo, o que é um claro recuo face ao modo como vinha a relacionar-se até aqui com o executivo. Porém, ele também sabe que não tem, por ora, condições para proceder a um teste eleitoral relegitimador, tanto mais que o principal partido da oposição vive uma indefinição interna. 

Escrevi “por ora”: é ao governo, é a António Costa que compete criar condições para que Marcelo Rebelo de Sousa não venha a ter essa tentação. Cada dia que passe sem que o país mude da perceção em que parece ter caído torna as coisas mais difíceis, tudo agravado por uma comunicação social crescentemente hostil, com uma oposição sem sombra de vontade de compromisso, com um apoio político-partidário ao governo ainda atravessado por várias tensões. É, porém, nestes momentos complexos que os verdadeiros líderes se testam. António Costa tem aqui o seu grande exame. Por mim, continuo plenamente confiante em que será aprovado. Alguns acharão que se trata apenas de “wishful thinking”. Logo veremos.

segunda-feira, outubro 16, 2017

Incêndios


Atravessei ontem parte do país, nas piores horas dos fogos. Cruzei-me, ao longo de autoestradas e de estradas secundárias que por vezes fui forçado a seguir em alternativa, com dezenas de fogos, que se sucediam num ritmo incrível e quase surreal. Senti o clima sem pinga de humidade, o vento forte que fazia aproximar as chamas da estrada, mudando de sentido de quando em quando.

O ordenamento das matas é o que é, os meios de combate disponíveis são finitos, a conjuntura climatérica que vivemos é de uma reconhecida excecionalidade. Nenhum país do mundo está preparado para ocorrências destas dimensões. Como se vê, aqui ao lado, em Espanha.

Percebo a tentação para fulanizar politicamente as culpas, mas entendo que se trata de um ato de despero sem sentido tentar encontrar culpados fáceis naquilo que a natureza nos impõe, por estes dias, como quase inevitável.

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...