terça-feira, maio 10, 2011

O adeus à UEO

A União da Europa Ocidental (UEO) foi sempre uma organização europeia de segurança e defesa pouco conhecida. Nascida há 63 anos e reatualizada em 1954, a UEO pretendia-se uma espécie de articulação entre a NATO e as instituições de unidade europeia, num tempo em que a "guerra fria" se projetava sobre a Europa. Independentemente das críticas à sua inoperacionalidade, sempre considerei que a UEO representava um interessante espaço de aculturação continental em matéria de segurança e defesa.

Até aos anos 90, a UEO tinha sede em Londres. Fui então representante permanente adjunto de Portugal junto da organização, antes dela ser transferida para Bruxelas, em 1993. Por essa altura, um português, o embaixador José Cutileiro, foi eleito secretário-geral da UEO. Noutras funções, recordo-me ainda de ter representado Portugal em reuniões ministeriais da UEO, em Ostende, Roma, Bremmen e Luxemburgo.

A UEO, enquanto organização, acabou oficialmente em 31 de maio de 2010. Mas a Assembleia Parlamentar da UEO prosseguiu a sua existência. Até ontem, data em que estive, sob o Arco do Triunfo, com os deputados portugueses que se deslocaram à cerimónia que consagrou este derradeiro ato da UEO. 

segunda-feira, maio 09, 2011

Mitterrand e a moda

Foi há 30 anos. Lembro bem a noite de 10 de maio de 1981, o dia da vitória presidencial de François Mitterrand. Eu vivia então na Noruega e organizámos um jantar em casa para acompanhar as notícias, que nos iam chegar pela rádio de ondas curtas e pelas televisões norueguesa e sueca, as únicas que nos eram acessíveis. Convidei amigos que nos podiam ajudar a "decifrar" os noticiários naquelas línguas, além de outros que o acaso juntou nessa noite nórdica.

A esmagadora maioria dos nossos convivas, onde se contavam alguns diplomatas estrangeiros, muitos temerosos da anunciada chegada dos comunistas ao poder, acabava por alinhar num "giscardianismo" de oportunidade. Nada de estranho, se pensarmos que a guerra fria estava ainda muito presente na vida internacional e que a experiência francesa assustava então muita gente. Estas coisas hoje parecem ridículas, mas, à época, havia quem falasse, sem rir, na possibilidade de tanques russos não tardarem na place de la Concorde.

Quando as notícias da vitória de François Mitterrand se confirmaram, esse núcleo de amigos conservadores entrou numa aberta e pública depressão. As teses sobre o que iria suceder em França eram catastróficas: de desordens públicas a um conjunto de malfeitorias que a nova maioria seguramente iria desencadear, tudo era de esperar da "révanche" da chegada da esquerda ao poder.

Num certo casal estrangeiro, em que ela era bastante mais nova, notei que o marido estava a ser carinhosamente consolado pela mulher, na sua conjuntural desventura política. Mas era por demais evidente que ela tinha muito pouca consciência da complexidade do que estava a ocorrer. O marido disse, a certa altura: "Isto vai provocar uma desvalorização fortíssima do franco, vai ser gravíssimo!".

Eu lançava umas piadas, em jeito de provocação e, a certa altura, saiu-me esta: "Bom, há grandes vantagens numa desvalorização do franco. Por exemplo, a roupa que se vende em França vai ficar muito mais acessível, a moda francesa vai embaratecer, agora é que vai valer a pena ir a Paris, às compras". 

O que eu fui dizer! Mal eu tinha acabado de falar, vejo os olhos da jovem brilharem, a cara abrir-se-lhe num esgar de felicidade, como que por uma súbita descoberta das virtualidades da vitória da esquerda. Voltou-se então para o marido e, numa voz bastante audível, tanto mais que ele era meio surdo, disse-lhe: "Ouviste? É verdade que os vestidos vão ficar mais baratos? Não podíamos ir agora a França?".

O meu amigo ignorou-a, olimpicamente, e fuzilou-me com o olhar. Eu ria, olhando na televisão a place de la Bastille cheia de gente, com imensa pena de lá não estar. 

Migrações

Nestes tempos em que algumas notícias tendem a provocar surtos depressivos em alguns dos nossos concidadãos, talvez faça bem à nossa auto-estima notar que, entre 31 países avaliados (os 27 da UE e os EUA, Noruega, Suíça e Canadá), Portugal é considerado, depois da Suécia, o segundo melhor país em termos de políticas de integração de migrantes. O nosso país assume mesmo o primeiro lugar no tocante ao "ranking" de acesso à nacionalidade, bem como no tocante ao reagrupamento familiar.

Sporting

Lendo, com todo o cuidado, o acordo da "troika" com Portugal, não consegui encontrar nenhum ponto onde esteja previsto o "resgate" do Sporting. Vou ler outra vez...

domingo, maio 08, 2011

Dia da Europa

Hoje, comemora-se o dia da Europa. Sei de algumas pessoas que, nos dias que correm, sentem escassa vontade para o celebrar.

Aqui em Paris, as instituições europeias tiveram a bizarra ideia de o fazer no passado dia 5. Não percebi muito bem porquê. Um amigo, que não renega ironicamente algumas heranças, aventava que talvez tivesse sido para aproveitar a boleia do aniversário de Karl Marx...

Percebo que, com a "zizanie" no euro, com as divisões na Líbia e com as hesitações em Schengen, entre tantas "eurochatices" recentes, alguns possam ser tentados a não dar muita importância a esta data.

Como português, eu dou. Com toda a convicção, comemoro este fantástico projeto de paz e liberdade que, para além de todas as hesitações e contradições, contribuiu para manter largas décadas de convivência democrática.  E que, naquilo que nos toca, ajudou a fazer de Portugal um outro país.  

Nota: utilizo, como imagem, uma fotografia que me acaba de ser mandada, de Brasília, pelo meu amigo Hermínio de Oliveira.

Economia

O famoso acordo há dias concluído entre três entidades financiadoras internacionais (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) e o governo português só tinha, até agora, uma versão em língua inglesa.

O blogue Aventar decidiu fazer uma tradução (não oficial, claro) deste complexo texto, cuja aplicação vai marcar o futuro do nosso país nos próximos anos. Trata-se de um documento denso, muito técnico, nem sempre de fácil leitura. Mas essencial.

Ele aqui fica este verdadeiro serviço público do Aventar.

sábado, maio 07, 2011

Paul Anka

- Olha! O Paul Anka vem a Paris, em novembro. Não sabia que ele ainda cantava...

Ouvi hoje o comentário a alguém, ao deparar com um grande cartaz a anunciar o espetáculo. Revelei então que não tinha a mais leve intenção de ir ouvi-lo. O cantor está muito longe de fazer parte das minhas nostalgias de estimação.

Outro amigo comentou:

- A mim o que me espanta não é que ele venha a Paris cantar. É que, com aquela idade, arrisque marcar um espetáculo só lá para Novembro...

Há gente muito màzinha...   

Foto

Não há nenhuma razão particular para publicar hoje esta fotografia. Apenas porque, num blogue, deparei com esta "American girl in Italy", uma imagem clássica de Ruth Orkin, de 1951.

Em si mesma, é um tratado de antropologia mediterrânica.

Cliquem sobre a imagem, para verem em detalhe.

sexta-feira, maio 06, 2011

Nós e a Finlândia

Há dias, foi aqui publicada uma modesta carta a um virtual diplomata finlandês.

Surgiu agora, na internet, um vídeo, em inglês, que consubstancia uma mensagem portuguesa a todos os finlandeses.

Ganhe seis minutos de bem-estar vendo este Portugalnomics.

Da forma

O presidente da República portuguesa entra num auditório e a maioria dos presentes permanece sentada.

Há uma sessão parlamentar de receção a um chefe de Estado estrangeiro e alguns deputados à Assembleia da República aparecem sem gravata.

Chega-se a qualquer cerimónia oficial e cruzamo-nos com fotógrafos e repórteres de imagem calçados de ténis e vestidos com trajes que, por vezes, os confundem com arrumadores.

Assiste-se a um debate televisivo e ouve-se locutores dizer, como se tivessem andado na escola com os entrevistados: "Paulo Portas, o que é que acha..." ou "Diga-me lá, Jerónimo de Sousa...".

Por contraste, olhe-se para um sessão do parlamento britânico. Assista-se à entrada do presidente francês numa sala. Atente-se no modo como estão vestidos os jornalistas numa conferência de imprensa na Casa Branca.

Nada disto tem importância? Talvez não. Mas é também por estas e por outras, por esta perca progressiva de formalismo, que representa um desrespeito ostensivo pelos símbolos e pela representação do Estado, que certas coisas chegaram onde chegaram.

Relógio

Havia quem considerasse irrelevante saber a "hora de Paris", que era dada por um relógio digital que este blogue tinha na coluna lateral direita. Uma sobrinha arquitetou a teoria de que era "irritante" aquele "flashar" dos segundos. Pronto! Fiquei convencido. Depois da tradução automática, e porque sou um adepto do "simplex", eliminei o relógio. Mais alguma coisa?

quinta-feira, maio 05, 2011

Angola e o Corredoura

Ontem à noite, alguns embaixadores e diplomatas dos países da CPLP, depois de uma comemoração na UNESCO, juntaram-se em casa do embaixador angolano em França. Foi interessante ver como uma língua comum une, com facilidade, o humor e o sentimento, garantindo horas de boa disposição e de são entendimento.

A certa altura, falámos da Angola de outros tempos, da guerra civil, dos períodos de grandes dificuldades que afetavam então a vida quotidiana em Luanda, uma cidade sitiada, com frequentes cortes de água e luz, com recolher obrigatório.

Nesse tempo, de inícios dos anos 80 do século passado, vivi por alguns meses no Hotel Trópico, na capital angolana. Nele se acolhiam muitos estrangeiros, em especial portugueses em negócios. Com o cônsul-geral e com o ministro-conselheiro da embaixada, eu almoçava e jantava, quase por regra, no "grill" do hotel, uma facilidade rara, que não era estranha à nossa invejada condição diplomática. Nesse tempo, obter uma "reserva" para o "grill" era uma benesse pouco comum, muito apreciada pelos portugueses e angolanos que para lá convidávamos. Diga-se que esse privilégio acontecia não obstante as tensões políticas que, à época, marcavam fortemente as relações entre Lisboa e Luanda, o que só revela que alguma afetividade, fruto de certas cumplicidades, se sobrepunha à conjuntura política.

Com algum exagero, o humor corrente afirmava que, no restaurante normal do Trópico, havia, ao almoço, "arroz com peixe frito" e, ao jantar, "peixe frito com arroz". No "grill", as coisas era ligeiramente melhores, mas a variedade de menus não ia muito longe. Longe, sim, iam os tempos em que os grelhados haviam dado nome ao local. Recordo apenas um cíclico "émincé" de vitela e o sempre presente bolo Trópico, uma espécie de pão-de-ló coberto com claras de ovos, que fechava a maioria das refeições.

O "chefe de sala" era um velho e simpático angolano que havia trabalhado no "Café de Paris", em Lisboa, o Smith. Quando perguntado sobre o menu do dia, costumava ironizar sabiamente, respondendo coisas como: "Eu hoje aconselhava um magnífico caldo verde, seguido de um bacalhau à lagareiro. Depois, teremos um bife à marrare. E fecharemos com um pudim abade de Priscos, que está "de truz" ". Esses e outros pratos virtuais, que se deliciava a relembrar, com expressões do léxico luso, fruto da sua longínqua memória da culinária e da vida lisboeta, logo contrastavam com as limitações do pobre menu do dia, a única realidade a que iríamos ter direito.

O vinho era, invariavelmente, o mesmo: português, de uma marca que nunca esquecerei, de que nunca mais ouvi falar - Corredoura. Não o retive, contudo, na minha memória sensorial como um néctar digno de figurar na história vinícola portuguesa, embora, nas condições locais, a minha escala de valores em matéria de consumo tivesse então atingido generosos limites de complacência.

O serviço às mesas do "grill", chefiado pelo Smith, coadjuvado pelo excelente Sambo, era feito por alunos da escola de hotelaria local, que rodavam com grande frequência. Eram jovens muito simples, inexperientes, terreno fácil para ensaiarmos algumas graças. A piada cíclica era perguntar ao jovens alunos: "Há vinho?". A resposta era sempre positiva, como já sabíamos. Essa era então a oportunidade para que um de nós lançasse, variando cada dia de fórmula, uma coisa assim: "Hoje, estava-me a apetecer um vinho português. Um maduro tinto. Por acaso não tem um Corredoura, não?". Ou assim: "Para acompanhar o almoço, traga-me um tinto. Pode ser Corredoura, tem?"

Os olhos dos ingénuos e solícitos rapazes brilhavam de felicidade. "Por acaso" tinham - esse que era o único vinho existente, à época, em toda a Angola, "de Cabinda ao Cunene", para utilizar um lema então em voga. E, minutos depois, a uma temperatura "impossível", lá surgia, saído da cave, um Corredoura tinto.

Consumimos hectolitros de Corredoura. Provavelmente esgotámo-lo. Deve ser por isso que nunca mais ouvi falar desse vinho. E, devo confessar, vá-se lá saber porquê, não tenho nenhumas saudades dele.

quarta-feira, maio 04, 2011

Ser primeiro-ministro

Jean-Louis Debré, presidente do Conselho Constitucional, é filho do antigo primeiro-ministro de De Gaulle, Michel Debré.

Ontem, numa entrevista na televisão, contou uma história curiosa, passada na sua adolescência. 

Um dia, ao chegar a casa (curiosamente, bem próxima da nossa embaixada aqui em Paris), encontrou-a cheia de flores, com caixas de chocolates abertas e amigos com garrafas de champanhe, num ambiente bem festivo. A sua mãe explicou-lhe, então, a razão de tudo isso:

- O teu pai acaba de ser nomeado primeiro-ministro!

Alguns anos passaram. Uma certa tarde, chegado de novo a casa, deparou-se com um ambiente de euforia: chegavam ramos de flores, abriam-se garrafas e reinava um estado de grande alegria na família. O que é que se passa?, perguntou:

- O teu pai acaba de deixar o lugar de primeiro-ministro!

China

O meu colega luxemburguês, Georges Santer, um diplomata com grande experiência da China, apresentou hoje um trabalho, num determinado contexto, do qual achei curioso citar dois elucidativos extratos:

"Os que acreditam que a China acaba de instalar o seu poderio na cena internacional não apreenderam realmente o fenómeno que o planeta vive no atual momento. A China não emerge, a China retoma o seu lugar como primeira nação da Terra. Eis o que faz vibrar a alma de todo o chinês".

"Para a China, os Estados Unidos são o único país que ela respeita verdadeiramente: um país capaz de dar sequência aos seus anúncios de atos concretos, bastante fácil de apreender do ponto de vista cultural face à diversidade extrema das culturas europeias e face a países cujos cujas posições conduzem à frequente emergência de situações de conflitualidade".

Interessante! 

terça-feira, maio 03, 2011

Memória

Há dias, o "Público" deu forte destaque, em primeira página, à morte de Vitorino Magalhães Godinho. Tratando-se de uma figura cimeira da historiografia e da nossa vida cívica (demitido da função pública pela ditadura, ministro da democracia) nada era mais justo. Porém, a notícia era ilustrada com uma fotografia... do irmão do historiador, o advogado José Magalhães Godinho.

No dia seguinte, o jornal não retificou o seu erro, Só o veio a fazer posteriormente. O que leva a presumir que aqueles - apesar de tudo, deverá ter havido alguns - que deram conta desse erro crasso já nem se terão dado ao cuidado de alertar o jornal. Ou -  pior ainda! -, se o fizeram, o jornal manteve-se indiferente na sua edição imediata, o que também é grave.

Os jornais são, cada vez mais, importantes arquivos da nossa memória coletiva, agora ajudados pelas suas versões "on line". Pensar-se que é normal que os seus redatores, só porque pertencem a gerações mais novas, não estão obrigados ao extremo rigor histórico-cultural é entrar num inaceitável caminho de facilitismo. Se aqui, em França, o "Le Figaro" ou o "Libération" trouxessem uma imagem de Simone Signoret em lugar de Simone de Beauvoir, ou de Simone Weil em lugar de Simone Veil, garanto que caía  "o Carmo e a Trindade"!

Pois há dias, um jornal português, que me passou pelas mãos, trazia fotografias ilustrativas do período do "marcelismo". Numa delas via-se Américo Tomaz rodeado de representantes de "forças vivas" de qualquer localidade de província. A legenda era: "Marcelo Caetano com alguns dos seus ministros"...

Este é - felizmente! - um défice que escapa à "troika".

Esforços

O humor de oportunidade é uma conhecida caraterística dos portugueses.

Hoje, numa parede junto ao Liceu Francês, em Lisboa, lá estava escrito, em grandes letras: "Agora é hora de se fazer esforços e, por isso, há que treinar".

Era propaganda a um ginásio...

Depois de Bin Laden

Ontem, durante o noticiário das 19.00 da SIC Notícias, conversei com Teresa Dimas sobre o caso do dia: a morte de Bin Laden. Limitei-me a dizer algumas coisas óbvias, nesta fase em que apenas nos é possível avançar suposições.

Devo dizer, que ao ver as peças que antecederam a entrevista, senti alguma incomodidade com as imagens de celebrações alegres em torno daquela morte. Bin Laden era um criminoso, autor moral de milhares de mortes. Os mesmos valores que me levam a apoiar empenhadamente a luta anti-terrorista obrigam-me a não poder comungar um júbilo público por uma morte. Mas, porque não vi muita gente preocupada com isso, deduzo que devo ser eu quem está equivocado.

A saída de cena de Bin Laden, sendo uma notícia que pode prenunciar tempos de esperança na atenuação das tensões no Médio Oriente e Ásia Central, não pode deixar lida em conjugação com a instabilidade em todo o mundo árabe, tornando a equação geral com um resultado de muito difícil antecipação, em especial para atores que se atribuem responsabilidades à escala global, como é o caso dos Estados Unidos. 

Talvez por esse motivo se compreenda melhor a frase que João Vale de Almeida ontem nos dizia ter ouvido a Brent Scowcroft, o antigo "National Security Advisor" de administrações republicanas, procurando caraterizar o delima americano, em face do estado geral do mundo árabe: "Sentimo-nos como um malabarista que, ao mesmo tempo que procura circular e manter no ar as bolas que manipula, tem a necessidade de ir preparando um "souflé" ". Ou, lido por outros modos: alguma coisa pode falhar.

Em tempo: sobre este tema, publiquei hoje no "Diário de Notícias" um curto artigo.

Diálogo transatlântico

Não faço ideia se nos Estados Unidos as pessoas se preocupam tanto com a relação transatlântica como nós, europeus, o fazemos. Mas, francamente, não me parece mal. A capacidade da Europa para fazer passar e executar, com eficácia, a sua agenda política depende, em muito, do modo como conseguir articular-se com o seu parceiro do outro lado do Atlântico - com o qual partilha muitos princípios comuns, embora dele pontualmente divirja. Mas continuo convicto que, entre a Europa e os EUA, e para utilizar uma terminologia maoísta, só haverá "contradições não antagónicas".

Ontem, em Lisboa, durante várias horas, numa excelente iniciativa do Observatório de Imprensa, em articulação com o gabinete da Comissão Europeia em Portugal, dirigido por Margarida Marques, o embaixador europeu em Washington, João Vale de Almeida, e eu próprio lançámos um debate com jornalistas portugueses especializados em temas económicos (com a curiosa presença de um membro da delegação do FMI, incluído na "troika" que negoceia com o governo português o programa de ajuda financeira). O convite foi-nos formulado por Joaquim Vieira e Teresa Moutinho, tendo Nicolau Santos e Helena Garrido como condutores da discussão.

O "menu" tinha por título: "Relações Europa-América: veja as diferenças". Três tópicos essenciais serviam de base às nossas intervenções, bem como ao período de questões que se lhes seguiu:
  • Reação da UE e dos EUA à crise financeira e económica. As diferentes formas de abordagem do problema e a posição do euro perante a disputa cambial sino-americana.
  • Relações com os países emergentes. Prioridades das políticas externas de Bruxelas e de Washington.
  • Perspetivas sobre as mudanças no Mediterrâneo sul. Como enfrentar as revoltas árabes e qual o papel da NATO em caso de intervenção. A relação entre os dois lados do Atlântico continua firme ou é hoje menos sólida?
Foi muito interessante ouvir a visão privilegiada do chefe da missão europeia em Washington, decantando analiticamente, com grande lucidez, a forma como a América nos "lê" e revelando o modo como a diversidade/unidade europeia é oficialmente explicada do outro lado do Atlântico.

Pela minha parte, entre algumas outras coisas que por ali disse, procurei "trabalhar" o estado atual da União, quer no tocante à sua relação com o mundo, quer na tentativa de nela desconstruir a diferente proeminência dos 27 no processo comum de ação externa.

Mas de muito mais se falou naquelas mais de três horas, desde a Líbia à Rússia, das agências de "rating" à reforma do Conselho de Segurança, da posição do Brasil à atitude alemã. O euro, o dólar e a crise, bem como os números do mundo, foram estudados e debatidos. E falou-se da França, evidentemente. Porque a notícia era "fresca", as perspetivas abertas pela desaparição de Bin Laden foram também especuladas.

Tive um grande gosto em colaborar, uma vez mais, com o Observatório de Imprensa. Recordei que, a primeira vez que o fiz havia sido já em 1994, num debate sobre a Europa, lado a lado com Paulo Portas. Como o tempo passa...

domingo, maio 01, 2011

Condecorações


As condecorações têm uma importância muito diferenciada em cada país. Em França, os cidadãos têm por regra usar, no seu dia-a-dia, as condecorações de que são detentores. Se se olhar para a botoeira dos casacos dos homens, e também de certos vestuários femininos, notar-se-ão os pequenos símbolos redondos (com ou sem uma pequena tira por detrás, que revelam graus mais elevado) ou uma espécie de ligeiras bordaduras alongadas da mesma cor. 

Regularmente, a imprensa francesa dá nota pública da atribuição desses títulos de nobreza republicana, os quais, por regra, devem significar vidas ou atos feitos ao serviço da comunidade. Às vezes, algumas escolhas são um tanto mais polémicas, mas a relevância do cidadão é aqui claramente acrescescida com a exibição dessas distinções. Como me dizia um meu antecessor, para um francês, sair à rua sem a condecoração que lhe foi atribuída, é quase como "sair nu".

A "Légion d'Honneur", de cor vermelha, é a mais prestigiada das condecorações francesas, mas a "Ordre du Mérite" é também aqui muito importante, em especial nos seus graus mais elevados. Como ironia - mas com verdade -, costuma-se dizer que uma boa condecoração francesa "arranja mesas" em restaurantes cheios. Posso testemunhar que assim é, de facto. A consideração automática que suscita em muito locais é evidente.

Os diplomatas, um pouco por todo o mundo, têm, por vezes, acesso mais fácil a condecorações estrangeiras. Seja porque estiveram no serviço do Protocolo, seja porque as obtiveram pelos "pacotes" de trocas de condecorações que se trocam em visitas de Estado, acontece-nos, com frequência, sermos detentores, sem qualquer esforço especial, de insígnias que um nacional do país que as atribui passa uma vida a ambicionar. No meu caso pessoal, tenho algumas condecorações estrangeiras por motivos exclusivamente "ex officio", nalguns casos sem que nenhuma razão especial o justificasse. Digo-o com total sinceridade, embora não deixe de ficar grato pelo gesto da sua atribuição.

Com os portugueses, passa-se, em França, uma circunstância curiosa. A "Légion d'honneur" francesa é, na sua insígnia para uso quotidiano, exatamente idêntica à Ordem de Cristo portuguesa, que é a mais prestigiosa condecoração que, entre nós, um civil pode ambicionar obter. Existe, por isso, uma lei francesa, do século XIX, que proíbe o uso público, em França, da nossa Ordem de Cristo (e de uma condecoração idêntica da Santa Sé), para evitar confusões com a sua mais prestigiosa ordem.
Muitos diplomatas têm histórias ligadas a condecorações, tema que faz parte de abundante anedotário da nossa carreira. Um dia, na Noruega, como encarregado de negócios na ausência do meu embaixador, tive o ensejo de ser apresentado, com o meu colega espanhol, ao rei Olavo V, durante uma cerimónia de gala no palácio real. O soberano, que era um homem de uma grande bonomia e simpatia, quis colocar-nos à vontade e, numa inesperada cumplicidade, disse-nos: "Não olhem agora, mas vão notar que, atrás de vocês, está um embaixador - que não sei de que país é - cheio de condecorações, dependuradas na sua casaca. Devem imaginar que eu, como rei, já recebi imensas. Tenho a sensação de que, se decidisse usá-las todas no mesmo dia, caía ao chão..."

Conta-se que Salazar dizia que "as condecorações não se pedem, não se recusam e não se usam"*. Contudo, há, pelo menos, uma fotografia em que ele é visto usar condecorações. Uma única certeza tenho: não era a Ordem da Liberdade, que nem a título póstumo alguma vez terá. Espero bem!

* Pessoa amiga chamou a minha atenção para o facto dessa citação ser atribuída a François Mauriac, a propósito da "Légion d'Honneur". Terá Salazar citado o escritor? Ou o contrário?

Feira do livro

Era assim a Feira do Livro de Lisboa, precisamente há 50 anos. Em contraste, hoje à tarde, notei ser das poucas pessoas com gravata, entre as muitas que passeavam pelo parque - cujo nome, seguramente, ninguém ligou ao recém-casado príncipe britânico, de quem Eduardo VII era trisavô.

Já não "apanhava" uma feira em Lisboa há alguns anos (problema de quem vive, há uma década, no estrangeiro). Fez-me bem passar por lá, perceber os novos públicos e o ambiente que hoje rodeia os livros, em tempo de "iPad's" e de outros "gadgets" alternativos de écran.

Ao olhar para os stands, dei-me conta de que, durante muitos anos, e relativamente a certos temas, tinha a sensação de que ia adquirindo tudo o que sobre eles se editava em Portugal. Hoje, tenho que ser realista: não há bolsa, nem estante, nem horas livres que aguentem a imensidão do que se publica -estudos cada vez mais pormenorizados e aprofundados. O mundo da investigação (e, por essa via, da edição) mudou e mudou para bem melhor. Além de que os livros estão cada vez mais bonitos.

Com este post, também satisfaço o pedido daquela senhora anónima que, numa banca de livros, depois de olhar para mim com alguma insistência, me lançou: "Não se esqueça de falar da feira, hoje, lá no seu blogue". Não prometi nada, mas aqui estou a "obedecer". Com gosto.

sábado, abril 30, 2011

O recoveiro

"Podias fazer de recoveiro e trazer-me isso de Paris", pediu-me, há pouco, um amigo que sabe que vou hoje a Lisboa.

Só alguém com uma certa idade, e "da província", se lembraria do conceito de "recoveiro", uma figura da minha infância que se deslocava de terra em terra, normalmente de comboio, e que, na sua mala, trazia e levava "coisas", por um módico custo, num tempo em que o transporte de objetos pelo correio não ainda era muito vulgar. 

O meu pai contava-me que era o recoveiro quem trazia, "do Porto", no final dos anos 40, a então muito rara penicilina, que permitiu "safar-me" de uma doença grave, que me ia levando desta para melhor. Desde então, tenho uma gratidão eterna para com os desaparecidos recoveiros.

Por isso, hoje, farei, com gosto, o papel de recoveiro aéreo para esse meu amigo.

Vinho inglês

A propósito do bioetanol ecológico que servia de carburante ao belo Aston Martin que o príncipe britânico ontem conduzia, à saída de Buckingham, o "Libération" esclarece que o mesmo é feito à base de vinho inglês. Para logo acrescentar: "si, ça existe..."

sexta-feira, abril 29, 2011

Os cheiros da Europa

Um amigo português, inteligentemente sensível às coisas da vida, perguntava-me, há dias, numa rua de Paris, "o que era feito" daquela diferença de cheiros que, por muitos anos, nos identificava cada grande cidade europeia e lhe atribuía uma certa especificidade. Nesse momento, dei-me conta que já havia esquecido essa forte e impressiva realidade, que marcou bem quem viajava pelo continente, a partir dos anos 60 do século passado.

Hoje, prevalece por aí uma espécie de "franchising" de odores, feito de um ambiente de "mc'donaldismo" generalizado e do carbono dos motores, apenas compensado pelos aromas "standardizados" da (falsa) desodorização dos lugares públicos e de alguns perfumes sociais mais sofisticados, que ao lado nos passam "ao sol poente" (O'Neill dixit). Até a restauração comum, salvo algumas exceções mais étnicas (o outro lado da imigração), parece exalar para o exterior o mesmo "template" de cheiros, misto de fritos e abafados fumos, numa perspetiva benévola.

Embora presuma que não haja ainda nenhuma "diretiva comunitária sobre aromas públicos" (haverá?), a verdade é que a aproximação dos estilos de vida e de consumo acabou por conduzir a uma quase uniformização neste domínio, a qual, podendo fazer com que possamos ser tentados a nos sentir "em casa", em qualquer parte desta Europa, acaba por diluir, em muito, a graça que sempre terá a nossa inapagável diversidade.

Irei perguntar ao amigo que me suscitou este tema qual era o aroma predominante na Abadia de Westminster, no dia de ontem. Ele que foi o único português com assento por lá.

David Lopes Ramos (1948-2011)

Morreu David Lopes Ramos. 

Fui instrutor militar do David em 1973, na Escola Prática de Administração Militar, em Lisboa. Dei-lhe então aulas de "Acção Psicológica" (isso mesmo!). Vimo-nos fugazmente nos corredores da Revolução. Cruzámos histórias divertidas desses tempos nas poucas vezes que nos voltámos a encontrar - lembro, em particular, uma longa conversa numa esplanada no Funchal, ainda nos anos 70, onde descobrimos que ele era dois dias mais velho que eu, e uma noitada em Lamego, no final dos anos 90, num debate jornalístico-político, sob um pretexto vinófilo. Nunca cheguei a responder a um convite que me formulou para escrever um certo texto para o "Público", durante o tempo em que eu estava no Brasil. 

David Lopes Ramos era, para mim - e para muita gente com uma opinião bem mais qualificada que a minha -, sem a menor sombra de dúvida, o maior crítico gastronómico português.

Tradução automática

Leitor amigo chamou a minha atenção para algumas barbaridades a que a tradução automática dos textos deste blogue pode levar.

As vantagens de poder dar uma perceção do que aqui se escreve em inglês ou francês parecem, de facto, muito inferiores ao risco de ver ocorrer algumas distorções graves do conteúdo dos textos.

A tradução automática fica, assim, suspensa.

Quem dera que tudo na vida se pudesse corrigir de forma assim tão simples.

quinta-feira, abril 28, 2011

Marcos de Azambuja

O embaixador Marcos de Azambuja é um diplomata brasileiro de grande mérito e com uma graça pessoal infinita. Representou o Brasil em postos tão importantes para o seu país como a Argentina, a França ou junto das instituições internacionais, em Genebra. Conhecemo-nos, pela primeira vez, aqui em Paris, já há muitos anos e, pela última vez, coincidimos lado a lado, num voo da ponte "Rio-S.Paulo", creio que em 2008. Nunca terminámos uma conversa então iniciada.

Ontem chegaram-me, por mão brasileira amiga, os artigos que publicou em dois números da "Piauí" (uma revista que vivamento recomendo, a quem quer conhecer o melhor do Brasil). Os textos não são curtos (raramente são, na "Piauí"), mas trata-se de um impressivo mosaico de memórias, um olhar irónico sobre a vida diplomática, que muito bem se liga com o espírito deste blogue.

Leiam essas "Memórias pouco diplomáticas", com prometido gozo, aqui e aqui

Cortiça

A vinha de Montmartre é uma conhecida curiosidade agrícola no centro de Paris, de onde anualmente sai um vinho tinto que já faz parte da história da cidade. Nela foi plantado, no mês de Outubro, um sobreiro alentejano, como que a simbolizar o velho "casamento" entre o vinho e a cortiça.

Esta manhã, o "maire" local, o antigo ministro Daniel Vaillant, e eu próprio descerrámos um placa comemorativa desta implantação, ocasião que serviu para lembrar a importância da França como o mais importante destino comercial das rolhas de cortiça portuguesa.

Correndo embora o risco de desencadear algumas reações adversas por parte dos cultores da rolha de plástico, disse, na minha curta intervenção, que, no fundo, estávamos ali a celebrar o longo "casamento" da cortiça com o vinho, uma vida em comum que não prenuncia qualquer separação, não obstante a tentação recente do vinho por produtos mais novos...

Em tempo: devo declarar, para os efeitos patrimoniais devidos, que fui brindado com uma das 1500 garrafas que, no ano passado, a vinha de Montmarte produziu.

Morte

Hoje, mais uma vez, a A10 provou ser a estrada que tanto serve para conduzir os portugueses à alegria do encontro com as suas famílias como pode servir de cenário onde, nas últimas décadas, a vida de muitos terminou abruptamente. Seis cidadãos de origem portuguesa, bem como um francês, morreram esta noite, perto de Bordéus, num terrível acidente rodoviário. Que se pode dizer mais?

Em tempo: sobre o assunto, publiquei, em 29.4.1, no "Correio da Manhã". um artigo.

quarta-feira, abril 27, 2011

Marcel Gauchet

Uma "habituée" das sessões do centro cultural Gulbenkian, aqui em Paris, interveio para dizer que se tratara da mais interessante conferência-debate a que por ali assistira. Não sei se estava certa, mas a verdade é que quem ontem, ao final da tarde, ouviu Marcel Gauchet falar das "Metamorfoses da democracia" não perdeu o seu tempo.

O filósofo fez um curioso bosquejo da evolução da prática democrática, concordando com quantos colocam a nossa Revolução de abril na abertura da terceira vaga de libertação, que haveria de descer à América Latina, para retornar à Europa da centro e leste. Repetindo que "os homens fazem a História, mas não sabem a História que fazem", Gauchet singularizou o mítico "homem novo" como a tentativa de criar um ator que sabia a História que protagonizava. Nos debates, falou-se, entre outras coisas, da vitória do individualismo, com a "autodestruição doce" do poder coletivo. E a questão da legitimodade, em torno dos modelos de representação política, com as suas contradições e deceções, foi também abordada.

Saí da conferência "como uma seta": tinha à espera o Real-Barça... A filosofia era outra.

Ideias

A propósito de algumas patetices que, nos tempos que correm, aparecem por aí como soluções miraculosas no plano internacional, Laurent Fabius, antigo primeiro-ministro francês, com quem hoje estive num almoço, relembrava uma frase de François Mitterrand: "Il ne faut pas prendre toutes les mouches qui volent pour des idées" ("não devemos confundir todas as moscas que voam com ideias").

É bem verdade.

Hortaliças

Ontem, surgiu na televisão o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Roland Dumas, a propósito de um livro de memórias que acaba de lançar. 

Nesse instante, veio-me à ideia um episódio que teve lugar nos nossos primeiros tempos nas instituições europeias, numa reunião que decorria sob a sua responsabilidade, durante uma presidência semestral francesa.

O debate prolongara-se já muito pela noite dentro, nessas horas que a Europa guarda para as grandes decisões. A temática eram concessões em matéria de produtos agrícolas, incluídas num acordo com países terceiros, menos desenvolvidos. Tratava-se de matéria de grande sensibilidade, porque o peso do lóbi agrícola em vários Estados condiciona muito a liberdade dos governos para poderem fazer gestos de sentido político. Ao mesmo tempo, porém, esse era, como sempre é, o setor onde a abertura de facilidades por parte da Europa se revela mais interessante para esses países. O que estava em causa, naquele caso particular, era aquilo que em Portugal se designa por "produtos hortícolas".

A Espanha era, do lado europeu, o país com maiores dificuldades para aceitar o acordo, nos termos em que este era proposto pela Comissão Europeia. Com eleições dois dias imediatamente após essa reunião, o governo de Madrid entendia que permitir aberturas no seu mercado com impacto na economia agrícola do país poderia ser aproveitado pela oposição para acusar de fragilidade a sua nóvel política europeia. O representante espanhol na reunião, o embaixador Carlos Westendorp, estava "de mão atadas". Por um lado, toda a então CEE já tinha dado luz verde ao pacote de concessões, o que se traduzia numa grande pressão sobre a sua delegação. Esta, por seu turno, embora revelasse uma vontade para se juntar ao consenso, sentia que fazê-lo naquele momento poderia configurar um suicídio político.

Roland Dumas utilizou toda a sua habilidade de advogado para colocar os espanhóis face à responsabilidade política de serem eles a boicotar a decisão europeia, tanto mais que esta era aguardada com ansiedade pelos países contrapartes. Destacou que esta singularização negativa ia refletir-se, com toda a evidência, no modo como Madrid passaria a ser visto pelos Estados potenciais beneficiários das concessões.

Lembro-me que Portugal acompanhou a Espanha tão longe quanto foi possível. Mas, a certo ponto, o facto da Comissão Europeia ter acedido a colocar de fora da lista de concessões alguns produtos que, para nós, eram os mais sensíveis, bem como a importância política do acordo para o nosso quadro de relações externas, deixou-nos sem argumentos para continuarmos a nos opor ao entendimento.

A Espanha estava, assim, completamente isolada. Roland Dumas apelou a uma derradeira flexibilidade política dos espanhóis, dando a palavra a Westendorp. Este ensaiou um discurso dramático, perante o silêncio pesado e tenso que envolvia toda a sala. As 12 delegações nacionais (viviam-se então os tempos da Europa "a doze"), a Comissão Europeia e o secretariado-geral do Conselho bebiam as palavras do representante de Madrid, esperando uma cedência no último minuto, o que permitiria a todos regressarem ao descanso nos seus hotéis.

Como mandam as regras dos Conselhos de Ministros europeus, Westendorp falou em espanhol, com a delegação portuguesa a não necessitar, naturalmente, de tradução. Não mostrou qualquer flexibilidade. Pelo contrário, fez uma chamada à compreensão de todos pela difícil posição em que se encontrava.

A certo passo desse discurso, disse: "Ustedes deben entender que en España la cuestión de las hortalizas es una cuestión de Estado". A pausa que Westendorp fez suceder a esta frase, aguardando o impacto da interpretação simultânea que ia chegar aos ouvidos das restantes delegações, foi subitamente interrompida por risos surdos, oriundos da nossa delegação, assim como da meia dúzia de técnicos portugueses que faziam parte das delegações da Comissão e do secretariado.  

Para nós, portugueses, ouvir a expressão "hortalizas" (que é palavra espanhola para designar "produtos hortícolas") ligada ao conceito de "questão de Estado" havia desencadeado uma imparável e embaraçante epidemia de risadas, que se ia agravando à medida que olhávamos uns para os outros. Essa atitude, que soou pela sala como uma nota de desprezo pelo problema espanhol, tornava-se tanto mais grave quanto era muito difícil de explicar - desde logo aos espanhóis, que nos miravam com um fácies furioso, mas igualmente às outras nacionalidades, que tinham recebido com naturalidade a tradução de "produtos hortícolas". Ficámos, assim, sob um perplexo olhar coletivo, tentando, de modo esforçado, atenuar o nosso contágio de risadas. 

Já não me lembro como aquilo tudo acabou, apenas sei que nunca mais esqueci aquela madrugada europeia de risota lusa. Porque há leitores regulares deste blogue que estavam nessa nossa delegação, deixo-lhes a tarefa de confirmarem ou infirmarem os pormenores desta minha recordação. Talvez o (então) jovem chefe da delegação portuguesa, que ora circula pelos mais altos corredores de Bruxelas, tenha entretanto sido confrontado por alguém com as razões por que comandou esse pelotão imparável de riso, já lá vai quase um quarto de século.

terça-feira, abril 26, 2011

Politicamente correto

Ao rever o Tim Tim no Tibete (onde está um texto muito interessante sobre o 26 de abril), descobri esta imagem do "Almoço do trolha", um quadro que Júlio Pomar pintou, um ano antes de eu nascer, e onde está quase tudo o que o neo-realismo (eufemismo luso para realismo socialista) quereria significar. Recordo ter visto o quadro na exposição retrospetiva de Pomar, na presença do autor, na Pinacoteca de S. Paulo, em 2008.

A pintura de Júlio Pomar - ele que é, a meu ver, o maior pintor português vivo, e que agora "transita" entre Portugal e a França - segue hoje por outras vias. Imagino, porém, o que seria se ele decidisse dar, nos dias que correm, esse nome a um quadro. Com toda a certeza, logo surgiria um comunicado dizendo que chamar "trolha" a alguém representava uma inaceitável desqualificação profissional. Quando, na realidade, esse é talvez o maior elogio que a arte portuguesa fez àquela profissão.

Enfim, histórias do politicamente correto.

Síria

Portugal é um dos países europeus que tomaram a iniciativa de levar, com urgência, a crise síria ao Conselho de Segurança da ONU. 

O nosso país tem vindo a assumir, nos últimos anos, uma atitude diplomática muito afirmativa no Médio Oriente. Temos deixado as mensagens certas no quadro do nosso cada vez mais denso relacionamento bilateral, quer face aos parceiros árabes, quer perante Israel. Esta iniciativa é, assim, um ato de coerência e responsabilidade.

Impõe-se que uma questão como a que a Síria hoje suscita, que releva de uma inaceitável prática repressiva face aos seus cidadãos, não passe impune.  É essencial que a Europa mostre, também neste caso, que, sem deixar de ter em conta o particularismo de cada situação, é favorável às esperanças democráticas que hoje nascem por todo o mundo árabe. 

A Síria é um Estado central em todo o processo político da região. Com uma relação complexa com o resto da comunidade árabe, com uma ligação particular ao Irão, detendo um poder de influência sobre movimentos relevantes no levantamento palestiniano, é também em Damasco que reside a chave para a estabilidade do Líbano e, nesse sentido, para qualquer processo de paz minimamente eficaz e durável. Por essa razão, o caso sírio tem uma importância, à escala regional, só comparável ao Egito e muito para além da Tunísia ou da Líbia.      

sábado, abril 23, 2011

Otelo

Algumas pessoas espantam-se com afirmações recentes de Otelo Saraiva de Carvalho. 

Vale a pena notar que nada de isto é novo. Todos os anos, pela primavera de abril, alguma imprensa vai desencantar Otelo, que, honra lhe seja!, não se furta a aproveitar esse warholiano nicho de cíclica visibilidade para dizer umas coisas ao lado do "politicamente correto". Já faz parte da "saison". Os "abrilistas" entram em agonia, os seus detratores deliciam-se com o que acham serem os deslizes do ex-militar. Passa abril e Otelo volta a desaparecer. Até para o ano.

Não podemos pedir que Otelo não fale, porque todos nós devemos a Otelo a possibilidade de dizermos aquilo que nos vem à alma, até mesmo dizer que, "assim", o 25 de abril não terá valido a pena, que seria bom se a democracia pudesse contar com alguém com a inteligência de Salazar - como se houvesse figuras de neutral sapiência que, qual Fouché, serviriam todos os regimes.

Conheço mal Otelo Saraiva de Carvalho mas, diga-se desde já, tenho, face a ele, toda a gratidão do mundo. Por tudo o que fez por nós, há 37 anos. Algumas pessoas não perceberão isso. Problema delas, como dizem os brasileiros.

Um dia, em inícios de 1983, em Luanda, cruzei-me com Otelo num hotel. Não nos víamos desde o "verão quente", dos corredores do MFA, de idas ao Alto do Duque. Convidei-o a vir almoçar no dia seguinte a minha casa, com o João Sobral Costa, um amigo comum, um gigante de bondade que, como capitão da Força Aérea, havia feito parte do grupo ocupante do Rádio Clube Português, na noite de 25 de abril, e que trabalhava então em Angola. Sugeri que se nos juntasse o Arlindo Ferreira, outro capitão de abril, que estava em Luanda para outras "guerras" (e que já faleceu). Por aquelas "makas" (uso uma expressão angolana) em que a família militar (e a de abril ainda mais) é useira e vezeira, não se reuniu consenso para o Arlindo se nos juntar.

No dia do almoço, vim à porta de casa buscar Otelo, que ia acompanhado da mulher e de uma figura que não vem para o caso (mas que talvez pudesse explicar muita coisa). A minha residência era no "compound" da Embaixada, onde também funcionavam os serviços e o consulado-geral, na então rua Karl Marx, que antes fora chamada de Vasco da Gama e que, hoje em dia, é avenida de Portugal (evolução toponímica que daria para um mestrado...). 

A grande maioria dos funcionários da nossa missão diplomática em Luanda era constituída por antigos quadros da administração colonial, que tinham visto o percurso da sua vida perturbado pelo 25 de abril e pela independência do país que, em geral, sofriam bem mais do que celebravam. Não era, assim, legítimo pedir-lhes que entoassem loas à chegada do estratega da Pontinha. Um deles, boquiaberto, perguntou-me: "É o...?", sem ousar dizer o nome. Era, confirmei-lhe, e, nesse segundo, devo ter caído uns furos na sua escala de consideração, bem como na de outros a quem terá contado a inconveniente frequentação social do jovem diplomata que eu então era.

Esse almoço com Otelo foi uma ocasião que recordo como bastante simpática. Ele e o João Sobral Costa, que haviam sido vedetas de um filme onde eu só fiz umas "pontas" como figurante, conflituaram versões sobre o "documento do COPCON" (demoraria muito explicar aqui o que isso foi) e outras cenas desses tempos movimentados. Recordo-me de lhes ter lido extratos de um livro que Otelo não conhecia, escrito por um certo militar, onde se criticava o seu "silêncio" durante a célebre "assembleia selvagem" do MFA, em 11 de março de 1975. Rimo-nos todos, porque, como eu era ali o único que podia atestar, Otelo, de facto, não tinha então falado porque... não havia estado presente nessa tão badalada reunião!

Otelo chegara a Luanda vindo de Maputo. Iria partir dali para a Líbia. Alguma coisa importante, da sua vida e da sua história pessoal futura, iria ter a ver com essa viagem.

Otelo Saraiva de Carvalho é uma figura reconhecidamente controversa. Será. Porém, para mim, será sempre muito mais do que isso. Ponto.

Em tempo: Otelo Saraiva de Carvalho acaba de publicar "O dia inicial", um livro que conta, hora a hora, a sua leitura do 25 de abril. Li-o rapidamente mas, com franqueza, não me pareceu muito interessante. Além disso, as pequenas notas pessoais inseridas no final são de um impressionismo demasiado ligeiro. O seu velho "Alvorada em Abril" continua a ser muito mais curioso.  

Cioran

O meu amigo João de Vallera trouxe-me hoje, de passagem por Bruxelas, as "Oeuvres" de Cioran.

Neste sábado de Aleluia, passámos minutos divertidos a ler alguns "Syllogismes de l'amertume", até descobrirmos - nem de propósito! - este excelente naco:

"Pourra-t-on méridionaliser les peuples graves? L'avenir de l'Europe est suspendu à cette question. Si les Allemands se remettent à travailler comme naguère, l'Occident est perdu; de même si les Russes ne retrouvent pas leur vieil amour de la paresse. Il faudrair développer chez les uns et les autres le goût du farniente, de l'apathie et de la sieste, leur faire miroiter les délices de l'avachissement et de la versatilité.
... À moins de nous resigner aux solutions que la Prusse, ou la Sibérie, infligerait à notre dilettantisme."

(Poderemos meridionalizar os povos graves? O futuro da Europa está suspenso desta questão. Se os alemães se põem a trabalhar como outrora, o Ocidente está perdido; o mesmo acontecerá se os russos não reencontrarem o seu velho amor pela preguiça. Dever-se-ia desenvolver nuns e nos outros o gosto do "farniente", da apatia e da sesta, fazer-lhes ver as delícias do relaxamento e da versatilidade.
... A menos que nos resignemos às soluções que a Prússia, ou a Sibéria, infligiria ao nosso diletantismo)

Notas pascais (3)

1. "Mal ou bem, escrever é ainda a melhor maneira de nos sobrevivermos. Sim, feitas as contas, escrever é morrer mais devagar" - diz Marcello Duarte Mathias, em "Um ovo de Páscoa", o merecido "in memoriam" organizado pelos amigos de Paulo Lowndes Marques, que Mário Quartim Graça teve a amabilidade de me enviar.

2. Conflitualidades de agenda obrigaram-me a faltar ao concerto de Marisa na prestigiada sala Pleyel. Terei nova oportunidade para ouvi-la, com outros nomes grandes, no dia 10 de junho, no grande espetáculo sobre o Fado que Emanuel Démarcy-Mota acolherá no Theâtre de la Ville, em colaboração com a Câmara municipal de Lisboa.

3. Fala-se por aqui da possibilidade de suspensão, pela França, de certos aspetos do acordo de Schengen. Nada de novo: aquando da presidência portuguesa desse acordo, em 1997, a França, através do então ministro para os assuntos europeus, Michel Barnier, pôs em prática essa liberdade nacional, dessa vez para evitar tráfico de droga vindo de países mais a norte.

4. E lá se foi João Maria Tudela. A imagem de gentleman de extração tropical, com o "Kanimambo" a lembrar para sempre um Moçambique de outros tempos, fica-lhe colada à pele. 

5. Tinha prometido a mim mesmo que, enquanto estivesse em Paris, não deixaria de participar na marcha que, em Fontenay-sous-Bois, anualmente se faz em torno do 25 de abril, uma ruidosa parada de archotes e bombos, com a alegria com que aqui se sabe comemorar a Revolução, uma ideia lançada pelo meu amigo Baptista de Matos. Mas as boas intenções também podem ser derrotadas por impedimentos insuperáveis.

sexta-feira, abril 22, 2011

... e Steinbroken lá respondeu!

Em belo soneto a preceito, o Conde de Steinbroken respondeu ao desafio de João da Ega (que o "Diário de Notícias" hoje gentilmente reproduz)

Entretanto, e em atenção aos mais ignaros, o Notas Verbais foi obrigado a fazer pedagogia queirosiana.

Para quem quiser saber um pouco mais sobre esse vulto da diplomacia nórdica, aconselho uma visita aqui.

E deixo este daguerreótipo, bem raro, em que o jovem Steinbroken aparece, em férias em Jyväskylä, ao lado da sua irmã Toroteija, que uma tísica haveria de vitimar, poucos anos depois, ainda no alvor da sua juventude.

Notas pascais (2)

1. Gostei da capa da "Visão" ontem: "Como Portugal venceu as suas 10 piores crises: já fomos à bancarrota, já perdemos a independência, já vimos Lisboa destruída. E ainda cá estamos".

2. Serge Moiti é uma figura bem conhecida da televisão francesa. Escreveu um livro - "30 ans après" - no qual recorda a sua experiência na campanha mediática que, em 1981, levou François Mitterrand à presidência francesa. Sem ser uma obra deslumbrante, traz-nos os bastidores de um tempo muito interessante da vida política francesa.

3. Não deixa de ser curioso que muitos portugueses se entretenham a criticar as escolhas dos deputados que integram as listas partidárias em que já sabem que não vão votar.

4. Ontem, o meu colega japonês dizia-me que, depois do acidente de Fukushima, somado à memória eterna da bomba atómica, a ideia do nuclear causa hoje horror à população do seu país.

5. Ficou-se hoje a saber que Arnold Schwarzenegger, o antigo governador da Califórnia, que tem nacionalidade austríaca, gostaria de vir a ser "presidente da Europa". À Europa, de facto, já só falta um Terminator.

quinta-feira, abril 21, 2011

Notas pascais (1)

1. Convidámos para almoçar na residência casais de reformados portugueses residentes na região de Paris. É pena que só seja possível dar a conhecer a um número limitado dos nossos compatriotas em França aquela que é, precisamente desde há 75 anos, a nossa casa oficial em Paris.

2. Acabei ontem de ler o "M. le Président - Scènes de la vie politique (2005-2011)", uma espécie de retrato político do presidente Nicolas Sarkozy, assinada por Franz-Olivier Gisbert. Recordo-me de dois outros livros deste estilo, escritos por Gisbert, um a propósito de François Mitterrand, outro sobre Jacques Chirac. Enquanto que do primeiro transparecia uma subliminar sedução, o segundo era de uma grande violência crítica. O atual livro, muito bem escrito, junta as duas coisas. 

3. Bela vitória portuguesa no clássico espanhol, com José Mourinho e Cristiano Ronaldo a dar ao Real a Taça do Rei, que lhe escapava há 18 anos. Diga-se que, em "jogo jogado" (esta expressão saiu já do léxico do elaborado comentarismo desportivo contemporâneo, mas eu uso-a), entendo que o Barcelona merecia ganhar. Mas tudo é possível, num prolongamento. 

4. Faz hoje 9 anos. Jean-Marie Le Pen qualificava-se para a segunda volta das eleições presidenciais francesas, contra o recandidato Jacques Chirac, deixando para trás o socialista Lionel Jospin. A França e o mundo entraram em estado de choque. O candidato da extrema-direita foi esmagado na 2ª volta, mas ninguém mais esqueceu o que aconteceu nesse dia. Há razões para isso: sondagens hoje saídas dão à sucessora de Jean-Marie Le Pen, a sua filha Marine, um lugar "garantido" numa 2ª volta das eleições presidenciais de 2012. Será assim?

5. Longa e interessante conversa com o anterior embaixador francês em Lisboa, Denis Delbourg, e a sua mulher, Thérèse. É muito curioso notar o retrato que de nós - das nossas figuras, dos nossos hábitos, das nossas instituições - fazem pessoas que representaram em Lisboa um grande país europeu. Através de um olhar inteligente, neste caso com uma atenção também muito forte à nossa vida cultural, aprendemos a ver-nos melhor ao espelho.

quarta-feira, abril 20, 2011

"La femme d'à côté"

Íamos a entrar no Flore quando, subitamente, o meu amigo brasileiro me atirou: "De futuro, estou decidido a não ter conversas com 'la femme à côté' ".

Olá!, pensei para comigo... temos "caso"! E, com machista curiosidade, preparei-me para uma revelação, sobre alguma vizinha jeitosa e posta a jeito. Os franceses chamam a isso "la femme d'à côté", os anglosaxónicos "the girl next door". Escuso de dizer que isso faz parte do imaginário de muitos homens, alimentando livros e filmes, neste caso aquele que Truffaut realizou, já há trinta anos!, com esse nome.

Qual quê! Não era nada disso. O que o meu amigo queria dizer é que estava a tentar libertar-se do vício, bem irritante para os outros, de manter a mulher a par das conversas, quando fazia chamadas telefónicas. Disse-me que isso lhe acontecia agora com frequência, depois da "jubilação", quando passava mais tempo com o cônjuge, mas que isso lhe afetava a naturalidade do diálogo com os amigos.

Dei-lhe logo toda a razão. O facto de se estar a ter uma conversa telefónica com uma pessoa e saber, ou pressentir, neste caso quase sempre pelo tom do discurso, que essa mesma pessoa está a partilhar a conversa com alguém que está ao seu lado, às vezes com o telefone em "alta voz", é desagradabilíssimo: impede-nos de fazer um comentário mais pessoal, levando a que condicionemos a nossa própria conversa.

Espero que esse meu amigo consiga libertar-se do vício. É que há outros que já percebi que não conseguem.

Dito isto, a conversa deu-me uma ideia: vou rever o "La femme d'à côté" nesta Páscoa.

* um comentador sublinha - e bem! - a diferença entre "la femme d'à côté" e "la femme à côté". 

Michel Barnier

No âmbito de um excecional conjunto de palestras sobre a Europa que o Centro Cultural Gulbenkian, em Paris, tem vindo a levar a cabo, uma sala cheia ouviu, na segunda-feira, o comissário europeu Michel Barnier falar do projeto europeu, na ótica das suas responsabilidades no quadro da regulação do Mercado Interno.

Barnier é uma figura com um interessante percurso governativo - em França, foi ministro adjunto dos Assuntos Europeus, da Agricultura e dos Negócios Estrangeiros. Tem uma grande experiência europeia, como deputado e comissário com diversas responsabilidades.

Na ocasião, entendi dever prestar o meu testemunho sobre um homem de quem sou amigo há mais de 15 anos, um europeu que acredita na Europa e que sempre teve, para com Portugal, uma atitude de grande simpatia e disponibilidade. Passámos centenas (não é exagero!) de horas a negociar os tratados de Amesterdão e de Nice, cruzámo-nos nas discussões do acordo de Schengen e muita coisa tratámos no âmbito da política regional europeia. Estive em Paris, por mais de uma vez, a seu convite, recebi-o em Portugal, em várias ocasiões, visitei-o em Bruxelas outras tantas. Michel Barnier é um homem de convicções, que joga com as cartas em cima da mesa, o que não é vulgar, nas lides bruxelenses. Por isso, como elogio, qualifiquei-o mesmo como uma "exceção europeia".

terça-feira, abril 19, 2011

Paixão castrense

(Este post é dedicado a dois queridos amigos que, há dias, testemunharam o relato ao vivo desta história e que, a partir de hoje, infelizmente, vão deixar Paris)

Era nos tempos, não muito longínquos, em que as grandes embaixadas tinham três adidos militares - do Exército, Marinha e Força Aérea.

Um dia, numa dessas missões, algures no mundo, o adido da Marinha pediu para ser recebido pelo embaixador. Apresentou-se fardado, formalizado, o que prenunciava coisa séria. E era. O militar informou o chefe da missão que "estava apaixonado". Embora perplexo pela razão da partilha da intimidade, o embaixador teve uma reação do género: "pois seja muito feliz!".

A questão, porém, tinha outros contornos. É que a eleita do coração castrense, segundo o próprio logo esclareceu, era, nem mais nem menos, do que a secretária do conjunto dos adidos militares, a portuguesa Belinha, o que, de certa forma, tornava o cenário um tanto confuso. Confusão essa que também se acentuava pelo facto do militar ser casado e da sua legítima esposa permanecer na cidade e figurar na lista diplomática, como lhe competia.

A Belinha era uma morena, já passada dos quarenta anos, generosa nas formas e livre de compromissos. Entre a dactilografia de dois relatórios, o nosso militar terá baixado as suas defesas, sendo assim mobilizado a pôr o casamento em causa.   

Mas a razão principal da audiência chegou depois. O militar pretendia solicitar ao embaixador que a Belinha o pudesse acompanhar na receção do Dia Nacional do país em causa, que, a breve prazo, teria lugar na residência da embaixada. Apanhado de surpresa, o embaixador, homem liberal por natureza, logo retorquiu: "O convite é para si e para quem o meu amigo quiser trazer. Nada tenho a ver com a sua vida privada". Foi o que o homem quis ouvir. Adquirida que estava a ida da Belinha ao cocktail, o militar descansou, agradeceu e saiu, encantado.

Os problemas maiores estavam, contudo, para vir. Logo no dia seguinte, os adidos do Exército e da Força Aérea pediram uma audiência ao embaixador. Entraram graves e comunicaram-lhe que a situação era "escandalosa", que o ambiente no respetivo serviço se tornara impossível e que, se acaso o seu colega da Marinha teimasse em levar a Belinha ao Dia Nacional, eles e as suas mulheres não estariam presentes. E informaram que iriam dar conhecimento do insólito estado de coisas às respetivas hierarquias.

E assim aconteceu, tendo como consequência, a curto prazo, que o adido da Marinha embarcou de volta para o país de origem. Levou consigo a Belinha, pois claro. Rezam as crónicas que a sua carreira terá ficado prejudicada, mas o amor vale bem uma promoção. E, também ao que consta, viveram felizes, desde então. 

Ventos

segunda-feira, abril 18, 2011

Carta a um diplomata finlandês

Caro Steinbroken

Por estes dias, recordo as noitadas em que nos cruzávamos nos salões dos Maias, no Ramalhete, às Janelas Verdes, nas tertúlias que o José Maria retratou no livro a que deu o nome daquela família.

Lembro-me da generosidade com que você, diplomata finlandês, era recebido naquele cenáculo, onde, com carinho lusitano mas cosmopolita, entre mesas de whist ou numa ronda de bilhar, ou ouvindo-o a si como "barítono plenipotenciário", procurávamos atenuar a sua nórdica solidão.

Muita água passou sob as pontes. Você regressou aos gelos da sua Finlândia, eu por aqui fiquei, com a escassa fortuna que Celorico me deixou.

Há uns anos, caro Steinbroken, você escreveu-me para Lisboa, dizendo do agrado com que vira Portugal apoiar, com entusiasmo, a entrada do seu país na União Europeia. Elogiou o facto de, ao contrário de outros, não termos achado que a "finlandização" havia sido um imperdoável pecado histórico de agnosticismo estratégico, um genérico triste da "realpolitik". E recordar-se-á de eu lhe ter respondido, na volta do correio, que, conhecendo-o a si, nunca o tivera por seguidor do "better red than dead".

Noutra ocasião, você veio bater-me epistolarmente à porta, pedindo que deixasse cair uma palavra nas Necessidades, com vista a evitar que Portugal cedesse a um compreensível egoísmo, por mor dos fundos estruturais, a ponto de poder criar obstáculos aos Estados bálticos, “primos” da Escandinávia, que queriam então aceder à NATO e à União Europeia. A resposta da nossa diplomacia foi, reconheça, soberba: embora o alargamento fosse um passo que tinha em Portugal um dos países mais prejudicados, adoptávamos uma visão solidária da Europa, pelo que entendíamos que um mínimo de respeito histórico nos obrigava a acolher aqueles Estados no nosso seio. Da caixa de vodka que você me mandou, com um cartão catita, a agradecer a diligência, ainda me resta uma botelha.

Pensava partilhá-la consigo, Steinbroken, numa sua próxima vinda a Portugal, à cata de sol e de olho nos corpos morenos, Chiado abaixo. Passaríamos pelo Grémio, jantaríamos no Tavares e iríamos degustar o resto dos álcoois no meu terraço, Tejo à vista. Eu contar-lhe-ia a poética aventura eleitoral do Alencar, a carreira como banqueiro da besta do Dâmaso, o folhetim da venda da “Corneta do Diabo” à Prisa, a colaboração do Cruges com os “Deolinda”, a agitação do Gouvarinho e de outros tantos, nas lides que levam às Cortes.

Mas, agora, o que me chega? Que você foi ouvido, num dos últimos dias, passeando sob as árvores onde o verde já brota, ali na Promenade, no centro de Helsínquia, recém-saído do spa do vizinho Kämp, de braço dado com um alemão, com tiradas muito pouco simpáticas sobre Portugal e os portugueses. E que dizia você? Que, afinal, o compromisso político que a Finlândia havia dado à estabilidade do euro, que servira para a Grécia e para a Irlanda, poderia já não valer para Portugal. Ao seu lado, o alemão ecoava coisas parecidas, quiçá esquecido que o meu país, como todos os outros parceiros europeus, andou anos a pagar elevadas taxas de juro, para liquidar a fatura da reunificação da Alemanha, que hoje é, como sempre foi, o grande beneficiário do mercado interno europeu. 

É triste, caro Steinbroken, é muito triste que a frieza do vosso egoísmo lhes faça esquecer que a solidariedade é uma estrada de dois sentidos. Aqui, por Portugal, estamos a atravessar uma conjuntura difícil. Outras já tivemos, todas ultrapassámos. Mais recentemente, cometemos alguns erros, revelámos fragilidades que a crise sublinhou. Pensávamos poder contar com os amigos. Ao longo dos tempos, aprendemos a ser gratos a quem nos ajuda, a ser-lhes leais quando de nós necessitam. Não somos rancorosos, porque alimentar ressentimentos mesquinhos não está na nossa maneira de ser. E sabe porquê? Porque, na vida internacional, mantemos alguns sólidos valores, os mesmos que nos permitiram sobreviver nove séculos como país, um dos mais antigos do mundo, sabia? 

A vossa atitude, a vossa quebra de solidariedade, porque revela o conceito instrumental que têm da Europa, para utilizar uma frase que você repetia, entre outras platitudes árticas, pelas noites do Ramalhete, “c’est très grave, c'est excessivement grave…”.

Receba um abraço, ainda amigo, orgulhosamente (quase) mediterrânico do

João da Ega

O novo embaixador americano...

... em Portugal, segundo o Inteligência Artificial.