domingo, fevereiro 20, 2011

Mísia

... e, regressando ao fado, noto que Mísia voltou a Paris, para um espetáculo em que deu voz a textos escritos por mulheres portuguesas, que intitulou "Senhora da noite". Por lá se encontram versos de Agustina, Hélia Correia, Lídia Jorge, Adriana Calcanhoto, Amália e da própria Mísia.

Ontem, como me dizem que aconteceu nos restantes dias, o magnífico teatro Bouffes du Nord estava a abarrotar, com o fiel público que Mísia soube por aqui criar e que lhe correspondeu em pleno. À sua cuidada presença em palco, servida por um bom apoio instrumental, Mísia soma uma capacidade muito rara de comunicação com a plateia, onde sempre se insere uma atenção particular aos portugueses presentes.

Surpreende-me sempre a ousadia da cantora, que teima em seguir um caminho exigente e inovador em matéria de poemas e, frequentemente, na própria seleção das músicas, embora seja cada vez mais constante o recurso a temas tradicionais, em detrimento do "outro fado" que ensaiou em alguns dos seus primeiros discos. O que, para o meu gosto, é uma boa notícia.

Em tempo: a pedido, aqui fica um belo fado de Mísia.

Resignação II

"Estivemos no limite da banca rota", escreveu a agência estatal Lusa, julgando citar Pacheco Pereira.

Manifesto a minha solidariedade pessoal com a opção do jornalista: sempre é preferível ter a "banca rota" do que cair na "bancarrota".

Não se pode... ensiná-los? Ou será já irremediavelmente tarde?

Resignação

"Notícias às 24", RTPi, há minutos: "O presidente Saleh, do Iémen, anunciou que se vai resignar dentro de dois anos".

E nós, resignamo-nos com este "jornalismo"? 

sábado, fevereiro 19, 2011

João Moniz

Há já algum tempo, tive uma mostra sua na Embaixada. Na sexta-feira, fui ver os seus novos trabalhos, nas paredes do Consulado-Geral de Portugal em Paris, na exposição "Singularités du blanc", que é possível visitar até 11 de março.

João Moniz trabalha entre Lisboa e Paris. Nesta sua nova série, a cor desempenha um papel cada vez mais relevante, sobre o seu branco tradicional.

Cristina Branco

Uma das maiores vozes do nosso fado regressa agora com um novo disco, chamado "Não há só tangos em Paris". 

Pois não, também há por aqui fados e, na minha muito pessoal opinião, pena é que a fadista os não privilegie nos seus discos e no seu percurso musical. É que se a sua inegável versatilidade lhe facilita tomar outros caminhos, para além do fado, talvez Cristina Branco um dia venha a perceber - como outros cantores portugueses tardiamente entenderam - que a fidelização de um público se faz pela afirmação de uma identidade específica. O ecletismo é uma virtude, mas a virtude nem sempre é popular.

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

Carta de Inglaterra

Para um diplomata, o regresso a uma cidade onde viveu estimula um inevitável (e às vezes obsessivo) exercício de comparação das duas realidades temporais. No meu caso, sinto também um incontrolável tropismo para fazer juízos pessoais de valor sobre as permanências e as mudanças. Feitios...

Sucedeu-me agora com Londres, em dois dias que por lá passei.

Gostei de passear na calma de algumas ruas de Kightsbridge ou no bulício da Oxford Circus, de voltar a testar os sentidos no majestoso Food Hall do Harrods, de comprar chás bizarros no Fortnum & Mason, de me "atulhar" de livros na serenidade civilizada da Waterstone's de Picadilly, de apreciar as montras de fatos em Saville Row e das lojas de camisas em Jermyn Street. Não gostei de ver a Ryman, onde comprei as minhas primeiras "agendas-para-ano-e-meio", ter sido substituída por um loja de tecidos, de ver fechado para sempre o Oriel de Sloane Square, onde almoçava a lavar o olhar nas belezas londrinas, ao primeiro sol da primavera, de concluir que destruíram a casa de Park Lane onde Edgard P. Jacobs colocou o professor Mortimer a morar, no "A marca amarela". Gostei de ver a noite da City transformada numa festa que não existia no meu tempo, de sentir que o Peter Jones continua orgulhosamente impermeável à mudança, e que, poucos metros adiante, numa transversal a King's Road, a John Sandoe persiste com a mais criteriosa (e que só é anárquica para os não iniciados) escolha de livros de toda a cidade. Gostei de regressar à poeira de pub do Granadier, de ler que Taki segue politicamente incorreto e reacionário no insubstituível The Spectator, que o Evening Standard, apesar de gratuito, continua a dar razão a quantos acham imprescindível um jornal da tarde e de confirmar que, em matéria de rigor financeiro os motoristas de táxis londrinos batem bem a Standard & Poor's. E gostei, muito!, de rever amigas e amigos de sempre, essas âncoras, dispersas mas sempre sólidas, de uma vida de andarilho.

E, claro!, gostei de estar com mais de duas das quatro centenas de colegas "scholars" da Crabtree Foundation, no jantar anual de gala, que, desde 1954, sempre tem lugar na 4ª feira mais próxima do Valentine's Day, nessa perene instituição que se dedica ao culto da etérea memória de um homem que tem um passado cada vez mais cheio de futuro, que dá pelo nome de Joseph Crabtree. E, embora com o peso da especial responsabilidade que incumbe a um "foreigner" (não devemos ser mais de uma dezena, num mar de "bifes"), não direi que não tenha gostado da surpresa de ser entronizado como presidente anual da Crabtree Foundation, para 2011/2012. O Bartolomeu Cid dos Santos, por cuja mão entrei para este clube de culto, há quase duas décadas, deve estar a rir-se a bom rir...

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

"Diplomatie"

Intitula-se "Diplomatie" uma peça recentemente estreada, aqui em Paris, em que é imaginado um diálogo, em agosto de 1944, entre o cônsul sueco em Paris e o general alemão que comandava as tropas ocupantes, a quem Hitler havia ordenado que destruísse a capital francesa, na véspera da sua libertação pelas tropas aliadas. 

Na peça, o diplomata acaba por convencer o militar a não respeitar as suas instruções, através de um argumentário feito de inteligência e de intuição, onde elementos de humanidade se confrontam e misturam com lógicas políticas. Para a História: sabe-se que o diálogo nunca teve lugar, embora o cônsul sueco conhecesse pessoalmente o general. Este último viria a explicar as razões da sua decisão num livro de memórias, em que revelou como superou - da melhor forma! - o dilema que o atravessava.

Na audiência, os parisienses como que tomam consciência de que a sua bela cidade esteve "por um fio", com todos os seus grandes monumentos prestes a serem dinamitados. E, não obstante nunca se deixar de estar no domínio da ficção, talvez esta peça possa contribuir para saiam da sala com uma melhor imagem dos diplomatas...

quarta-feira, fevereiro 16, 2011

"Convite"

O truque só ficou revelado após alguns dos interlocutores terem trocado, entre si, experiências similares.

Aquele diplomata, homem jovial e simpático, já desaparecido há muito do mundo dos vivos, cuidava sempre em inquirir, através dos seus contactos, qual era a data e hora da partida das delegações portuguesas que lhe constava que visitavam a cidade onde estava colocado, como Cônsul-Geral.

Imaginemos, então, que uma delegação tinha previsto partir, de regresso a Portugal, numa 5ª feira, num voo à hora do almoço. Sabedor disto, o nosso homem, aí pela 3ª feira, cuidava em procurar o contacto com a chefia da delegação e formulava o seu "convite":

- Soube que estão por cá. Tenho uma semana complicada, cheia de compromissos há muito agendados, mas teria um grande prazer em convidá-los para jantar, em minha casa, na 5ª feira à noite.

A resposta era a óbvia. Os convidados "revelavam" que iriam partir na tarde desse mesmo dia, pelo que não podiam corresponder ao amável "convite" do Cônsul geral.

E o diplomata, "compungido", lá retorquia:

- Que pena! Tinha tanto gosto...

terça-feira, fevereiro 15, 2011

Françoise Giroud

Françoise Giroud foi uma figura marcante do jornalismo francês. Fundadora, com Jean-Jacques Servan-Schreiber, do "L'Express", destacou-se na afirmação do papel da mulher na sociedade francesa, o que a levaria a um governo de Valéry Giscard d'Estaing.

A sua biografia, agora publicada pela Grasset, representa-a como uma mulher cuja genialidade se cruza com a tragédia, onde os êxitos profissionais da vida se confundem com uma vida pessoal atribulada. O livro de Laure Adler tende, porventura, a sobrevalorizar excessivamente o tempo do "L'Express" e a dar a este, bem como a Servan-Schreiber, um lugar central no texto, assentando muito na (bem conhecida) bibliografia de Giroud e menos em testemunhos que a tenham por centro da investigação.

Mesmo assim, ou talvez porque na história do "L'Express" muita da nossa geração se revê bastante, o livro agora publicado tem interesse.

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Navegações

Era no tempo em que, no palácio das Necessidades, ainda havia ocasião para longas conversas (mas podia passar-se hoje...). Um jovem diplomata, em diálogo com um colega mais velho, revelava o seu inconformismo. A situação económica do país era complexa, os índices nacionais de crescimento e bem-estar, se bem que em progressão, revelavam uma distância, ainda significativa, face aos dos nossos parceiros. Olhando retrospetivamente, tudo parecia indicar que uma qualquer "sina" nos condenava a esta permanente "décalage". E, contudo, olhando para o nosso passado, Portugal "partira" bem:

- Francamente, senhor embaixador, devo confessar que não percebo o que correu mal na nossa história. Como é possível que nós, um povo que descende das gerações de portugueses que "deram novos mundos ao mundo", que criaram o Brasil, que viajaram pela África e pela Índia, que foram até ao Japão e a lugares bem longínquos, que deixaram uma língua e traços de cultura que ainda hoje sobrevivem e são lembrados com admiração, como é possível que hoje sejamos o mais pobre país da Europa ocidental.

O embaixador sorriu, benévolo e sábio, ao responder ao seu jovem colaborador:

- Meu caro, você está muito enganado. Nós não descendemos dessa gente aventureira, que teve a audácia e a coragem de partir pelo mundo, nas caravelas, que fez uma obra notável, de rasgo e ambição.

- Não descendemos? - reagiu, perplexo, o jovem diplomata - Então de quem descendemos nós?

- Nós descendemos dos que ficaram por aqui...

Bilhete de Paris

Há dias, passou aqui por Paris a jornalista Maria João Avillez. Falámos bastante sobre a Europa, em especial sobre o que resultou do último Conselho Europeu. 

No seu "Dia sim, dia não", na revista "Sábado" (10.2.11), que só ontem pude ler, sou citado a dizer:

"Daqui de Paris, sinto existir, um pouco por toda a Europa, a consciência de que chegámos a um processo de inevitável reajustamento dos equilíbrios de poder, que está já muito para além daquilo que pode ser gerido no quadro do Tratado de Lisboa. Goste-se ou não, as estruturas comunitárias foram ultrapassadas pela força do poder que determina a gestão do euro. A Europa percebe agora, com toda a crueza, que, no fundo, “aderiu ao marco”, pelo que tem de adotar, não apenas os critérios do “pacto de estabilidade e crescimento” que Theo Weigel impôs em 1997, mas outros que Berlim agora acha imperativos, à luz da recente experiência, para controlar possíveis derivas na zona euro, para cuja colmatação é pedido um esforço financeiro particular à Alemanha."

E, sobre a nossa posição nacional, disse:

"Neste contexto de exigência, Portugal assume, sem pejo, a sua fragilidade conjuntural mas, igualmente, mostra uma determinação rara para tomar todas medidas necessárias para lhe fazer face. Sem surpresa, alguns países europeus mostram bem maiores dificuldades do que nós para incorporarem o novo “pacto para a competitividade”. Não o lemos como um “diktat” de Berlim, mas como o último e razoável comboio para salvar a família do euro. Também por isso, parece-nos prematura a imputação de que, de uma Alemanha europeia, está a nascer uma simples Europa alemã."

É, de facto, o que eu penso. Outra coisa é saber se terei, ou não, razão.

domingo, fevereiro 13, 2011

Vergès

Jacques Vergès é uma espécie de "advogado do diabo". Aos 86 anos, esteve, há semanas, na Costa do Marfim a preparar a fundamentação para sustentar juridicamente a teimosia de Laurent Gbagbo em não abandonar o poder. No passado, entre muitas outras figuras, defendeu o terrorista Carlos, o nazi Klaus Barbie, o exterminador Pol Pot e outras figuras de recorte controverso. Saddam Hussein e Slobodan Milosevic estão entre os que não aceitaram a sua ajuda. George W. Bush é um nome que já anunciou desejar defender, no caso de ser possível a sua inculpação.

Membro da resistência francesa na 2ª guerra mundial, foi militante comunista e anti-colonialista, mantendo-se sempre próximo das ideias radicais de esquerda. É filho de pai francês e de mãe vietnamita, tendo vivido na ilha de Reunião e na Argélia, onde se tornou mundialmente famoso pela defesa com sucesso de uma militante da FLN, que viria a ser sua mulher. A sua história pessoal tem um "buraco negro" entre 1970 e 1978, período em que, sem explicação até hoje, desapareceu  de cena - o que gerou lendas sobre a sua eventual presença junto dos Khmers Vermelhos, do Cambodja, ou em campos da guerrilha palestiniana.

Mas a que propósito falo hoje dele aqui? Porque Vergès, numa iniciativa inédita mas muito curiosa, apresenta, duas vezes por semana, um espetáculo num teatro parisiense. Num monólogo de mais de hora e meia, em cenário do um escritório de advogado, fala dos criminosos e dos seus casos, contando histórias e desenhando perfis, tentando demonstrar que a sua famosa "estratégia de rutura", com que orienta as defesas, acaba por ser um modo de melhor fazer conhecer as pessoas por detrás dos crimes. A forma como apresenta a sua relação com a justiça torna a sua apresentação, apesar de algo monocórdica, bastante atrativa na substância. Com o caráter chocante que sempre confere a tudo em que se envolve, Vergès dá à sua prestação teatral o título de "Serial plaideur", da mesma forma que, em 2007, se prestou a ser a cara do filme com o nome de "O advogado do terror".

A juristas conhecidos que venham a Paris - com especial dedicatória ao meu velho amigo Marinho Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados - recomendo esta provocatória "performance" do seu incómodo confrade francês, em cena até 11 de abril.

Cumplicidades

Quando, aqui, há dias, eu me referia à proximidade das diplomacias da Índia e de Portugal, estava longe de pensar no que iria suceder, horas depois, no Conselho de Segurança da ONU.

Durante uma sessão a que estavam presentes os ministros dos Negócios Estrangeiros dos países que têm assento nesse órgão, o ministro indiano, por lapso, agarrou no texto que estava sobre a mesa, que o ministro português tinha preparado para a sua anterior intervenção (mas que não tinha usado, porque fez um improviso) e leu-o, durante alguns minutos. Só quando, a certo ponto, se dá conta de que o ministro fala como se fosse membro de um país da União Europeia é que é interrompido pelo seu embaixador, que lhe dá o texto do discurso indiano, não sem que tivesse havido uma embaraçosa hesitação.

Alguns detratores da vida diplomática viram neste incidente a prova de que, salvo em pormenores, a "langue de bois" das intervenções "onusinas" acaba por ser comum aos vários países. Mas as coisas podem ser vistas de outra forma: é cada vez mais natural que membros de governos democráticos possam sentir-se próximos na afirmação de uma linguagem comum sobre grandes temáticas internacionais. Por isso, o político indiano ter-se-á sentido confortável com o tom adotado no nosso discurso. A qualidade de membro da UE é que já seria demais!

Veja tudo aqui.

Gerard Castello-Lopes (1925-2011)

Há quase dois anos, tive o gosto de estar presente na inauguração de uma exposição de Gérard Castello-Lopes, num festival próximo de Angoulême. O fotógrafo estava, de há muito, incapacitado por doença. Faleceu ontem, aqui em Paris, aos 85 anos.

Conheci Gérard Castello-Lopes há uma boa década, num daqueles divertidos almoços de Agosto, em Sintra, em casa do Bartolomeu Cid dos Santos, em que o também já desaparecido anfitrião tinha o condão de juntar um grupo magnífico, de alguns dentre os seus inúmeros amigos. Recordo-lhe a voz forte e as gargalhadas francas, com que desfiava e acompanhava histórias da vida. Conhecia as suas anteriores andanças pelo quadro do meu ministério, quando fora tentado por José Cutileiro a fazer parte da delegação junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo. E, naturalmente, sabia do seu trabalho na área da cultura, em especial ligado ao cinema, uma paixão e negócio de família.

Curiosamente, iria ser na fotografia que Gérard Castello-Lopes mereceria um maior reconhecimento público. Os seus trabalhos, onde se podem ver as influências de Cartier-Bresson, desenharam um inultrapassado retrato antropológico de um certo Portugal e colocaram-no na escassa galeria dos nossos grandes fotógrafos. Por isso, creio que a melhor maneira de lembrá-lo hoje é publicar uma das suas belas fotografias.

À Danièle, deixo aqui o nosso abraço solidário.

sábado, fevereiro 12, 2011

"Les gardiens des murs"

 
Argel, a cidade branca, é uma das mais interessantes paisagens urbanas do Mediterrâneo. Ontem foi cenário de fortes tensões, ecoando o Cairo e Tunis.

A cidade tem uma história trágica de violência, desde a heróica luta pela independência até aos "anos de chumbo" dos atentados islamistas, que muito ajudam a explicar, embora não a justificar, os equilíbrios do seu atual regime.

A Argélia é também um país que diz bastante a muitos portugueses, que  aí foram acolhidos em tempos de exílio. Exílios que começaram com um dos últimos presidentes da I República, Teixeira Gomes, que se recolheu, até à sua morte, em Bougie (hoje Béjaia). Mais tarde, nos anos 60 e 70, Argel viria a funcionar como um dos principais centros da oposição ao Estado Novo, que por lá se cruzava com os independentistas das colónias portuguesas, para quem o novo país era um apoio seguro. O endereço da rue Auber, nº 13, onde funcionava a "Rádio Voz da Liberdade", que, pela noite, nos trazia épicas mensagens dos revolucionários portugueses, faz parte da memória de muitas pessoas da minha geração.

Estive em Argel algumas vezes, infelizmente quase sempre em grupos com forte segurança, pouco podendo usufruir daquele magnífico panorama que borda o porto e sobe pela encosta, com uma bela arquitetura colonial que, aos poucos, se perde no dédalo do casbah. Um dia, ao conseguir passear um pouco por uma rua comercial, com várias lojas a exibirem posters de Madjer, dei por mim a perguntar  à pessoa que me acompanhava, numa distração pateta, apenas para fazer conversa, o que fazia tanta gente sentada ou encostada aos prédios. A resposta dada pelo funcionário teve a graça cruel de quem assim qualificava os seus compatriotas sem emprego: "sont les gardiens des murs..."

Ontem, os "gardiens des murs" terão dado um passo em frente.

Temores

Telejornal do almoço da RTP 1, hoje: "Depois dos acontecimentos no Egito, teme-se que o movimento alastre a outros países vizinhos".

Teme-se?

Saudades de Brasília

Oferecido por um amigo brasileiro, chegou-me hoje um belo livro produzido pela "Camargo Corrêa", comemorativo dos 50 anos da cidade de Brasília. 

Das fotografias contemporâneas que o trabalho apresenta faz parte esta imagem. No típico léxico brasiliense, ela representa as "tesourinhas", o "eixão" e os "eixinhos", na "Asa Norte".

Em tempo: o "Correio Braziliense", o mais importante jornal de Brasília, herdeiro de um órgão de informação homónimo criado em 1808, em Londres, faz hoje (4.3.11) a este post. Leia aqui.

sexta-feira, fevereiro 11, 2011

Notas egípcias

1. É impossível, para quem o viveu, não deixar de pensar no nosso 25 de abril, ao observar a alegria simples do povo egípcio. Estes são os momentos mágicos da esperança, que antecedem o que aí vai vir, inevitavelmente, as muitas divisões e contradições de um processo que só agora começou. Mas este dia, para o Egito e não só, será sempre um fantástico momento.

2. Uma grande interrogação é saber o que farão as Forças Armadas egípcias, a partir de agora. Convém ter presente que elas estão no poder, naquele país, há quase 60 anos, sempre apoiando ditadores. Todos os presidentes egípcios, desde Nasser, foram militares. Não o tendo assumido até agora, poderão as Forças Armadas egípcias vir a ser tentadas a ter um papel "kemalista", como na Turquia?

3. Se as coisas correrem bem, esta nova situação pode abrir uma "janela de oportunidade" para a resolução da questão israelo-árabe. Pena é que o poder em Israel não dê mostras de perceber esse ensejo e se feche na sua lógica tradicional de só se sentir confortado com a instabilidade fragilizante ou com ditaduras à sua volta, como melhor alibi para justificar a sua própria rigidez.

4. Se "houvesse" Europa, o que se conseguiria agora fazer com o Egito! Não "havendo", vamos assistir, nos próximos tempos, à agitada coreografia de alguns Estados europeus, colocando-se em bicos de pés para seduzir as forças que lhes parecerem mais aptas a assumir o poder no Cairo. E ainda há quem por aí se preocupe com o Serviço Europeu de Ação Externa...

5. Se há algo que, depois dos acontecimentos da Tunísia e do Egito, ficou bem provado foi a importância da internet, o papel decisivo das redes informáticas para o contacto entre as pessoas e para a difusão da informação. Quase que valeria a pena, como gesto de reforço da liberdade e da democracia, incluir o livre acesso informático como um dos novos Direitos do Homem.

"Live"

Começo a ficar farto da sofreguidão imediatista de quem me telefona, logo de manhã, a comentar "Já viste o estado da praça Tahrir?'" ou, à tarde, "Olha que o Mubarak já está em Charm el-Cheikh!".

Será que não podemos esperar pelos telejornais da noite?

Em tempo: pelos vistos, não! Chegou-me, entretanto, o "O Mubarak já se demitiu!".

quinta-feira, fevereiro 10, 2011

Embaixadas

A embaixada britânica em Paris situa-se hoje no nº 39 da rue du Faubourg Saint-Honoré, um imponente edifício, a dois passos do palácio do Eliseu, sede da presidência da República francesa.

Ontem estive por lá, num encontro de trabalho. A certo ponto, quando alguém gabava a dimensão e o porte da residência, bem como o seu belo jardim, não me contive de dizer, para espanto de muitos: "Este prédio já foi a Embaixada de Portugal, no final do século XVIII". E revelei que também o edifício onde hoje está o Hotel Ritz, na place Vendôme, foi também residência de antecessores meus.

A Embaixada de Portugal está hoje muito bem instalada, num edificio adquirido em 1936, no nº 3 da rue de Noisiel. Mas muitos outros endereços tivemos já por esta cidade de Paris, como o hotêl des Bretonvilliers, na Île de Saint-Louis, de que mostro uma imagem da época.

Bem gostaria de, um dia, poder fazer um completo inventário da nossa presença por aqui.

Em tempo: um nosso comentador fez notar que a nossa atual Embaixada fará, em 2011, 75 anos. Boa lembrança para ser explorada... 

Alberto Oliveira e Silva (1924-2011)

Alberto Oliveira e Silva tinha um belo historial de luta contra a ditadura. Era advogado. Foi ministro da Administração Interna, em 1974, e governador civil de Viana do Castelo. 

Em Outubro passado, por motivos ligados à sua qualidade de provedor da Santa Casa da Misericórdia de Viana de Castelo, tivemos uma derradeira e longa conversa ao telefone. Relembrámos então a sua velha amizade com a minha família e, em especial, um último jantar em que havíamos estado juntos, aquando de uma iniciativa do jornal "Aurora do Lima". Prometi visitá-lo no Natal, compromisso que não cumpri. Faleceu em Viana, hoje, com 86 anos.

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

De acordo!

A intervenção pretendia-se incisiva, com um argumentário que o diplomata tinha por inequívoco. Aquela reunião, em sessão restrita, entre delegados de Estados da então União Europeia a "quinze", estava a destinada apenas a confirmar a "separação das águas", no âmbito de uma negociação muito complexa, em que as posições assumidas por cada país eram mais ou menos expectáveis. No fundo, pouco mais havia a fazer do que constatar a impossibilidade de se gerar um consenso, ainda que mínimo, com todas as consequências políticas que esse impasse iria gerar, obrigando o assunto a subir a outras instâncias.

Tendo acabado de tomar a palavra, o diplomata recostou-se na cadeira, colocou o auscultador da interpretação simultânea no ouvido e dispôs-se a escutar as duas intervenções que se iriam seguir, oriundas de delegados de países que, de uma forma há muito evidenciada, estavam abertamente do outro lado da "barricada".

E, no entanto... o nosso homem começou a ficar perplexo quando ouviu o primeiro dos oradores afirmar que concordava, no essencial, com aquilo que acabara de ser dito, felicitando-o mesmo pela "evolução" que mostrara, na "nova" posição assumida. Pensou tratar-se de um equívoco desse colega, facilmente corrigível. Mas, com espanto, escutou o orador seguinte dizer, basicamente, a mesma coisa, também se congratulando com a sua intervenção.

O diplomata ficou angustiado. A sala começava a olhar para ele. Não sabendo bem o que fazer, não podendo "agarrar-se" a coisas substanciais, porque aquelas duas intervenções tinham sido curtas e genéricas, limitado-se a "apoiar", com assumido entusiasmo, a sua intervenção, decidiu pedir a palavra à presidência da sessão. Esta procurou dissuadi-lo, até porque havia ainda mais oradores inscritos. Em desespero, o diplomata pediu então para fazer um "ponto de ordem" - um vetusto truque, em torno de aspetos da "ordem de trabalhos", que permite efetuar uma interrupção e que, com habilidade e rapidez na passagem da mensagem, dá ocasião para dizer o que se quer:

- "Senhor presidente. Esta minha intervenção prende-se com as que os dois oradores precedentes fizeram. Verifiquei, com surpresa, que eles concordaram com o que eu disse. Ora eles não podem estar de acordo comigo, porque eu sei que não estou de acordo com eles! Por isso, ou eu me enganei no que disse, embora não consiga perceber em quê, ou a interpretação não funcionou. De qualquer forma, peço que da ata desta sessão não conste que eu disse o que parece que terei dito..."

A sala explodiu de riso, claro!

Índia

Almocei hoje, num pequeno grupo, com o antigo ministro - das Finanças e, posteriormente, dos Negócios Estrangeiros - da Índia, Yashwant Sinha, figura destacada do maior partido da oposição do seu país. Ao meu lado, o antigo ministro francês das Finanças, Francis Mer, lembrou-me, a certa altura da conversa, a fantástica realidade de que quase metade do eleitorado democrático do mundo está na Índia.

Para o que aqui nos importa, devo dizer que fiquei impressionado ao ver Sinha afirmar, de forma espontânea, quando abordou as relações do seu país com a União Europeia: "Foi graças a Portugal, na sua presidência em 2000, que a Índia recebeu o estatuto de "parceiro estratégico" da União Europeia. Isso representou uma mudança muito importante nas nossas relações com a Europa".

Recordo bem esses tempos. A ideia foi avançada por nós numa "troika" de diálogo político da UE com a Índia, em fins de 1999, em Helsínquia. Ela foi acolhida com visível desagrado por parte da então MNE finlandesa, Tarja Halonen (hoje presidente da República do seu país), que não terá apreciado ver o exercício que conduzia ser desvalorizado pelo anúncio de um "upgrading" cuja titularidade lhe iria fugir. É a vida... Graças à cumplicidade do comissário Chris Patten, a quem tínhamos informado da nossa iniciativa, foi possível conseguir concretizar, em escassos meses, essa ideia. As autoridades indianas viriam a demonstrar, posteriormente, e em diversas ocasiões, o seu forte apreço político por esse gesto de Portugal. A referência hoje feita por Yashwant Sinha ao assunto demonstra que o mesmo terá ficado registado na memória diplomática indiana.

terça-feira, fevereiro 08, 2011

Cadeiras

Aquele adido cultural, enviado para uma das novas embaixadas abertas num antigo país comunista do leste europeu, estava a revelar-se uma figura um tanto irritante, na constante exibição de uma pretendida omnisciência. A sua escolha fora bastante contestada, mas pressões bem executadas e amigos nos lugares certos no tempo exato haviam-lhe feito ganhar o lugar. Constava mesmo que ainda não tinha acabado o respetivo curso universitário.

A embaixada era pequena, embora nela existisse um espaço que, futuramente, teria condições para vir a ser utilizado para a realização de atividades culturais. Mas a falta de qualquer equipamento tornava, por ora, completamente inútil a presença do adido, o qual, desde a sua chegada, nada mais fazia do que "mandar bocas" e passear-se pelos escritórios. O embaixador e o secretário, numa reação que também não deixava de ter algo de corporativo, estavam já a começar a ficar fartos do indesejado adido.

Um fim de tarde, espojado nos sofás do gabinete do embaixador, o nosso homem desenvolvia as suas já habituais projeções sobre o manancial de ações que, um dia, pretendia levar a cabo, para glória da cultura portuguesa naquelas inóspitas paragens. Tratava-se de mera conversa virtual, que não conseguia convencer os diplomatas, fartos desse desfiar de ilusões e já desconfortáveis com a forçada coabitação com o "dolce fare niente" do cavalheiro, cujo ócio era bem pago pelo erário.

Mas o adido não era pessoa para se deixar abater perante esse palpável ceticismo dos diplomatas e continuava no seu mundo de futuros. Para tornar mais credíveis os seus projetos, simplificava mesmo as necessidades. Nesse dia, para encurtar argumentos, adiantou:

- Estive a pensar e, na prática, só preciso, para começar, de uma mesa e de umas 40 cadeiras.

O embaixador olhava para ele com um ar translúcido de cansaço com a conversa, o que terá encorajado o secretário de embaixada a dizer, em voz baixa:

- Talvez 41...

Intrigado, o chefe da missão olhou para o seu colaborador direto, tentando perceber o preciosismo. O adido também. O secretário não teve então outro remédio senão esclarecer, agora já com um sorriso algo ácido, consciente de que iria degradar para sempre as suas relações com o homem da cultura:

- É que, se você pedir mais uma cadeira, pode acabar o curso...

Garanto a veracidade do essencial desta história.

Mário Lopes

Mário Lopes é um homem simples, com o sorriso simpático de quem está de bem com a vida. Uma vida que ele soube construir a pulso, desde que chegou a França, até atingir o patamar cimeiro que hoje tem na sua profissão, aqui em Paris.

Há dias, recebeu, pela segunda vez, o título do "melhor cabeleireiro de França". E tem blogue. Leia mais sobre ele aqui.

Parabéns, Mário. 

A outra África

... mas a África não são só tragédias políticas e humanas.

Cabo Verde deu, no passado fim de semana, uma imagem de sólida maturidade democrática. Mais um, como o sublinha (e bem!) um comentador.

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Sudão

Valerá a pena afivelar, como hoje o faz parte da comunidade internacional, um sorriso de satisfação pela secessão da parte sul do Sudão, depois de um referendo? Os diplomatas são profissionais do otimismo, mas, devo confessar que tenho alguma relutância em assumi-lo como sentimento num processo em que apenas está resolvida uma parte formal das muitas e decisivas questões que, a partir de agora, se vão colocar aos dois novos Estados. A guerra civil foi terrível, com dois milhões de mortos ao longo de quase 20 anos, pelo que alguns entendem que, pelo menos, o futuro sempre será melhor. Pode ser que seja.

Os EUA, inspiradores deste processo, e as Nações Unidas, que o credibilizaram, não podem agora "lavar as mãos", com facilidade, quando estamos apenas no intervalo de um jogo em que falta disputar a segunda parte: das questões de delimitação fronteiriça aos mecanismos para a distribuição dos réditos do petróleo (e alguém duvida que o nome deste novo país, qualquer que ele venha a ser, será sempre sinónimo de "petróleo"?), das regras de atribuição de cidadania às transferência das populações que está por realizar e, "last but not least", a delicada questão hidrográfica e dos acessos por via terrestre. Para além do muito que ninguém fala: desmobilização militar, desarmamento, desminagem, implantação de estruturas de Estado, etc.

Nestes tempos de celebração, poucos referem também uma questão que talvez se repute já um preciosismo histórico: a circunstância desta independência representar uma quebra à sábia "regra de ouro" da Carta da antiga Organização da Unidade Africana, que previa o respeito pelas fronteiras do colonialismo, como travão à "balcanização" étnica ou religiosa do continente. Esperemos apenas que mais este precedente (infelizmente, não único) não venha a ser usado, futuramente, em outros cenários de conflito, por partes de Estados que legitimamente podem sentir-se tentados a reclamar idêntico tratamento. Pode ser que tenham a sorte de não ter petróleo...

domingo, fevereiro 06, 2011

"Contrepourrisme"

O programa humorístico "Les Guignol" inventou, esta semana, o conceito de "contrepourrisme" ("contre" ou "pour"), para qualificar a atitude diplomática de alguns países ocidentais face aos regimes cadentes na Tunísia e Egito e às revoluções que os assolam - que passaram de um apoio mais ou menos explícito ao "statu quo ante" à súbita colagem às virtualidades da revolta popular que se voltou contra os mesmos, acompanhada por uma fervorosa denúncia de autoritarismos que, durante décadas e até semanas antes, ninguém parecia ter notado.

Esta diplomacia do embaraço não se ficou, contudo, deste lado do Atlântico. Com efeito, ela afetou igualmente a administração americana, com o espetáculo, pouco comum, de vermos um enviado especial de Washington ao Cairo vir a assumir posições públicas que contrariam a linha oficial do seu próprio governo.

Os dias não estão fáceis... 

Escudero

Hoje, já quase com 80 anos, revisitei, na televisão francesa, Leny Escudero, essa voz magnífica da minha juventude.

Com a vivacidade que nunca perdeu, Escudero lembrou a sua chegada a França, em 1939, com os pais, refugiados da guerra civil de Espanha, uma memória que esteve muitas vezes presente na sua obra. E notou o caráter trágico desse tempo, relembrando um facto que, frequentemente, é branqueado pelo pretenso "equilíbro" das atrocidades: morreram muitas mais pessoas depois do fim da guerra, assassinados sob as ordens de Franco, do que durante o próprio conflito.

Mas, para aligeirar este post dominical, ouçamos, com prazer, Escudero no seu inesquecível "Pour une amourette".

sábado, fevereiro 05, 2011

Ximenes Belo

Há nomes que desaparecem no tempo, não obstante terem estado presentes, de forma muito pronunciada, no nosso passado.

Ao ler há pouco, no Notas Verbais, que ia ser atribuído um prémio ao bispo Ximenes Belo, lembrei-me de quando Portugal inteiro vibrava com a coragem desse religioso, que soube dar voz e unidade à luta dos timorenses pela sua liberdade. Ximenes Belo foi um exemplo de determinação, causando mesmo algum incómodo à diplomacia da Santa Sé, cuja atitude perante o caso timorense - e esta é a minha opinião, que não escondo - nem sempre esteve à altura da responsabilidade exigível a um poder de influência que, historicamente, se reivindica de uma ética de princípios que não me parece compatível com exasperantes taticismos florentinos. O bispo Ximenes Belo viria a afastar-se de Timor-Leste, por razões de saúde. Vive atualmente em Moçambique, onde exerce atividade religiosa.

Em 1999, fui obrigado a abandonar uma tarefa que estava a fazer em Nova Iorque, no âmbito de uma Assembleia Geral da ONU, para me juntar, em Genebra, ao bispo Ximenes Belo e a José Ramos Horta - as duas figuras distinguidas, em 1996, com o prémio Nobel da Paz. Tratava-se de procurar garantir a condenação da Indonésia na Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas, depois da violência que se desencadeara no território, na sequência do referendo que consagrou a vontade de independência dos timorenses. A Indonésia continuava numa posição muito relutante, pelo que consagrar o seu isolamento político no plano internacional continuava a ser essencial. 

O governo de Jacarta havia mobilizado todos os seus recursos e influências para derrotar a moção que queríamos ver aprovada. O trabalho de sensibilização de várias delegações em Genebra, muito bem conduzido pelo embaixador Mendonça e Moura, seria por nós os três apoiado, nos dois dias que antecediam a votação, numa ronda intensa de contactos. Na memória ficou-me a recordação quase caricata de ir, com o nosso embaixador, bater à porta da residência do representante diplomático de um país lusófono africano, que necessitava de algum estímulo para estar presente, na manhã seguinte, naquela importante votação.

O dia do voto foi dramático. A Comissão era presidida pela irlandesa Ann Anderson, que, há dois anos, vim a encontrar, aqui em Paris, como embaixadora do seu país. Outra irlandesa, Mary Robinson, era, à época, Alta-Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Visitei-a logo após a minha chegada à Suíça e, naquilo que dela dependia, deu total apoio às nossas pretensões. Articulei com o bispo Belo e com Ramos Horta o teor dos nossos discursos. E tivemos sucesso: a Indonésia sofreu uma esmagadora derrota e saiu condenada dessa votação.

Porque o mundo que fala a nossa língua é (e ainda bem!) o que é, lembro-me que grande parte da conversa entre mim e os dois representantes timorenses, no "Falcon" que nos levou depois a Lisboa, acabou por ser sobre... futebol português.

Mirandês

A Fundação Gulbenkian levou a cabo, no passado dia 3, um interessante debate em torno da língua mirandesa. O Mirandês é uma língua (de raíz ásturo-leonesa) falada em áreas dos concelhos de Miranda do Douro e de Vimioso, por alguns milhares de pessoas. Durante muitos anos, não teve forma escrita, sendo um modo de expressão nas famílias e entre cidadãos do meio rural.

O autor de um livro sobre o tema, publicado em França, "Le Portugal bilingue", Michel Cahen, acompanhado pelo professores José Meirinhos e Maria Benedita Basto, fez uma apresentação sobre as peculiaridades daquela que é a segunda língua oficial de Portugal, dos riscos que a sua sobrevivência corre e dos esforços que têm sido feitos para a promover, como um fator de orgulhosa singularidade de uma micro-região. Entre outros aspetos, foi curioso ver sublinhado pelo professor José Meirinhos o facto do Mirandês nunca ter sido objeto de "apropriação" política ou regionalista, situação muito comum em línguas minoritárias.

Não deixa de ser de destacar que algumas dezenas de pessoas se tenham mobilizado, no final de tarde, em Paris, para se deslocarem à Gulbenkian, para assistirem a este debate. Entre essas pessoas contava-se, há que dizê-lo, o embaixador de Portugal, que é tão transmontano como o próprio Mirandês.

O blogue Froles Mirandesas, colocou este post em língua mirandesa. Aprecie aqui:

La Fundaçon Gulbenkian lebou a cabo, ne l passado die 3, un antressante debate an torno de la lhéngua mirandesa. L Mirandés ye ua lhéngua (de raíç ásturo-leonesa) falada an árias de ls cunceilhos de Miranda de l Douro i de Bumioso, por alguns miles de pessonas. Durante muitos anhos, nun tubo forma scrita, sendo un modo de spresson nas famílhias i antre cidadanos de l meio rural.

L'outor dun libro subre l tema, publicado an Fráncia, "Le Pertual bilingue", Michel Cahen, acumpanhado puls porsores José Meirinhos i Maria Benedita Basto, fizo ua apersentaçon subre las peculiaridades daqueilha que ye la segunda lhéngua oufecial de Pertual, de ls riscos que la sue subrebibéncia cuorre i de ls sfuorços que ténen sido feitos pa la promober, cumo un fator d'ourgulhosa singularidade dua micro-region. Antre outros aspetos, fui curjidoso ber sublinhado pul porsor José Meirinhos l fato de l Mirandés nunca tener sido oubjeto de "apropiaçon" política ó regionalista, situaçon mui quemun an lhénguas minoritárias.

Nun deixa de ser de çtacar qu'alguas dezenas de pessonas se téngan mobelizado, ne l final de tarde, an Paris, para se zlocáren a la Gulbenkian, para assistíren a este debate. Antre essas pessonas cuntaba-se, hai que dizir-lo, l'ambaixador de Pertual, que ye tan strasmuntano cumo l própio Mirandés.

sexta-feira, fevereiro 04, 2011

Nuno Teotónio Pereira

Nuno Teotónio Pereira é uma figura pública discreta. A imprensa só fala dele a espaços. Arquiteto de profissão, marcou um tempo muito importante nesse domínio, deixando o seu nome ligado a obras emblemáticas.

Mas Nuno Teotónio Pereira é muito mais do que um profissional brilhante. É uma figura ética que, desde sempre, soube afirmar posições de grande rigor cívico, em especial na área do cristianismo crítico, a que a política não esteve nunca alheia. Corajoso opositor do Estado Novo, foi por ele sujeito à prisão e à tortura.

Os nossos caminhos cruzaram-se em algumas "aventuras improváveis", pelos tempos de abril. Contudo, conheço-o mal, o que não impediu que sempre por ele tivesse um grande respeito e admiração.

Pelos vistos, não estou só. Hoje, pelas 16 horas, nos seus 89 anos, será homenageado na sala de conferências da igreja que, com Nuno Portas, desenhou e que foi construída na rua Camilo Castelo Branco, em Lisboa. Na ocasião, falar-se-á das cooperativas "Pragma" e "Confronto", iniciativas que, nos anos 70, mobilizaram Nuno Teotónio Pereira, suscitando as iras e a repressão do regime ditadorial.

Guerra colonial

Faz hoje 50 anos, iniciou-se em Angola a revolta contra a administração portuguesa, tema que, no ano passado. nesta mesma data, aqui abordei. Iniciava-se a nossa primeira guerra colonial.

Um amigo chamou, há poucos dias, a minha atenção para o facto de eu utilizar, com regularidade, a expressão guerra colonial, entendendo-a, aparentemente, como algo agressiva face a certos setores nacionais. Perguntou-me por que não falava em "guerra do ultramar" ou "guerra de África".

No léxico público português, o conceito de "guerra do ultramar" está ligado à ficção de que os territórios africanos que estiveram sob administração portuguesa, até 1974, eram "províncias ultramarinas", escondendo desta forma a realidade atrás das palavras. O facto de estarem "para além do mar", conceito de natureza geográfica, não retira a dimensão colonial à realidade que se pretende qualificar. Curiosamente, parece esquecer-se que o termo "colónias" (e até o de "império colonial") foi utilizado até muito tarde, pelo Estado Novo. Só quando os ventos descolonizadores se tornaram ameaçadores no plano internacional é que apareceu oficializado o conceito de "províncias ultramarinas" - no nunca convincente mito do "Portugal do Minho a Timor". Mais tarde, e como alguns se lembrarão, Marcelo Caetano viria mesmo a crismar com o equívoco nome de "Estados" os territórios de Angola e Moçambique, a exemplo do que fora usado para o "Estado da Índia".

As "possessões" (outro termo que, significativamente, se usava no salazarismo, paralelamente ao conceito de "ultramar") africanas e asiáticas eram simples colónias e, como tal, foram sempre consideradas pela comunidade internacional - a qual, valha a verdade, nunca foi "inimiga" de Portugal mas sim da ditadura que sobrevivia no nosso país. Contrariamente aos tempos do Estado Novo, em que quem falasse de "colónias" tinha a certeza de vir a sofrer represálias, hoje é perfeitamente legítimo, na democracia que a Revolução do 25 de abril nos trouxe, referir o "ultramar" ou as "províncias ultramarinas".

É óbvio que esta questão se prende com o problema da "guerra". Para alguns, o conceito de "guerra do ultramar" é mais confortável e a ideia de guerra colonial pode ser lida como potencialmente deslegitimadora da luta dos nossos soldados, entre 1961 e 1974.

Nada de mais errado. As Forças Armadas portuguesas conduziram, nesses 13 anos, um esforço de preservação da soberania portuguesa sobre as suas colónias, conforme lhe era ordenado pelo regime então vigente. Fizeram-no com o profissionalismo e o sentido patriótico a que sempre nos habituaram, arcando com sacrifícios em termos humanos que o país deve reconhecer e prestigiar. Os militares portugueses que intervieram nas guerras que Portugal disputou nessa África - todos os combatentes, mas, em especial, os feridos e os mortos - não são de "esquerda" nem de "direita", sendo patético ver a sua dignidade, muitas vezes, refém de aproveitamentos sectários, como se vê em algumas romagens de saudade. Esse militares lutaram por Portugal, na perspetiva do país que o regime impunha, defendendo o que lhes apontavam como sendo a nossa bandeira. E, contrariamente a certas vozes que por vezes emergem, tão patriotas eram os soldados que lutavam contra os movimentos independentistas das colónias (chamados então de "terroristas") como quantos se opunham, no interior ou exilados no estrangeiro, ao regime ditatorial que vigorava no país. Desigualizá-los em patriotismo é assumir a ideologia da ditadura. Hoje isso não é proibido, mas não deixa de ser significativo.

Convém também lembrar que foram essas mesmas Forças Armadas - as quais, com o seu esforço, tinham dado ao regime muito tempo para uma resolução política da questão colonial - que derrubaram o regime ditatorial e instauraram o sistema democrático. Foi a necessidade dessa rutura, que teria sido evitável se tivesse havido uma negociação tempestiva, que conduziu a uma independência atribulada das colónias, com dramas humanos - para os portugueses e para os povos colonizados - que eram perfeitamente escusados.

Por tudo isso, porque as coisas são o que são, continuarei a usar, aqui e como noutros contextos, a expressão guerra colonial. Outros podem optar por uma "terceira via", para fugir ao dilema: falar das "guerras de África" ou das "campanhas de África". Eu continuarei a chamar as coisas pelos seus nomes.

quinta-feira, fevereiro 03, 2011

"L'Huma"

Há noites, à conversa num café parisiense, falou-se do "L'Humanité", o diário do "Parti Communiste Français" (PCF), um jornal que já teve melhores dias, aliás como a própria formação partidária cujas opiniões reflete. 

Sem surpresas, porque se conheciam as suas inclinações ideológicas, um amigo presente revelou que comprava, com regularidade, o "L'Huma" (como, simplificadamente, o jornal é por vezes designado). 

A sua mulher esclareceu, contudo:

- Eu não leio o "l'Huma". Não gosto de jornais que não têm horóscopos.

Um terceiro comparsa não resistiu e comentou:

- Mas olhe que, durante muitos anos, já teve. Só que se enganou em todas as previsões.

Marcos Portugal

Apesar da temperatura negativa, centenas de pessoas deslocaram-se, na noite de 1 de fevereiro, à église Saint-Roche, em Paris, para apreciar as "Matinas de Natal" de Marcos Portugal, interpretadas pelos solistas, coro e orquestra do "Ensemble Turicum".

No intervalo, o musicólogo Ruy Vieira Nery deu aos presentes uma magnífica lição sobre o autor desta peça musical, figura pouco conhecida mas que teve grande importância na Europa, na viragem do século XVIII para o século XIX. A peça que foi interpretada, criada para o Natal do (então) príncipe dom João, refugiado no Rio de Janeiro, é marcada por um tom de festivo onde se conjugam a formação europeia e a influência brasileira no seu autor.

Mais um belo espetáculo que a Fundação Gulbenkian proporcionou ao público parisiense.

Corrupção

Leio na imprensa portuguesa que impendem sobre o advogado Ricardo Sá Fernandes cinco processos relacionados com a denúncia que fez de uma tentativa de corrupção, levada a cabo por um empresário nortenho, o qual pretendia evitar que o irmão do advogado dificultasse um negócio que entendia afetar o interesse público.

É triste verificar que a justiça portuguesa, pelo emaranhado do seu formalismo, pode constituir-se numa objetiva proteção a atos delituosos, ao desincentivar denúncias que poderiam preveni-los.

Conheço mal Ricardo Sá Fernandes, com quem apenas convivi, durante alguns meses, num governo de que ambos fizemos parte. Mas quero deixar-lhe aqui a minha solidariedade cívica. 

quarta-feira, fevereiro 02, 2011

No Flore

O tema da conversa, por aqui muito atual e polémico, eram as reformas e as diferentes idades em que, nos diversos países, a elas se tem acesso. 

No grupo em que a questão se discutia estava a mulher de um embaixador aposentado, que logo comentou:

- Reforma?! Isso é terrível! Passamos a ter o "dobro" do marido, com metade do salário.

Que exagero!

terça-feira, fevereiro 01, 2011

Dois anos

Começou há dois anos a "aventura" que é este blogue, iniciado no dia em que assumi funções em Paris. 

Devo dizer que, se me surpreende a minha constância na sua escrita, muito mais me admiro da "pachorra" com que me lêem. Mais de 20 mil leitores por mês "é obra".

Assim, hoje, se me permitem, e para comemorar, não vou escrever mais nada. OK?

Em tempo: permitam-me que agradeça, na pessoa da "regressada" Helena Oneto, a amiga simpatia de todos os que me leem.

Médio Oriente

Não deixa de ser curioso observar a preocupação revelada por Israel na preservação do regime egípcio, nisso se colocando mesmo em clara contradição com a mais recente atitude americana.

Telavive percebe que um eventual surto de instabilidade no Cairo, que possa fazer desaparecer ou diluir a constante diplomático-militar em que se tinha transformado o seu grande vizinho do sul, altera, por completo, a equação das forças na região.

Mas, a julgar pelo passado, nem mesmo a atual situação vai fazer perceber aos dirigentes israelitas o  risco de uma política feita de intransigência e de falta de sentido de compromisso, que apenas serve para ganhar tempo, mas cuja potencial fragilidade, a prazo, condena o Estado de Israel a viver naquilo que aparenta ser uma cegueira estratégica.

segunda-feira, janeiro 31, 2011

Transparência

O conceito de "transparência", que agora o WikiLeaks trouxe à moda, tem vindo a ser discutido, desde há décadas, no âmbito das instituições europeias. A partir de certo momento, alguns governos, saudavelmente pressionados pela opinião pública, foram induzidos a tornar mais escrutináveis as decisões que, em nome do seu país, tomavam no âmbito das reuniões comunitárias. Essa pressão vinha dos seus parlamentos e da própria opinião pública, com a comunicação social a tornar-se crescentemente inquisitiva neste âmbito. Com o tempo, as instituições abriram-se bastante a esse escrutínio, mas muitos observadores consideram que esse esforço é hoje contrariado por muitas jogadas de bastidores, onde o essencial se decide.

Na segunda metade dos anos 80, quando Portugal entrou para as instituições europeias, o tema da "transparência" era quase desconhecido. Um dia, durante um conselho de ministros comunitário, um governante de um Estado onde essa temática já fazia o seu caminho, anunciou, logo no início da sessão, que pretendia abordar o assunto com os colegas, pelo que solicitava à presidência de turno para o inscrever no ponto "outros assuntos" - que recolhe, no final da agenda oficial, temas diversos, que não serão objeto de votação.

Nesse instante, um colaborador do ministro saltou da fila traseira e disse-lhe algo ao ouvido. O governante suspendeu a intervenção e olhou, em volta, para a sala. Porventura, terá então ponderado que a sensibilidade deste novo tema, de grande interesse para toda a imprensa, poderia ser relativamente incompatível a sua abordagem num auditório onde cada uma das 12 delegações tinha, pelo menos, seis membros, a que havia que somar o pessoal da Comissão europeia e do secretariado-geral do Conselho de ministros. E logo anunciou:

- Pensando melhor: vou abordar o tema ao almoço.

Por toda a sala, ouviram-se gargalhadas. É que, no tradicional almoço, participam apenas os ministros, um comissário e dois ou três colaboradores. Afinal, tão "preocupado" estava o governante com a "transparência" que, desde logo, evitava que a sessão plenária tomasse conhecimento do que sobre ela ia dizer... 

Fundo

Sou amigo de dois dos três dos organizadores da conferência “Portugal 2011: Vir o Fundo ou Ir ao Fundo?”, que hoje teve lugar em Lisboa.

Isso não me impede de lamentar que esses amigos não entendam que o trocadilho redutor que inventaram é mais próprio de portugueses com razões para terem pena de si mesmos.

"Al-Ahram"

A propósito da deliciosa história "diplomática" que o Notas Verbais foi hoje buscar ao "Al-Ahram", lembrei-me do que há meses, diretamente do Cairo, publiquei aqui.

Lisa Santos Silva

Se acaso estiver ou passar por Paris, recomendo que não deixe de ver, no Centro Cultural Gulbenkian (51 avenue d'Iéna, a dois passos dos Champs Elysées), a exposição de Lisa Santos Siilva, uma pintora portuguesa que reside em Paris, intitulada "Are you ready Lola?".

Há por ali - a conferir - reminiscências assumidas de Velasquez, com uma "touche contemporaine déroutante", como dizia ontem o "Journal de Dimanche". Uma agradável surpresa, que vale bem a visita.

Em Paris

"Tim Tim no Tibete" muda-se para Paris. "À suivre" as suas próximas aventuras.

domingo, janeiro 30, 2011

31 de Janeiro

120 anos nos separam hoje da primeira revolta republicana em Portugal. O "31 de janeiro", para além de uma tentativa falhada de golpe militar contra a monarquia dos Bragança, foi igualmente um sobressalto cívico, traduzindo o mal-estar que atravessava o país por virtude do "ultimatum" britânico - que, sem fundamento que não fosse a ameaça da força, impedia Portugal de afirmar o direito soberano de ligar as suas colónias de Angola e Moçambique, depois de um notável esforço de exploração levado a cabo pelo nosso país, no sul do continente africano.

Entusiasmado pela recente implantação da República no Brasil, o movimento republicano português tentou, com alguma imprecisão organizativa, o derrube da monarquia. Não tendo alcançado o seu objetivo, foi sujeito a uma inédita vaga repressiva, o que viria a acentuar a sua radicalização. 

Seriam ainda precisos mais 19 anos para a República nascer em Portugal, em 5 de outubro de 1910.

Cairo

"Comovente", foi como alguém qualificou o cordão humano que  a televisão mostrava hoje de manhã a cercar o museu do Cairo, para defender essa preciosidade sem preço, onde se alberga uma memória que pertence à humanidade.

Os egípcios, orgulhosos da sua história, aprenderam as lições do Iraque, em 2003, onde a barbárie das turbas salteadoras do museu de Bagdad contou com a inculta displicência dos invasores americanos, que nada fizeram para evitar o saque e a pilhagem de peças insubstituíveis.

sábado, janeiro 29, 2011

O vison voador

O título deste post é retirado de uma peça de teatro em que entrava o Raul Solnado, que me lembro de ter visto no "Villaret"*. A história é, contudo, outra.

Era um velho mordomo, homem com muitos anos de casa, que por ela já vira passar imensos embaixadores ou, como ele dizia, que já havia "sofrido muitos embaixadores". Naquela noite, estava escandalizado. A ocasião social estava a ser demasiado "solta" para os hábitos da casa. O nível dos convidados era abaixo daquilo a que estava habituado. Talvez o facto do embaixador ser novo, sem experiência local, o tivesse induzido a franquear a entrada a "toda a espécie de gente". O acesso para o espetáculo musical, organizado na residência do embaixador, fazia-se quase sem controlo. O mordomo, bem ciente dos seus deveres, pusera, entretanto, a bom recato as pratas da casa e os bibelots mais frágeis, ou de dimensão à medida dos bolsos. 

A noite estava fria e a mescla de convidados fazia conviver, no hall de entrada, toda a espécie de casacos, desde os mais simples aos mais requintados. Não se esperava tanta gente, pelo que os cabides não chegavam e os abafos amontoavam-se sobre bancos corridos. "Uma vergonha!", pensava o nosso homem, saudoso de noites bem mais requintadas, porque, para nostalgias snobes, não há como os velhos mordomos.

Algumas horas e muitos copos depois, acabada a música e esgotadas as vitualhas, os convidados iam saindo, espaçados no tempo, com os mais resistentes a deixarem prolongar as conversas, espojados pelos sofás. O mordomo, já ultrapassado pelos acontecimentos, mantinha-se no hall, apenas atento à movimentação residual, desejoso que aquela noite terminasse, de uma vez por todas. Tal como a entrada, a saída fazia-se também sob um total descontrolo, com os visitantes a procurarem os seus casacos, revolvendo nas pilhas amontoadas. O mordomo, num  gesto de delicadeza, ajudava-os a vestirem-se, o que subliminarmente também traduzia a vontade de os ver pelas costas. 

Já passava da uma hora da manhã. A certo momento, ouviu-se uma exclamação: "O meu vison?! Onde está o meu vison?". Uma dama confrontava-se, alarmada, com a desaparição da sua dispendiosa pele. E, em recurso, voltou-se para o mordomo: "O senhor viu o meu vison?"

Impecável mas impotente, o nosso homem esclareceu, com o possível rigor, olhando o que restava da resma de casacos: "Por aqui, minha senhora, os visons já acabaram cerca da meia-noite!"

* A Dra. Helena Sacadura Cabral sustenta, num comentário, que não foi no "Villaret", mas sim no "Monumental". Esses 300 metros de distância fazem toda a diferença: entre eles ficavam o "Porão da Nau", o "Convés", a "Mourisca", o "Montecarlo" e o restaurante-bar "Monumental", por onde passava metade de alguma vida lisboeta de então.

O ocidente e a "rua árabe"

É difícil e arriscado procurar reduzir a modelos simplificados de explicação realidades que são muito complexas. O vento de instabilidade que afeta vários Estados árabes, para além das sementes de mútuo contágio, traduz realidades e relações de força muito diferentes. Mas não deixa de ter pontos comuns.

Com graduações e formatos institucionais diversos, todos esses regimes em crise são marcados por fortes sistemas de autoridade, às vezes sob a forma de uma figura predominante, noutros casos com uma preeminência das forças armadas, noutros ainda com uma combinação de ambos os fatores. Ora a História ensinou-nos - ensinou-nos? - que todos os formatos institucionais que não sejam regularmente legitimados de forma democrática têm, a prazo, uma necessária fragilidade. Essa fragilidade agrava-se se o sistema não conseguir proporcionar um desenvolvimento económico, com eficaz distribuição da riqueza e, como se viu claramente no caso tunisino, se não for capaz de corresponder aos anseios de uma classe média emergente, aculturada aos padrões ocidentais. De forma clara, o fim das barreiras de informação tem também um crescente e importante papel, até porque é na juventude que a ela tem acesso, muitas vezes sem emprego e sem perspetivas, que assenta muita da potencial "mão-de-obra" manifestante.

No caso do mundo árabe, estes fenómenos cruzam-se ainda com a presença do fator religioso, que tem uma relevância diferenciada em cada caso nacional mas que, onde e quando emerge com força, por via de proselitismo de influência ou mesmo por via democrática, coloca desafios de outra natureza. É que o Islão tem uma mundividência diferente de todas as outras grandes religiões, influenciando todas as áreas da vida quotidiana, a que a política não escapa. E, nas suas versões mais radicais, é incompatível com os modelos democráticos tradicionais.

Se a vida internacional não fosse uma coisa muito séria, quase poderíamos dizer que se torna hoje irónico ver o mundo ocidental a fazer figura de "barata tonta" face ao terramoto que abala o mundo islâmico: tanto se sente tentado a prolongar (sem o assumir abertamente) uma "realpolitik" que acaba por ser cúmplice de certas situações que (apenas retrospetivamente) acha intoleráveis, como aparece excitado (mas, lá no fundo, receoso com o que dai pode resultar, poque não dispõe de influência para condicionar o rumo das coisas) perante o aflorar desorganizado da vontade popular em certos Estados. 

Por uma vez, sejamos francos: o mundo desenvolvido euro-americano está - no mundo árabe, na África negra ou em certas zonas asiáticas - simplesmente a colher, não aquilo que plantou, mas o que deixou crescer, porque lhe dava jeito. E, claramente, não sabe hoje o que fazer.

"Maxime"

O "Maxime", ali na praça da Alegria, é um ícone da noite lisboeta. De cabaret de luxo nos anos 40, foi passando, entretanto, por fases mais ou menos faustosas. Na sua juventude, parte da minha geração também andou por lá, brevemente, na viragem das décadas 60/70, embora o "Bolero" (depois o "Jamaica"), no Martim Moniz, fosse então o destino de eleição. Senti que o "Maxime" ia perdendo o brilho de outros tempos. Constante, apenas se mantinha o seu típico barbeiro, à entrada.

Há uns anos, a Lena e o Bo Backstrom, dois bons amigos de há décadas, decidiram "pegar" no "Maxime" e transformá-lo num espaço de bar e espetáculos, com um toque de modernidade, aberto a públicos mais jovens, recrutando artistas que iam de revelações a consagrados, alguns esquecidos pelo tempo, com certo "kitsch retro" pelo meio (recordo-me de, no Brasil, e a seu pedido, ter andado em busca de Nelson Ned). Por alguns anos, as coisas terão corrido relativamente bem, embora com muito esforço.

As crises, porém, também são cruéis para as noites. A aventura desta fase do "Maxime" acaba precisamente hoje, com um último espetáculo e uma última festa, que se anuncia "de arromba". 

Para a Lena e para o Bo, que investiram muito de si neste projeto, aqui deixo um forte abraço de solidariedade e de ânimo. Eu sei que, para eles, deixou já de existir a praça da Alegria.

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...