quarta-feira, fevereiro 09, 2011

De acordo!

A intervenção pretendia-se incisiva, com um argumentário que o diplomata tinha por inequívoco. Aquela reunião, em sessão restrita, entre delegados de Estados da então União Europeia a "quinze", estava a destinada apenas a confirmar a "separação das águas", no âmbito de uma negociação muito complexa, em que as posições assumidas por cada país eram mais ou menos expectáveis. No fundo, pouco mais havia a fazer do que constatar a impossibilidade de se gerar um consenso, ainda que mínimo, com todas as consequências políticas que esse impasse iria gerar, obrigando o assunto a subir a outras instâncias.

Tendo acabado de tomar a palavra, o diplomata recostou-se na cadeira, colocou o auscultador da interpretação simultânea no ouvido e dispôs-se a escutar as duas intervenções que se iriam seguir, oriundas de delegados de países que, de uma forma há muito evidenciada, estavam abertamente do outro lado da "barricada".

E, no entanto... o nosso homem começou a ficar perplexo quando ouviu o primeiro dos oradores afirmar que concordava, no essencial, com aquilo que acabara de ser dito, felicitando-o mesmo pela "evolução" que mostrara, na "nova" posição assumida. Pensou tratar-se de um equívoco desse colega, facilmente corrigível. Mas, com espanto, escutou o orador seguinte dizer, basicamente, a mesma coisa, também se congratulando com a sua intervenção.

O diplomata ficou angustiado. A sala começava a olhar para ele. Não sabendo bem o que fazer, não podendo "agarrar-se" a coisas substanciais, porque aquelas duas intervenções tinham sido curtas e genéricas, limitado-se a "apoiar", com assumido entusiasmo, a sua intervenção, decidiu pedir a palavra à presidência da sessão. Esta procurou dissuadi-lo, até porque havia ainda mais oradores inscritos. Em desespero, o diplomata pediu então para fazer um "ponto de ordem" - um vetusto truque, em torno de aspetos da "ordem de trabalhos", que permite efetuar uma interrupção e que, com habilidade e rapidez na passagem da mensagem, dá ocasião para dizer o que se quer:

- "Senhor presidente. Esta minha intervenção prende-se com as que os dois oradores precedentes fizeram. Verifiquei, com surpresa, que eles concordaram com o que eu disse. Ora eles não podem estar de acordo comigo, porque eu sei que não estou de acordo com eles! Por isso, ou eu me enganei no que disse, embora não consiga perceber em quê, ou a interpretação não funcionou. De qualquer forma, peço que da ata desta sessão não conste que eu disse o que parece que terei dito..."

A sala explodiu de riso, claro!

7 comentários:

Anónimo disse...

...delicioso...o post!
gf

Helena Sacadura Cabral disse...

O que eu ri Senhor Embaixador, logo hoje que me vi a falar quase meia hora com uma criatura que me tratava por "tu" e eu desconhecia completamente!
Cheguei a casa tão cansada como se tivesse corrido a maratona!
Quem seria a outra que parecia ser eu, meu Deus?!

Anónimo disse...

Senhor Embaixador: verdadeiramente delicioso,e parece que felizmente inesgotavel, o manancial de episódios que nos conta sobre esse mundo para o comum dos mortais tão desconhecido.
Eduardo

Anónimo disse...

Assim é que é... Viva a coerência!

Isabel BP

Anónimo disse...

Bem, a despedida do bode expiatório naquela base do se não podes com eles junta-te a Eles é a melhor forma de desarmamento nalguns contextos... Até de Chicos espertos...

Gostei foi do expectável...

A mim também me acontece isso às vezes em salas de expectantes(Indução de partos de Ideias do Nada a não ser passar o tempo e aumentar o vazio) de discussões de sexo dos anjos à espera de um nado vivo que nasce normalmente com malformações de inovação criatividade e capacidade de resolver os verdadeiros problemas da humanidade, logo a tender para a aquisição e posse da obsessão do poder individual...

Agora subscrevo o comentário gf só delicioso... tudo tudo até para além do post.
Isabel Seixas

Anónimo disse...

Senhor Embaixador

Tem que publicar um livro com estas histórias. Tenho a certeza que superarão os livros de Lawrence Durrell.

LBA

cunha ribeiro disse...

É aqui, na narrativa curta, que o nosso Embaixador é mestre. Um deleite ler estes pequenos textos onde o suspense cresce, e o cómico de situação o enobrece.
Plenamente de acordo com LBA.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...