sábado, janeiro 29, 2011

O vison voador

O título deste post é retirado de uma peça de teatro em que entrava o Raul Solnado, que me lembro de ter visto no "Villaret"*. A história é, contudo, outra.

Era um velho mordomo, homem com muitos anos de casa, que por ela já vira passar imensos embaixadores ou, como ele dizia, que já havia "sofrido muitos embaixadores". Naquela noite, estava escandalizado. A ocasião social estava a ser demasiado "solta" para os hábitos da casa. O nível dos convidados era abaixo daquilo a que estava habituado. Talvez o facto do embaixador ser novo, sem experiência local, o tivesse induzido a franquear a entrada a "toda a espécie de gente". O acesso para o espetáculo musical, organizado na residência do embaixador, fazia-se quase sem controlo. O mordomo, bem ciente dos seus deveres, pusera, entretanto, a bom recato as pratas da casa e os bibelots mais frágeis, ou de dimensão à medida dos bolsos. 

A noite estava fria e a mescla de convidados fazia conviver, no hall de entrada, toda a espécie de casacos, desde os mais simples aos mais requintados. Não se esperava tanta gente, pelo que os cabides não chegavam e os abafos amontoavam-se sobre bancos corridos. "Uma vergonha!", pensava o nosso homem, saudoso de noites bem mais requintadas, porque, para nostalgias snobes, não há como os velhos mordomos.

Algumas horas e muitos copos depois, acabada a música e esgotadas as vitualhas, os convidados iam saindo, espaçados no tempo, com os mais resistentes a deixarem prolongar as conversas, espojados pelos sofás. O mordomo, já ultrapassado pelos acontecimentos, mantinha-se no hall, apenas atento à movimentação residual, desejoso que aquela noite terminasse, de uma vez por todas. Tal como a entrada, a saída fazia-se também sob um total descontrolo, com os visitantes a procurarem os seus casacos, revolvendo nas pilhas amontoadas. O mordomo, num  gesto de delicadeza, ajudava-os a vestirem-se, o que subliminarmente também traduzia a vontade de os ver pelas costas. 

Já passava da uma hora da manhã. A certo momento, ouviu-se uma exclamação: "O meu vison?! Onde está o meu vison?". Uma dama confrontava-se, alarmada, com a desaparição da sua dispendiosa pele. E, em recurso, voltou-se para o mordomo: "O senhor viu o meu vison?"

Impecável mas impotente, o nosso homem esclareceu, com o possível rigor, olhando o que restava da resma de casacos: "Por aqui, minha senhora, os visons já acabaram cerca da meia-noite!"

* A Dra. Helena Sacadura Cabral sustenta, num comentário, que não foi no "Villaret", mas sim no "Monumental". Esses 300 metros de distância fazem toda a diferença: entre eles ficavam o "Porão da Nau", o "Convés", a "Mourisca", o "Montecarlo" e o restaurante-bar "Monumental", por onde passava metade de alguma vida lisboeta de então.

12 comentários:

Anónimo disse...

Os sapatos são ideais para andar de bicicleta...

Já a peça não vi, mas confesso que desde logo tenho Pena.
Isabel Seixas

patricio branco disse...

um comentário quase cinematografico, muito visual, à medida que a hisória vai avançando vamos vendo a cena e o personagem.
Ou teatral, dava para um pequeno sketch no palco ou na televisão.

José Martins disse...

Senhor Embaixador,
Um dos meus, menos sofrível, embaixador, numa dessas festas ficou sem a caneta de ouro. Na varanda da residência, com uma vista babulosa para um grande rio, por norma era nesse espaço, largo, que os convidados bebiam uns copos, acompanhados de uns aperitivos. Na parte lateral, embutidas na parede, havia umas prateleirinhas para expor uns “bibelots” e uns livros.
.
O meu menos “sofrível” embaixador tinha ali deixado a sua caneta “Du Pont” de ouro e foi pilhada. Porém os convidados tinham nível... Mas já antes tinham desaparecido umas pratinhas de valor e fácil de meter ao bolso.
.
Nunca se sabe se um convidado sofre da cleptomania, como sofria uma senhora rica, inglesa, desse mal. Quando entregava a ordem das compras no “City Stores” (Beira-Moçambique), dava umas voltas pelo estabelecimento e tinha que roubar sempre uma cebola ou duas batatas que metia, pela socapa na malinha de mão.
.
Os empregados do balcão davam por isso e não lhe diziam nada... Agora uma caneta de ouro não era uma cebola ou duas batatas.
Saudações de Banguecoque
José Martins

Helena Sacadura Cabral disse...

Sempre achei que se não devem levar visons para onde tenham que se tirar. O meu - sou cautelosa com o que é bom - tem número de identificação que só eu e a peleira conhecemos. Foi assim que o consegui recuperar numa "troca melindrosa" operada num cocktail numa Embaixada...
Dizem que sou muito espertinha!

patricio branco disse...

de facto uma caneta de ouro não é o mesmo que duas batatas e uma cebola. Divertido comentário de José Martins

Anónimo disse...

Bem pertinente, o comentário mordaz do interessante Mordomo que reduziu ou promoveu o vison a sapato de cristal de Cinderela...

Oh... Quem tem brio não tem frio, e a pele essa... Precisa de ausências de pele para identificar o frio gerado...

Pensando bem foi bem feita.
Isabel seixas
Sem qualquer despeito pelo vison , só solidariedade com o Mordomo

Helena Sacadura Cabral disse...

A peça, a teatral, passava no Teatro Monumental. A dona do vison era Io Apoloni, escultural, dentro dele.
Eu, apanhei um castigo por o ter ido ver sem autorização paterna.
A actriz viria, mais tarde, a casar-se com um político da nossa praça. E, mais tarde ainda, a separar-se. Quem os aguenta?!

Julia Macias-Valet disse...

E agora !? Quem tem razao ? Helena SC ou FSC ?

Para tirar a prova dos 9 faça um clique na linha que se segue :

http://2.bp.blogspot.com/_GA5JVIwB-5Y/Sz8y6RBzhCI/AAAAAAAAAlU/IZPkyoHNJQ0/s320/49.jpg

Helena Sacadura Cabral disse...

Cara Julia
Pode ter estreado no Villarett. Eu vi no Monumental. E, como eu, também outros viram. Com efeito, reproduzo abaixo o que a propósito do mesmo assunto, escreveu loucartis.Basta ir a:

fotolog.com/sonhador13/60686818

wwwloucartis disse em 19-01-2009 11:33
O último espectáculo que vi da Yo foi na antiga e já inexistente Sala Estúdio do Teatro Monumental.
Foi realmente um sucesso em Portugal a Yo mas também depressa a esqueceram. Felizmente, tinha uma cultura acima da média e outras armas.
Hoje além dos seus doces e ervas tem uma pequena sala de chá na Parede em colaboração com o Camilo e administrada pelo Filho de ambos.
Um doce dia
Abraço Amigo
Luis T

Como se depreende, muito possivelmente o espectáculo terá passado nos dois teatros!

Helena Sacadura Cabral disse...

Julia
Se não aceder pelo link que citei, vá ao Google e procure "Io Apoloni e o vison voador no Teatro Monumental". Verá que a notícia refere o Villarett e o comentador diz que viu na sala estúdio do Monumental.

Julia Macias-Valet disse...

Dear Helena, a sua palavra basta-me, nao toquei no link e nao tocarei ! : )

Um abraço e obrigada pela dica de nao levar o vison para onde se tenha que tirar...mesmo se tenho apenas um rebuço ; )

Helena Oneto disse...

Ah!! Imagino a cena:) P. Branco tem razão!
Fui muitas vezes ao Villaret (e poucas ao Parque Mayer) mas sou incapaz de me lembrar dos nomes das revistas ou peças que vi.
HSC e FSC são realmente duas memorias prodigiosas!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...