segunda-feira, janeiro 31, 2011

Lisa Santos Silva

Se acaso estiver ou passar por Paris, recomendo que não deixe de ver, no Centro Cultural Gulbenkian (51 avenue d'Iéna, a dois passos dos Champs Elysées), a exposição de Lisa Santos Siilva, uma pintora portuguesa que reside em Paris, intitulada "Are you ready Lola?".

Há por ali - a conferir - reminiscências assumidas de Velasquez, com uma "touche contemporaine déroutante", como dizia ontem o "Journal de Dimanche". Uma agradável surpresa, que vale bem a visita.

Em Paris

"Tim Tim no Tibete" muda-se para Paris. "À suivre" as suas próximas aventuras.

domingo, janeiro 30, 2011

31 de Janeiro

120 anos nos separam hoje da primeira revolta republicana em Portugal. O "31 de janeiro", para além de uma tentativa falhada de golpe militar contra a monarquia dos Bragança, foi igualmente um sobressalto cívico, traduzindo o mal-estar que atravessava o país por virtude do "ultimatum" britânico - que, sem fundamento que não fosse a ameaça da força, impedia Portugal de afirmar o direito soberano de ligar as suas colónias de Angola e Moçambique, depois de um notável esforço de exploração levado a cabo pelo nosso país, no sul do continente africano.

Entusiasmado pela recente implantação da República no Brasil, o movimento republicano português tentou, com alguma imprecisão organizativa, o derrube da monarquia. Não tendo alcançado o seu objetivo, foi sujeito a uma inédita vaga repressiva, o que viria a acentuar a sua radicalização. 

Seriam ainda precisos mais 19 anos para a República nascer em Portugal, em 5 de outubro de 1910.

Cairo

"Comovente", foi como alguém qualificou o cordão humano que  a televisão mostrava hoje de manhã a cercar o museu do Cairo, para defender essa preciosidade sem preço, onde se alberga uma memória que pertence à humanidade.

Os egípcios, orgulhosos da sua história, aprenderam as lições do Iraque, em 2003, onde a barbárie das turbas salteadoras do museu de Bagdad contou com a inculta displicência dos invasores americanos, que nada fizeram para evitar o saque e a pilhagem de peças insubstituíveis.

sábado, janeiro 29, 2011

O vison voador

O título deste post é retirado de uma peça de teatro em que entrava o Raul Solnado, que me lembro de ter visto no "Villaret"*. A história é, contudo, outra.

Era um velho mordomo, homem com muitos anos de casa, que por ela já vira passar imensos embaixadores ou, como ele dizia, que já havia "sofrido muitos embaixadores". Naquela noite, estava escandalizado. A ocasião social estava a ser demasiado "solta" para os hábitos da casa. O nível dos convidados era abaixo daquilo a que estava habituado. Talvez o facto do embaixador ser novo, sem experiência local, o tivesse induzido a franquear a entrada a "toda a espécie de gente". O acesso para o espetáculo musical, organizado na residência do embaixador, fazia-se quase sem controlo. O mordomo, bem ciente dos seus deveres, pusera, entretanto, a bom recato as pratas da casa e os bibelots mais frágeis, ou de dimensão à medida dos bolsos. 

A noite estava fria e a mescla de convidados fazia conviver, no hall de entrada, toda a espécie de casacos, desde os mais simples aos mais requintados. Não se esperava tanta gente, pelo que os cabides não chegavam e os abafos amontoavam-se sobre bancos corridos. "Uma vergonha!", pensava o nosso homem, saudoso de noites bem mais requintadas, porque, para nostalgias snobes, não há como os velhos mordomos.

Algumas horas e muitos copos depois, acabada a música e esgotadas as vitualhas, os convidados iam saindo, espaçados no tempo, com os mais resistentes a deixarem prolongar as conversas, espojados pelos sofás. O mordomo, já ultrapassado pelos acontecimentos, mantinha-se no hall, apenas atento à movimentação residual, desejoso que aquela noite terminasse, de uma vez por todas. Tal como a entrada, a saída fazia-se também sob um total descontrolo, com os visitantes a procurarem os seus casacos, revolvendo nas pilhas amontoadas. O mordomo, num  gesto de delicadeza, ajudava-os a vestirem-se, o que subliminarmente também traduzia a vontade de os ver pelas costas. 

Já passava da uma hora da manhã. A certo momento, ouviu-se uma exclamação: "O meu vison?! Onde está o meu vison?". Uma dama confrontava-se, alarmada, com a desaparição da sua dispendiosa pele. E, em recurso, voltou-se para o mordomo: "O senhor viu o meu vison?"

Impecável mas impotente, o nosso homem esclareceu, com o possível rigor, olhando o que restava da resma de casacos: "Por aqui, minha senhora, os visons já acabaram cerca da meia-noite!"

* A Dra. Helena Sacadura Cabral sustenta, num comentário, que não foi no "Villaret", mas sim no "Monumental". Esses 300 metros de distância fazem toda a diferença: entre eles ficavam o "Porão da Nau", o "Convés", a "Mourisca", o "Montecarlo" e o restaurante-bar "Monumental", por onde passava metade de alguma vida lisboeta de então.

O ocidente e a "rua árabe"

É difícil e arriscado procurar reduzir a modelos simplificados de explicação realidades que são muito complexas. O vento de instabilidade que afeta vários Estados árabes, para além das sementes de mútuo contágio, traduz realidades e relações de força muito diferentes. Mas não deixa de ter pontos comuns.

Com graduações e formatos institucionais diversos, todos esses regimes em crise são marcados por fortes sistemas de autoridade, às vezes sob a forma de uma figura predominante, noutros casos com uma preeminência das forças armadas, noutros ainda com uma combinação de ambos os fatores. Ora a História ensinou-nos - ensinou-nos? - que todos os formatos institucionais que não sejam regularmente legitimados de forma democrática têm, a prazo, uma necessária fragilidade. Essa fragilidade agrava-se se o sistema não conseguir proporcionar um desenvolvimento económico, com eficaz distribuição da riqueza e, como se viu claramente no caso tunisino, se não for capaz de corresponder aos anseios de uma classe média emergente, aculturada aos padrões ocidentais. De forma clara, o fim das barreiras de informação tem também um crescente e importante papel, até porque é na juventude que a ela tem acesso, muitas vezes sem emprego e sem perspetivas, que assenta muita da potencial "mão-de-obra" manifestante.

No caso do mundo árabe, estes fenómenos cruzam-se ainda com a presença do fator religioso, que tem uma relevância diferenciada em cada caso nacional mas que, onde e quando emerge com força, por via de proselitismo de influência ou mesmo por via democrática, coloca desafios de outra natureza. É que o Islão tem uma mundividência diferente de todas as outras grandes religiões, influenciando todas as áreas da vida quotidiana, a que a política não escapa. E, nas suas versões mais radicais, é incompatível com os modelos democráticos tradicionais.

Se a vida internacional não fosse uma coisa muito séria, quase poderíamos dizer que se torna hoje irónico ver o mundo ocidental a fazer figura de "barata tonta" face ao terramoto que abala o mundo islâmico: tanto se sente tentado a prolongar (sem o assumir abertamente) uma "realpolitik" que acaba por ser cúmplice de certas situações que (apenas retrospetivamente) acha intoleráveis, como aparece excitado (mas, lá no fundo, receoso com o que dai pode resultar, poque não dispõe de influência para condicionar o rumo das coisas) perante o aflorar desorganizado da vontade popular em certos Estados. 

Por uma vez, sejamos francos: o mundo desenvolvido euro-americano está - no mundo árabe, na África negra ou em certas zonas asiáticas - simplesmente a colher, não aquilo que plantou, mas o que deixou crescer, porque lhe dava jeito. E, claramente, não sabe hoje o que fazer.

"Maxime"

O "Maxime", ali na praça da Alegria, é um ícone da noite lisboeta. De cabaret de luxo nos anos 40, foi passando, entretanto, por fases mais ou menos faustosas. Na sua juventude, parte da minha geração também andou por lá, brevemente, na viragem das décadas 60/70, embora o "Bolero" (depois o "Jamaica"), no Martim Moniz, fosse então o destino de eleição. Senti que o "Maxime" ia perdendo o brilho de outros tempos. Constante, apenas se mantinha o seu típico barbeiro, à entrada.

Há uns anos, a Lena e o Bo Backstrom, dois bons amigos de há décadas, decidiram "pegar" no "Maxime" e transformá-lo num espaço de bar e espetáculos, com um toque de modernidade, aberto a públicos mais jovens, recrutando artistas que iam de revelações a consagrados, alguns esquecidos pelo tempo, com certo "kitsch retro" pelo meio (recordo-me de, no Brasil, e a seu pedido, ter andado em busca de Nelson Ned). Por alguns anos, as coisas terão corrido relativamente bem, embora com muito esforço.

As crises, porém, também são cruéis para as noites. A aventura desta fase do "Maxime" acaba precisamente hoje, com um último espetáculo e uma última festa, que se anuncia "de arromba". 

Para a Lena e para o Bo, que investiram muito de si neste projeto, aqui deixo um forte abraço de solidariedade e de ânimo. Eu sei que, para eles, deixou já de existir a praça da Alegria.

Reflexão poética

No passado sábado, estive a pontos de cometer aquilo que seria uma imperdoável imprudência blogosférica. Aproveitando o dia de reflexão, e por sugestão de uma minha sobrinha, preparei um post que, no derradeiro minuto, percebi que poderia dar azo a más interpretações.

Era o seguinte o seu texto:

"Dizem-me que a "Poesia Incompleta", a única livraria existente em Portugal dedicada exclusivamente à poesia, está a passar por dificuldades para sobreviver.

Para os leitores (e eleitores) lisboetas que hoje entraram em reflexão - e esta eleição presidencial é, sem a menor sombra de dúvida, aquela que mais reflexão justifica, a montante do voto, em mais de 35 anos de democracia - dou um conselho: porque não dão hoje uma oportunidade à poesia e se deslocam à rua Cecílio de Sousa, n° 11, ali perto do Principe Real? Ler poesia, nestes tempos que não rimam com nada (Alcipe diria que todos os dias), é um ato de inteligência, uma justificada bofetada na indiferença." 

Julgo que não vale a pena explicar a "gaffe" que teria sido, na véspera daquela eleição, colocar um post com este conteúdo. Agora, já posso fazê-lo.

sexta-feira, janeiro 28, 2011

Provérbio árabe

"O que não disseste pertence-te. O que disseste pertence aos teus inimigos".

quinta-feira, janeiro 27, 2011

Alistair Darling

Com um pequeno e heterogéneo grupo, almocei com Alistair Darling, que foi ministro das Finanças de Gordon Brown. Havia-o conhecido pessoalmente em Londres, ainda no "shadow cabinet", em 1996. 

Com a saída do governo, onde esteve consecutivamente entre 1997 e 2010, Darling ganhou uma liberdade de análise que se torna especialmente interessante para interlocutores internacionais.

Nesta conversa, o ex-ministro deu uma visão muito crítica do processo decisório europeu, em especial da sua capacidade de reação perante as crises. Do mesmo modo, foi bastante cético quanto à vontade prevalecente no seio do G20 para levar à prática muito daquilo que, no anterior momento de "pânico", havia aparecido como base consensual operativa. O facto de a administração Obama estar agora "de mãos atadas" pelos legisladores americanos e de não ser clara, algumas vezes, a linha seguida por Pequim, são fatores que tornam as decisões possíveis no seio do G20, num futuro imediato, muito imprevisíveis. E chamou a atenção para o facto de a City londrina, apreciando e até agradecendo uma regulamentação à escala global que possa prevenir crises, não estar disposta a aceitar "coletes de forças" regulatórios que possam pôr em causa a sua eficácia. E, em especial, a sua preeminência no mercado financeiro internacional, depreende-se. Acho que os amigos franceses que estavam na mesa terão tomado as suas notas.

"Cunhas"

As "fashion weeks" parisienses são uma ocasião tradicional para as representações diplomáticas serem bombardeadas com pedidos para obtenção de lugares nas filas prestigiadas, reservadas aos "voyeurs" nacionais (neste caso, mais às "voyeuses") da moda, desejos de emparelhar nas fotos da imprensa "rosa" com as vedetas de serviço.

Vários colegas meus me têm referido o tormento por que passam, todos os anos, para conseguir acomodar as sazonais solicitações do seu "social set".

No que nos toca, para além da óbvia ajuda a profissionais lusos do "métier" providenciada pela AICEP, esses pedidos não são aceites. Os tempos gloriosos da "cunha" diplomática já lá vão, há muito...

A banda dos seis narizes*

O diário "Libération" ("Libé", para os franceses) habituou-nos, de há muito, a imaginativas surpresas no seu "layout".

Hoje, para celebrar o festival de banda desenhada de Angoulême, todas as imagens do jornal assumem a forma de desenhos, como esta que representa as manifestações no Cairo.

*O título deste post recupera o nome de uma livraria que existe em Bruxelas - "La bande des Six Nez" -, especializada, como não podia deixar de ser, em "bande déssinée"

quarta-feira, janeiro 26, 2011

Manuela de Melo

Acabo de ler que a deputada Manuela de Melo deixou a vida política. Por uma qualquer coincidência, bem rara, creio que nunca a encontrei, ao tempo, já longínquo, em que andei por essa mesma vida. Mas isso não me impede de me recordar muito bem dela, para além da imagem que os portugueses conservam como uma das caras nortenhas da RTP.

Manuela de Melo era a nossa grande vedeta no Teatro Universitário do Porto (TUP), nos anos 66/68. Com Jorge Ferreira, Manuela constituía o par romântico da peça "Ana Kleiber", de Alfonso Sastre, que, sob direção de Correia Alves, o TUP levou à cena nesse tempo. Eu tinha um curto papel, a abrir e a fechar o espetáculo, no qual fazia de jornalista que entrevistava o autor, este representado por Francisco Vasconcelos, que hoje o mundo literário conhece como Francisco Vale, diretor da "Relógio de Água". Durante o resto do espetáculo, ajudava na sonoplastia, tendo-me cabido descobrir, nos arquivos do Rádio Clube Português, do Porto, onde então colaborava, a música que servia de fundo a toda a peça, a magnífica "Lili Marleen", na voz de Marlène Dietrich. A nossa "Ana Kleiber" andou pelo país e recordo-me, em especial, da nossa presença na abertura do festival do CITAC, em Coimbra. Com a representação da Manuela a garantir-nos um imenso sucesso.

Esses sim, belos tempos!

BBC em português

Acaba de saber-se que o "BBC World Service" vai deixar de transmitir os seus programas em português para África, no âmbito de uma profunda reforma motivada por cortes orçamentais. Creio que muitas pessoas desconhecem que o "BBC World Service" era suportado por verbas do "Foreign Office", o MNE britânico, que agora decidiu deixar de financiá-lo. Não é claro, por ora, se isso não afetará, em absoluto, o uso da língua portuguesa nos serviços da BBC.

O "serviço português" da BBC tem uma história importante, desde a sua criação, em 1939. Lembro-me de o meu pai contar como, durante a 2ª Guerra mundial, a voz, em "ondas curtas", de Fernando Pessa trazia aos democratas portugueses as notícias dos Aliados, quebrando o bloqueio informativo imposto pela censura salazarista. Mais tarde, no estertor da ditadura, recordo-me de, eu próprio, ouvir com regularidade a BBC, em português, com novidades da nossa política doméstica que o marcelismo procurava ocultar. Para além de Pessa, outros nomes que viriam a ser bem conhecidos na rádio portuguesa passaram pelo prestigiante "serviço português" da BBC. Lembro-me - e cito de cor - de Francisco Mata, Joaquim Letria, António Cartaxo, Hernâni Santos, Gilberto Ferraz, António Borga, Luís Amorim de Sousa, José Júdice, Fernando de Sousa, João Paulo Dinis e José Rodrigues dos Santos.

Interessa registar, como nota histórica, o papel desempenhado pelo "serviço português" da BBC como via de informação dos guerrilheiros de Timor-Leste, lembrado no seu blogue por essa figura incontornável nos "media" portugueses em Londres, que é o meu amigo Gilberto Ferraz.

Confesso que sinto com alguma tristeza este fim do "serviço português", deixando aqui um abraço ao Manuel Santana, que o dirigiu por bons anos. Tenho esperança que este exemplo negativo não venha a frutificar em terras francesas, onde o serviço em língua portuguesa da Radio France Internationale também já sofreu lamentáveis cortes e limitações.

Em tempo: o "Jornal de Notícias" faz referência a este assunto com esta "pérola": "Mas para Teresa Lima, responsável pela secção portuguesa na BBC, onde está há 12 anos, a notícia não é totalmente inesperada. "O serviço já teve para ser cortado várias vezes", explicou, em declarações à agência Lusa.". Já "teve"? Será "sotaque" de Lisboa? Ou mau ouvido? E ninguém "edita" isto no jornal?

Comércio internacional

Leio hoje esta notícia, no sempre atento Portugal Digital:

"Técnicos do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (do Brasil) examinam alternativas, como a imposição de barreiras tarifárias para conter importações consideradas prejudiciais para alguns setores da produção nacional
(...)O objetivo é recuperar a balança comercial positiva em relação a maior parte dos parceiros econômicos do Brasil.
(...)A lista de produtos sujeitos a essas restrições ainda não foi concluída, mas a ideia é priorizar as mercadorias que têm similares produzidos no Brasil ou que têm condições de serem fabricados no país".

Este é um sinal bem claro de que o protecionismo, essa pandemia cíclica da economia internacional, está de regresso. Veremos, no caso específico do Brasil, em que medida isso terá implicações no quadro da retoma de negociações do acordo económico entre o Mercosul e a União Europeia (UE).

Há dias, em conversa com uma figura que, há pouco, deixou um lugar no governo francês na área económica externa, perguntei que esperanças podiam ainda colocar-se na conclusão do "ciclo de Doha", da Organização Mundial de Comércio (OMC), tido como o "ciclo do desenvolvimento" e, por muitos anos, apresentado como um fator potenciador do crescimento das economias à escala global. A minha interlocutora olhou para mim com surpresa, comentando que, nos dias que correm, apenas era legítimo falar do "antigo ciclo de Doha"...

A minha pergunta não era inocente, bem pelo contrário. O meu objetivo era abrir espaço para a questão seguinte: se, perante a constatação desse impasse, haveria ou não que repensar o curso de "phasing-out" da Política Agrícola Comum (PAC), que havia sido desenhado em Novembro de 2002, ainda a montante da definição das últimas "perspetivas financeiras" (quadro financeiro plurianual, 2007-2013), cujo termo deveria coincidir com a entrada em vigor do (então julgado possível) acordo dentro da OMC. 

O sorriso da minha interlocutora revelou que isso era "música" para os seus ouvidos. "Claro que a PAC é para continuar e, se possível, reforçar. É uma política estruturante da UE e, cada vez mais, temos de ter em atenção a segurança alimentar da Europa", disse-me.

Tomei a devida nota, com a autoridade de representante de um país que é "contribuinte líquido" da PAC, isto é, de um Estado que paga mais para essa política do que dela recebe... 

terça-feira, janeiro 25, 2011

Côte d'Ivoire

No meu tempo (pelo menos), o francês e inglês eram as duas línguas de trabalho utilizadas na Convenção de Lomé (hoje chamada de Cotonou), o acordo político, económico e social entre os membros das (então) Comunidades Europeias e as mais de seis dezenas (à época) de países da África, Caraíbas e Pacífico - os chamados países ACP -, a maioria dos quais antigas colónias europeias.

Durante uma reunião da Convenção de Lomé, nos anos 80, em Bruxelas, assisti a uma cena curiosa.

O embaixador britânico estava no meio de uma intervenção quando, subitamente, foi interrompido por um delegado africano, que se levantou e pediu a palavra. Os co-presidentes, do lado europeu e do lado ACP, ficaram, por segundos, sem saber o que fazer. Neste tipo de reuniões, as intervenções oriundas de cada grupo não assumem um caráter nacional, correspondendo a uma espécie de representação temática, distribuída pelos representantes de certos  Estados (na altura, do lado europeu, creio que falavam apenas os membros da chamada troika - o Estado que detinha a presidência, o que o havia antecedido na função e o que lhe sucederia no semestre seguinte). 

O delegado africano - que logo anunciou, alto-e-bom-som, que era o embaixador da "Côte d'Ivoire"- , aproveitando a hesitação, acabou por levar a sua avante e lá tomou a palavra, em francês:

- Quero lavrar o meu protesto solene quanto à forma como o senhor embaixador se refere ao meu país. Deve saber que ele não se chama "Ivory Coast", chama-se "Côte d'Ivoire". Esse é o nome oficial, que deve ser respeitado por todos. Os nomes dos Estados não se traduzem.

Protesto registado, o homem sentou-se, com a "honra" visivelmente vingada. O colega europeu que representava o executivo de sua majestade engoliu em seco e deve ter optado por passar a referir-se ao "governo de Abidjan" (felizmente, na altura, só havia um...). E a reunião lá prosseguiu. 

Não vem para o caso saber se o embaixador africano tinha ou não razão, no seu ponto formal. O futuro, pelo menos, não lha daria, porque o nome do seu país, em inglês, circula por aí. Mas o incidente, pelo seu ineditismo, ficou-me na memória. Agora que a "Côte d'Ivoire" anda, por muito más razões, na boca do mundo, talvez valha a pena lembrar que, entre nós, ela nunca deixou de chamar-se Costa do Marfim...

Cultura portuguesa em França

Assim começa um "take" da Lusa, hoje:

"Em 2012, Joana Vasconcelos será a primeira artista plástica europeia convidada para instalar o seu trabalho no Palácio de Versalhes. Neste início de 2011, António Lobo Antunes é alvo de uma homenagem inédita em França, com 50 espectáculos dedicados à sua obra até Junho. Gonçalo M. Tavares recebeu, em Novembro passado, o Prémio do Melhor Romance Estrangeiro pela tradução francesa de Aprender a Rezar na Era da Técnica. A Mãe, de Rodrigo Leão, foi escolhido para a lista de álbuns do ano pela revista Les Inrockuptibles. Mistérios de Lisboa, de Raoul Ruiz, adaptando Camilo Castelo Branco, foi um dos filmes mais aplaudidos de 2010.

O que se passa de novo em França com a cultura portuguesa?
"

No momento em que Fátima Ramos, conselheira cultural em França, acaba o seu trabalho de alguns anos na Embaixada, e sem prejuízo da capacidade de afirmação autónoma de alguns criadores, é de justiça notar que uma parte da resposta também passa por ela.

"Ortographia"

Pois é, desculpem lá, mas acaba de sair no "Diário da República", de hoje, a Resolução do Conselho de Ministros que determina a aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa no sistema educativo no ano lectivo de 2011-2012 e, a partir de 1 de Janeiro de 2012, ao Governo e a todos os serviços, organismos e entidades na dependência do Governo, bem como à publicação do Diário da República.

Alguns não gostarão. Foi o que provavelmente sucedeu aos nossos antepassados, quando deixaram de escrever "pharmácia" e "assumpto". Como me disse um dia Evanildo Bechara, o negociador brasileiro deste Acordo, os entendimentos ortográficos (e já não "ortográphicos"), verdadeiramente, são feitos para as gerações seguintes.

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Ainda Lobo Antunes

"Triste, eu?!", ripostou Lobo Antunes, a um jornalista que, na manhã de ontem, o interrogou na Embaixada, por ocasião da apresentação de um projeto teatral que lhe é dedicado inteiramente neste semestre, de que já aqui falei, bem como do seu novo livro, em francês, "Mon nom est légion". A pergunta referia-se ao tom geral da sua obra, mas o romancista decidiu tomá-la à letra e falou da "má disposição" que, às vezes, emerge em membros da sua família.

O escritor está, por estes dias, em França. Na conferência de imprensa, fez uma digressão divertida e "solta" em torno da sua relação com este país, dos amigos que aqui sempre teve, demonstrando reconhecimento por quem aprecia e acarinha a sua obra.

Duas notas humanas.

A primeira sobre Jean Daniel. Lobo Antunes revelou que, um dia, o jornalista lhe escreveu, mostrando o desejo de o conhecer. Ora essa era uma admiração facilmente correspondida, já que o escritor, enquanto militar, era leitor atento do "Nouvel Observateur", que lhe chegava à frente de combate, sabe-se lá por que meios.

Tocante foi também o modo como António Lobo Antunes falou do seu novo tradutor, Dominique Nédellec. "Quando o conheci, olhei para ele e não acreditava: pensei que era o Art Garfunkel...". O escritor falou da arte da tradução, que vê como a versão "a preto e branco de um quadro a cores", onde se projeta um trabalho da maior delicadeza. E foi, igualmente, bastante interessante ouvir a perspetiva culta do próprio tradutor, a falar da sua imersão na obra do autor, "assustado" inicialmente pela imensa responsabilidade e, finalmente, agradado com o agrado evidente do criador do texto.

Um belo momento, com António Lobo Antunes, em Paris, ontem.

Os portugueses deles

Um dos grandes mistérios que, desde há muitos anos, me atravessa é o critério seguido pela imprensa estrangeira para selecionar as personalidades portuguesas cujas citações usa nos seus artigos sobre o nosso país. Quero crer que tal escolha assente em nomes mais sonantes, em conhecimentos antigos ou, para quantos querem ir um pouco mais longe e não sabem por onde ir, nos amigos de amigos.

Para além das figuras institucionais - figuras políticas, de todos os quadrantes -, que sempre dizem exatamente aquilo que se espera que digam, há no nosso país uma mão-cheia de personalidades que, com maior ou menor regularidade, aparecem referenciadas nos escassos artigos que o Portugal  político suscita. Os períodos eleitorais são as ocasiões de ouro para o brilho internacional desses especialistas em nós mesmos. E, desta vez, claro!, isso não deixou de ocorrer.

Como o jornalismo de oportunidade precisa de um "lead" caricatural, porque não é de bom tom, sobre um país informativamente longínquo, não fazer assentar o texto numa única linha opinativa, tida por representativa do "mainstream", as vozes escutadas entre aspas ecoam quase sempre, embora cada uma à sua estimável maneira, o tom geral com que o artigo pretende mostrar o Portugal por onde o jornalista passou umas horas. E, em regra, pouco mais.

domingo, janeiro 23, 2011

Na Lipp

Na noite de ontem, na Brasserie Lipp, pergunto a um amigo, concentrado sobre o seu iPhone:

- Estás a ler os resultados das presidenciais? Como é que ficaram?

- Não, estou a tentar tirar uma fotografia à Kate Moss, ali naquela mesa.

E não é que estava mesmo?!

"Maison & Objet"

Um total de 65 empresas portuguesas, do mobiliário à iluminação e aos têxteis, está presente, nestes dias, na "Maison & Objet", uma das mais importantes feiras de decoração de interiores do mundo, que, duas vezes por ano, tem lugar aqui em Paris. Portugal é o quarto país em termos de representação, nisto consumando aquilo que tem sido a sua sempre crescente presença neste certame.

Do contacto que pude ter com os responsáveis pelas diversas dezenas de stands que visitei, constatei um optimismo bastante generalizado quanto ao futuro, fruto do interesse do mercado pela produção portuguesa. Diga-se, de passagem, que é sensível a excelente qualidade e apresentação dos materiais expostos. A imagem de Portugal e da economia portuguesa sai muito prestigiada de feiras como esta.

Com estes exemplos se percebe melhor por que razão, tirando as importações dos produtos petrolíferos, o saldo da balança comercial portuguesa com o exterior apresenta, pela primeira vez desde há décadas, um valor positivo. 

O dodô

Um dia, na ilha Maurícia, fui "apresentado" ao dodô. O dodô é o animal simbólico do país, desaparecido no século XVII e de que apenas existem desenhos, os mais detalhados dos quais feitos por quem nunca chegou a testemunhar a sua existência.

Os portugueses estão tristemente ligados à história do dodô. Devem-se à armada de Afonso de Albuquerque o descobrimento e a colonização da ilha Maurícia. Ao que rezam as lendas, foram esses nossos compatriotas quem exterminou a raça, ao elegê-la como produto gastronómico local preferido. 

O dodô era um animal que deveria ter bastante mais de uma dezena de quilos, que perdera a aptidão de voar, por ausência de predadores na ilha, e, por essa razão, era presa fácil da fome dos nossos navegadores, que o deviam confundir com um perú.

A memória que o mundo conserva dos descobrimentos portugueses integra estas peculiaridades menos conhecidas. Assim, o dodô faz parte da nossa história.

sábado, janeiro 22, 2011

Há 50 anos

Precisamente há 50 anos, o ditadura portuguesa teve o seu "annus horribilis", o mais complexo de todo o percurso vivido desde o golpe militar de 28 de maio de 1926.

A expressão do descontentamento popular e o consequente revigoramento oposicionista, saídos das "eleições" presidenciais de 1958, teriam expressão, no ano seguinte, numa tentativa de golpe armado, conhecido como a "revolta da Sé", que consagrou uma intervenção mais ativa dos católicos na vida política - mobilizados também pelo exílio que o regime impôs ao bispo do Porto. 

Em 21 de janeiro de 1961, Henrique Galvão toma de assalto o paquete mercante português "Santa Maria", em águas das Caraíbas. Grande parte do mundo acorda então, pela primeira vez, para a situação política que se vivia em Portugal. O Brasil, onde Humberto Delgado se refugiara em 1959 e os revoltosos entregam o navio, passa a ser, por alguns anos, o centro da oposição ao Estado Novo no exterior.

Dias mais tarde, em 4 de fevereiro, um conjunto de ataques armados promovidos por independentistas angolanos abala Luanda, gerando, a partir de então, uma profunda desestabilização naquela colónia africana. Em 15 de março, grupos de angolanos vindo do antigo Congo belga, desencadeiam ações armadas em áreas rurais do norte do território, com um saldo sangrento entre colonos e outra população fiel à administração portuguesa.

A guerra instala-se em Angola e, três anos mais tarde, vai estender-se a Moçambique e à Guiné, obrigando, por muitos anos, a um impressionante esforço militar português, cuja sustentação teve um custo material e humano que iria condicionar, em muito, o desenvolvimento do país, originando uma importante vaga migratória. As guerras  nas colónias foram também o novo pretexto utilizado pelo regime para a manutenção do imobilismo político em Portugal.

O regime, porém, revela as suas fissuras e, em 13 de abril, o general Botelho Moniz e alguns oficiais generais tentam um "pronunciamento" para afastar Salazar, que este consegue anular. De certo modo, o acontecimento consagra a penúltima oportunidade perdida pelo regime para concretizar a sua própria reforma. A seguinte seria, em 1968, a substituição de Oliveira Salazar por Marcelo Caetano.

Em julho de 1961, o forte de S. João Baptista de Ajudá, um pequeno enclave português, é tomado pelo Daomé (hoje Benim).

Numa tentativa para mostrar algum "aggiornamento", com vista a atenuar as pressões sobre a sua política colonial por parte da comunidade internacional, o governo português abole, entretanto, o "Estatuto do Indigenato", um ato de cosmética legislativa do qual não retirará quaisquer resultados.

Durante o mês de outubro, a oposição política interna movimenta-se, com vista ao ato eleitoral do mês seguinte. A censura, a repressão das sessões de informação e propaganda, bem como as dificuldades colocadas à realização de um sufrágio com um mínimo de credibilidade, levam os oposicionistas a desistirem da ida às urnas, denunciando ao mundo mais uma das regulares fraudes eleitorais montadas pelo regime.

A 10 de novembro, um comando chefiado por Hermínio da Palma Inácio desvia um avião da TAP na carreira Casablanca-Lisboa, de onde são lançados, sobre a capital portuguesa, panfletos contra a ditadura.

Na noite de 17 para 18 de Dezembro, numa operação militar que culmina anos sem uma solução negociada, a União Indiana invade os territórios que constituíam o Estado da Índia, dando por terminada a secular presença portuguesa.

Finalmente, na noite de 31 de Dezembro, um grupo armado, que tem por detrás o general Humberto Delgado, ataca o quartel de Beja. O movimento é derrotado e uma nova vaga repressiva tem lugar.

Há 50 anos, os adversários, internos e externos, do Estado Novo (e não de Portugal, como certa historiografia e alguma mitologia política saudosista pretendem) mostravam que o combate ao regime entrava numa nova fase. A "situação" - como o léxico popular qualificava o poder político de então - iria sustentar-se por mais 13 anos. A luta política contra a ditadura, no interior ou no exílio, intensificou-se e, da parte do regime, deu origem a novas vagas de repressão. O impasse histórico viria a ser resolvido pelas Forças Armadas. Os militares, que tinham imposto a ditadura em 1926 e que, na prática, a tinham sustentado desde então, decidem o seu derrube em 25 de abril de 1974, abrindo caminho para a restauração da democracia. A mesma democracia que, no dia de hoje, permite aos portugueses, em plena liberdade, escolherem o presidente da sua República.

sexta-feira, janeiro 21, 2011

O cônsul honorário

Notei que o homem estava agitado. Pensei, contudo, que esse nosso Cônsul Honorário, numa remota cidade num país francófono do "Sul", cujo nome esqueço, vivia apenas o nervosismo de ter a visita de um membro do governo português, a cuja comitiva eu pertencia.

A certo passo, o Cônsul queixou-se-me:

- O nosso Embaixador bem me podia ter avisado com mais antecedência. Só ontem me disseram que vinham cá dormir. Não tive tempo para preparar nada de jeito.

Sosseguei o homem e disse-lhe que estava tudo a correr muito bem, desde o encontro com as autoridades locais até à receção com os escassos portugueses residentes. Só o bizarro hotel (de cujo pátio podem ver uma foto verdadeira), de arquitetura de todo improvável naquelas paragens, com as banheiras cheias mas sem água corrente nos quartos, é que deixava muito a desejar. Mas, que se havia de fazer!, era o único da cidade.

O homem, no entanto, continuava inconformado. E insistia:

- É que eu podia ter preparado uma coisa bem mais agradável, se tivesse sabido com mais tempo.

Procurei acalmá-lo:

- Mas está tudo impecável! O que é que você podia ter feito mais?

- Ó senhor doutor! Com tempo, eu tinha preparado em minha casa um programa "de truz" para os senhores, com umas "garinas" magníficas, tudo "material" garantido e sem problemas. Mas não me avisaram! Isto não se faz!

De facto...

Agustina

Durante três dias, tem lugar em Paris um colóquio sobre Agustina Bessa Luis, numa organizaçao da Sorbonne (Paris III) e do centro cultural Gulbenkian, com apoio do Instituto Camões.

Um alargado grupo de especialistas revisita a obra da escritora, numa perspetiva pluridisciplinar, à qual igualmente é dedicada uma exposição patente na Casa de Portugal, na Cité Universitaire de Paris.

Ontem, durante a abertura da conferência, tivemos oportunidade de ouvir uma magnífica lição do professor Arnaldo Saraiva, que nos trouxe a sua perspetiva sobre a relação de Agustina com o Porto. O orador, que conviveu profundamente com a autora, deu-nos conta de alguns dos seus traços de caráter, da sua frontalidade crítica e do modo como isso se repercute em muitos dos seus textos, neste caso no que respeita ao Porto e à idiossincrasia.

Alguém me dizia, depois da conferência, que quem conheceu Agustina ficou, com toda a certeza, com uma ou outra história dela, da sua forte personalidade e da agudeza do seu espírito. Deve ser verdade, porque não fui exceção.

Creio que em 2005, Agustina foi ao Rio de Janeiro, no âmbito da atribuição do prémio Camões. Durante um descontraído almoço, a que estavam presentes Lygia Fagundes Telles e Ruben Fonseca, tive uma animada conversa com a escritora, ao lado de quem fiquei. Recordo-me de que me falou de Manoel de Oliveira, e de curiosos episódios no âmbito do trabalho conjunto que fez com o realizador e seu velho amigo, para um determinado filme. Nessa mesma noite, ao chegar ao hotel, acompanhado pelo professor Helder Macedo, que também visitava o Brasil, cruzámo-nos com Agustina, que estava com Adriano Jordão, o nosso conselheiro cultural no Brasil. Cumprimentámo-la e o Helder comentou: "Diga-me lá, Agustina, como é que consegue esse prodígio de só ter amigos, de não ter inimigos?" Agustina deu uma gargalhada sonora e, rápida, retorquiu: "Não tenho inimigos? Mas, olhe!, quando quero, faço-os, pode crer!".

quinta-feira, janeiro 20, 2011

Linguagem diplomática

Uma amiga francesa, professora universitária de medicina, teve um encontro no "Quai d'Orsay" - como, simplificadamente, aqui se identifica o ministério "dos Estrangeiros" da França. Tratava-se de constituir uma delegação a uma certa reunião internacional. A certo passo, ficou chocada quando verificou que a delegação iria ter duas componentes: a diplomática e a técnica, tendo sido incluída nesta ultima. Para ela, era quase ofensivo ver-se qualificada como "técnica". "De início, pensei que o conceito se aplicava às secretárias, aos motoristas ou, no máximo aos especialistas de informática", disse-me.

Perguntou-me se, em Portugal, procedíamos da mesma forma. Confirmei-lhe que sim e, devo confessar, inicialmente eu próprio fiquei surpreendido com a questão que me colocava, com a surpresa dela. Depois, pensando um pouco melhor, refleti que esta dualidade, tida entre nós como natural, pode por alguns ser lida numa perspetiva descriminatória.

A propósito, lembrei-me de que, um dia, disse a alguém que, no MNE, aguardávamos uma resposta dos "ministérios sectoriais" a uma determinada questão. "Dos ministérios quê?" - retorquiu o meu interlocutor. "Sectoriais", sublinhei eu, com toda a naturalidade. "Essa agora! Então e o MNE não é sectorial? O que é? É global?". De facto... 

Há vícios corporativos que é difícil de perder. "Liturgias da casa", como dizia um velho embaixador.

Invasões francesas

Não sei se é impressão minha, mas tenho a sensação de que, maugrado alguns esforços pontuais muito louváveis, em 2010 não se foi tão longe quanto se deveria ter ido, em Portugal, na lembrança das Invasões Francesas, no bicentenário da terceira campanha militar.

Na breve abertura que ontem fiz ao lançamento, que, com o Instituto Camões, promovi na Embaixada, do livro do historiador português Manuel do Nascimento, "Troisième Invasion Napoléonienne au Portugal (Bicentenaire 1810-2010)," lembrei que foram essas ações militares que forçaram a sua partida da corte portuguesa para o Brasil, a aceleração da independência desse território e o impacto desses acontecimentos no futuro do nosso país, sem esquecer o que isso significou como o início do fim do nosso "ancien régime".

As dezenas de pessoas que encheram (e fizeram transbordar) o auditório, tiveram a oportunidade de ouvir uma magnífica palestra do professor e historiador Yves Léonard, que fez a apresentação da obra, durante a qual detalhou, com grande profundidade, as diversas dimensões das invasões, desenvolvendo uma curiosa análise, complementada por outros intervenientes no animado debate que se seguiu, sobre o perfil dos líderes militares franceses que chefiaram as operações, o qual não deixaria de ter uma grande relevância para o modo como essas campanhas acabaram por decorrer. Em particular, o professor Léonard contextualizou historicamente esse esforço militar no binómio estratégico franco-britânico e peninsular, destacando também os aspetos mais relevantes do trabalho de recolha e tratamento histórico levado a cabo por Manuel do Nascimento.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Eduardo Barroso

"Um cirurgião é um cidadão que pratica, com regularidade, atos ilegais: atentados contra a integridade física das pessoas. Porém, tem uma especial derrogação para o fazer, com vista a salvaguar um bem maior, que é a vida dessas pessoas".

Ouvi ontem esta definição, de um modo entre o formal e o irónico, na boca do presidente da Académie Nationale de Chirurgie, por ocasião sessão solene anual da instituição, durante a qual teve lugar a entronização, na qualidade de membro estrangeiro, do cirurgião português Eduardo Barroso - uma distinção rara conferida por esta importante associação, que acolhe todas as sumidades das especialidades cirurgicas.

Foi gratificante para o representante diplomático portugues poder estar presente na consagração pública de um compatriota prestigiado, cujo curriculum profissional e científico foi, na ocasião, sublinhado com grande ênfase.

Hoje vamos comemorar na Embaixada, com alguns dos seus amigos franceses e portugueses, esta hora de glória de Eduardo Barroso. E, no final, com a discrição que as circunstâncias (desportivas, claro!) justificam, vamos igualmente fazer um voto de saúde ao nosso comum Sporting, pelo sucesso de uma operação que o possa revitalizar e, por essa via, alegrar os seus amigos.

Comentários

Não me perguntem porquê, mas mais de uma dezena de comentários, inseridos nos últimos posts, desapareceram. Mistérios da internet...

(Vamos a ver se, mesmo fora de ordem, se conseguem recuperar alguns comentários, através de um registo paralelo)

Notícias da família europeia

Transcrito de uma notícia no "Financial Times" de hoje:

- "As obrigações do tesouro portuguesas subiram acima dos 7% (...) após se terem acentuado as preocupações de que a crise da 'eurozona' pode piorar, na sequência dos comentários de Wolfgang Schauble, o ministro alemão das Finanças".

- "Ralf Preusser, chefe do 'European Rates Research' na BofA Merrill Lynch Global Research, disse: 'Cada vez que os decisores políticos vêem uma melhoria no sentimento dos mercados, mesmo se em antecipação de medidas de natureza política, eles pensam ter uma justificação para recuar no apoio a ser concedido. O mercado funcionou positivamente por virtude das esperanças criadas de que haveria significativas mudanças no tamanho e no âmbito do Fundo europeu de estabilização financeira. E isso não se concretizou'. Os comentários do sr. Schauble atingiram também outros mercados perféricos de obrigações, com as taxas de juros a subirem drasticamente na Grécia, na Irlanda e num leilão de obrigações na Bélgica".

Assim vai a família europeia, vista, à distância, de Londres.

terça-feira, janeiro 18, 2011

Europa

É sempre estimulante ouvir falar Hubert Védrine, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, no governo de Lionel Jospin. A sua leitura da Europa e do mundo aparece marcada, nos dias de hoje, por uma dose de realismo que quase roça o cinismo (embora etimologicamente, cinismo esteja muito longe de querer dizer o que hoje aparenta: cínico seria alguém que teima em dizer não e em abalar o conformismo, o que cola melhor a Védrine).

Ontem à noite, num grupo de amigos, Védrine fez um elogio rasgado de Barack Obama, que considera uma personalidade extremamente inteligente e muito mais avançado do que a América contemporânea - o que, a seu ver, pode justificar muitas das dificuldades políticas que enfrenta e os obstáculos que vai ter de ultrapassar para ser reeleito. Obama terá interiorizado já que os EUA só poderão ambicionar a ter uma "liderança relativa" do mundo - um conceito redutor de poder que os atuais americanos estão ainda longe de poder aceitar.

Sobre as relações EUA-Europa, Védrine é de opinião que os europeus não perceberam a "agenda" sob a qual Obama foi eleito, que tem essencialmente a ver com a saída da crise social interna e, no plano global, com o dédalo estratégico em que a administração Bush envolveu o país, nomeadamente na zona do Golfo. Daí a "desilusão" provocada deste lado do Atlântico pela pouca importância dada por Obama à Europa, onde a não existência de problemas prementes conduz, naturalmente, à desaparição em Washington de uma desnecessária retórica de proximidade prioritária, de que nem sequer Londres já beneficia.

Muito curiosa foi a fórmula que Vérdrine utilizou para caricaturar o modo como os americanos olham para o processo integrador do "velho continente", onde dão preeminência quase absoluta ao reforço e estabilidade da NATO. A União Europeia, para os EUA, não sendo levada a sério como entidade política com identidade própria ("e há alguma razão para que devessem ter uma ideia diferente?") é vista como uma espécie "departamento económico da NATO", razão pela qual, aos olhos de Washington, não há nenhuma razão para que as fronteiras (europeias) de ambas não coincidam (daí a insistência na entrada da Turquia para a UE).

Mais do que poder dar ou não razão a Védrine quanto a esta visão americana, talvez nos devamos interrogar, cada vez mais, sobre se há uma real razão para que o outro lado do Atlântico nos olhe assim.

Ainda os escritores

Já aconteceu a algum dos leitores deste blogue entrar numa refeição, com diversos convidados, e, dentre eles, vir a calhar a seu lado, precisamente, o autor do livro que na véspera começou a ler? Pois foi isso que me ocorreu, hoje, com Michel Houellebecq, autor do "La Carte et le Territoire", obra vencedora do prémio Goncourt de 2010. Como tive o azar da minha leitura andar ainda pelas páginas 50 e tal, quase não me atrevi a falar-lhe do livro...

Um dia, no Rio de Janeiro, numa das minhas frequentes visitas à Academia Brasileira de Letras, fui apresentado a um dos seus 40 "imortais", o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony. Trata-se de um cronista fascinante, que uma ou duas vezes por semana escreve deliciosos textos no "Estado de S. Paulo". Ao tempo que vivia no Brasil, eu não perdia nenhum. Por coincidência, uma semana antes desse encontro, tinha acabado de ler uma sua autobiografia, intitulada "Quase memória". Disse-lho. O escritor, com o ar benevolente de quem acredita pouco que os diplomatas possam ler muito, retorquiu: "Ah! sim? Espero que tenha gostado..." E passou adiante. Aí eu insisti: "Diga-me uma coisa! Ao ler o livro fiquei com uma curiosidade: quando fala daquela falsa viagem do seu pai a Itália, para enganar os amigos, isso passou-se mesmo assim?". Cony abriu muito os olhos, "viu-me" pela primeira vez e exclamou: "Oh! Mas o embaixador leu mesmo o livro?!".

Quero ter a ingenuidade de pensar que, por esse instante, a profissão diplomática, em geral, me ficou a dever o favor de poder tê-la feito subir um pouco na consideração de um dos grandes das letras brasileiras.

segunda-feira, janeiro 17, 2011

António Lobo Antunes

Simplesmente comovente é como posso qualificar o espetáculo "Estado Civil", a que ontem à noite assisti no  espaço do MC93, em Bobigny, nos arredores de Paris. Feito a partir do texto de uma entrevista dada por António Lobo Antunes à jornalista Maria Luísa Blanco, editada em 2002, o trabalho traça, de forma criativa e com uma simplicidade cénica muito rica, o percurso pessoal do escritor, ligando extratos das conversas a textos das suas obras e cartas. É um retrato vivo do Portugal contemporâneo o que acaba por resultar deste excelente espetáculo, onde as memórias familiares de infância (de uma infância em que todos descobrimos traços que nos são comuns) e os traumas evidentes de um percurso profissional dedicado a mentes perturbadas se somam às inquietações eternas da memória lusa da guerra colonial, tudo visto à luz dessa bizarra melancolia, saudosa e torturada, que parece ser o nosso eterno destino e, quem sabe?, o segredo do "esplendor de Portugal", que Lobo Antunes ironicamente celebra num dos seus livros.

Durante todo este primeiro semestre de 2011, diversos textos e pretextos servirão para celebrar a genialidade do escritor, numa temporada teatral (e não só: haverá leituras, gastronomia e muito mais , neste conjunto de eventos intitulado "Ce soir je n'y suis pour personne sauf pour António Lobo Antunes") de 50 sessões organizadas pelo MC93, dirigido por Patrick Sommier, uma estrutura de criação cultural independente que, para o efeito, se aliou à editora francesa de Lobo Antunes, Dominique Bourgois. "Estado Civil" é o primeiro espetáculo dessa série, a poucos dias do lançamento da 25ª tradução francesa do autor. 

domingo, janeiro 16, 2011

Noite em Budapeste

Embora fria, lembro-me de que estava uma bela e límpida noite. À varanda central do majestoso parlamento húngaro, nesse mês de Março de 1999, os presidentes Jorge Sampaio e Árpád Göncz trocavam impressões sobre a paisagem frente ao Danúbio. Eu acompanhava-os, bem como o meu amigo András Gulyás, o conselheiro diplomático do presidente húngaro, que conhecera, há quase 20 anos, em Luanda.

Substituindo nessa viagem o ministro dos Negócios Estrangeiros, eu havia estado com Jorge Sampaio, horas antes, num encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán. Os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo anunciavam-se iminentes. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões da NATO iriam sobrevoar a Hungria, que era candidata a integrar a organização. Orbán mostrava-se compreensivelmente tenso, deixando clara a sua preocupação pelas populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia dotada de alguma autonomia. Quando reagi, politicamente, ao conceito de "futuras populações NATO", que o primeiro-ministro utilizou para caraterizar essas pessoas e a obrigatoriedade da sua proteção prioritária, pareceu-me ver acentuar-se o olhar duro e fechado que mostrou durante todo esse encontro. Não esqueci esse olhar. 

Sabia-se que as relações entre o presidente Göncz e Orbán não eram nada fáceis, essencialmente por razões de política interna húngara, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade. Por contraste com Orbán, Göncz era uma figura suave, um homem cheio de história, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente, olhando esse passado apenas na linha do futuro do seu país. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. Homem de cultura, Göncz seduziu Jorge Sampaio, com quem falou longamente e estabeleceu uma relação pessoal fácil e calorosa.

A certa altura, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Portugal, como todos reconhecem, comportou-se de forma impecável perante os países que eram candidatos à integração. A Hungria, que entretanto entrou para a União Europeia, preside aos seus destinos, desde há dias. Viktor Órban é, de novo, primeiro-ministro. Göncz, hoje com 89 anos, deixou a presidência há mais de uma década. 

Com todo o respeito pelas instituições de cada Estado, constitui hoje uma nossa obrigação comum velar para que os valores que subscrevemos no quadro dos tratados europeus - na esfera da democracia, da liberdade, do respeito pelos direitos fundamentais e da preservação do Estado de direito - sejam observados, sem restrições, em todo o espaço da União. De Lisboa a Tallin, passando por Budapeste, claro.

Em tempo: o meu amigo András Gulyás, a quem este post entretanto chegou, escreveu-me a recordar o encontro que relatei. Os blogues também servem para reencontrar velhos amigos.

sábado, janeiro 15, 2011

Tunísia

As reações, em geral cautelosas, particularmente da comunidade internacional ocidental, face às mudanças em curso na Tunísia estão a ser interpretadas de forma negativa por certos setores com expressão mediática, nomeadamente aqui em França. Alguns comentadores interpretam as declarações de poderes políticos externos, que começam a exprimir alguma simpatia com a nova onda democrática tunisina, como um mero exercício de cinismo ou mesmo de hipocrisia, atentas as relações que a generalidade desses poderes mantinha com o regime deposto de Ben Ali. E,  em especial, condenam a falta de uma aberta atitude de apoio, desde a primeira hora, àquilo que parece poder ser um novo tempo político no país, iniciado na rua e com expressão já nas instituições.

Acho que devemos ser prudentes e ter o sentido da medida das coisas. O regime deposto na Tunísia, cujo perfil político não oferecia dúvidas a ninguém, era o interlocutor reconhecido da comunidade internacional. Não eram desconhecidas as suas limitações em matéria de respeito pelos Direitos Humanos ou pelos princípios democráticos, mas era-lhe igualmente creditado um esforço de desenvolvimento económico e social, embora com um saldo seguramente distribuído de forma condenável. Mas a Tunísia não era - longe disso! - um "pária" no mundo internacional. Pelo contrário era, no seio do mundo árabe, um parceiro com o qual, por exemplo, a União Europeia mantinha um diálogo estruturado - o qual incluía, como é bom que se saiba, uma chamada regular de atenção para questões tão importantes como os presos políticos ou a liberdade de informação. Se os países democráticos, europeus ou não, só mantivessem relações com Estados que respeitam a pureza dos princípios democráticos e outras práticas que são caraterizadoras do Estado de direito, o seu universo diplomático seria muito reduzido. O diálogo com regimes "diferentes" constitui um elemento essencial do quadro diplomático internacional - e isso não é cinismo, é mero realismo, só condenado por quem nunca teve responsabilidades em matéria de relações externas.

Mas posso também perceber que alguma da hesitação da comunidade ocidental tenha, por detrás, uma outra preocupação: o receio de que um certo tipo de evolução política possa abrir a porta à emergência, em termos de influência ou poder, das forças integristas islâmicas, cuja progressão no seio da sociedade tunisina Ben Ali tinha combatido. É este, muito provavelmente, o dilema que atravessa alguns Estados amigos da Tunísia. Os quais, no entanto, estarão seguramente muito interessados em ver emergir, a partir do novo poder político em Tunis, uma sólida democracia, respeitadora dos grandes princípios que marcam a comunidade ocidental e geradora de um efeito benéfico extra-muros, induzindo o respeito pela vontade popular noutros países da região. Se possível, sem serem necessários os elevados custos humanos que a revolta do povo tunisino está a ter de suportar.

sexta-feira, janeiro 14, 2011

"A última missão"

Nos idos de 1974, creio que no mês de Agosto, era eu adjunto da Junta de Salvação Nacional, fui um dia apresentado a um oficial pára-quedista que tinha como missão estruturar um grupo de milicianos que, no quadro da "intelligence" militar, deveriam refletir sobre a realidade nacional. Vinha convidar-me para integrar esse núcleo, que ficaria sediado no Palácio da Ajuda, onde hoje é o ministério da Cultura. Lembro-me de ter hesitado, por várias razões. Acabei por fazer parte do grupo em Outubro de 1974, já depois da desaparição da Junta.

Esse oficial era o major Moura Calheiros, um homem de fala suave e sorriso sereno e, ao que sei, também então estudante em "Económicas". O grupo viria a ser composto por gente muito diversa, curiosamente com orientações políticas bem distintas, do então PPD ao MES, do PS ao CDS, alguns sem partido conhecido. E, curiosamente, que eu saiba, ninguém do PCP. Profissionalmente, havia de tudo: futuros diplomatas, como o João Lima Pimentel e eu; economistas, como Agostinho Roseta, António Romão, Brandão de Brito, António Alves Martins, Carlos Figueira, Junqueira Lopes,  Jorge Calheiros, António Luís Neto; engenheiros, como Armando Sevinate Pinto ou Otto Uwe Leichsenring; licenciados em Direito, como Abel Gomes de Almeida, Rocha Pimentel, Sampaio Caramelo ou Alexandre Pinto Monteiro. Mas também um psicólogo, Vitor Moita, e um jornalista, Simões Ilharco, bem como pessoas oriundas de outras áreas profissionais. Durante alguns meses, nesse setor da 2ª Divisão do EMGFA, dirigido pelo depois general Gabriel Espírito Santo, produzimos vasta reflexão sobre o país mutante em que então vivíamos, "briefávamos" diariamente os nossos superiores e preparávamos textos de análise para a chefia da Revolução. Depois do 11 de Março, esse serviço foi extinto e seguimos vias militares diferentes, em especial no "verão quente" que se seguiu. Antes de sermos todos "mandados para casa", no segundo semestre desse ano, porque os milicianos já não eram necessários. 

Ao longo do ano de 1975, fui encontrando o major Calheiros pelos corredores do MFA, em dias exaltantes e noites exaltadas. Já funcionário diplomático, tive ecos das dificuldades da sua tarefa no âmbito dos pára-quedistas de Tancos, no quadro do 25 de Novembro.  Nunca mais ouvi falar dele.

Há semanas, li uma referência a um livro seu. Foi-me difícil adquiri-lo. São quase 700 páginas de uma memória dos tempos da guerra colonial, tendo como pretexto a sua integração numa missão de resgate dos restos mortais de companheiros, caídos em combate na Guiné. É um texto de tocante simplicidade, que revisita - com olhos de profissional militar, mas com uma visão humana muito serena e compreensiva - os tempos da luta e os seus ambientes, comparando figuras e situações de ontem e de hoje, da sociedade da África descolonizada e do que sobreviveu da memória de Portugal nesses palcos da nossa última aventura pelo mundo.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

Nós e a Europa

A convite de uma tertúlia que mensalmente ouve um palestrante durante o almoço, dei ontem, em Lisboa, a minha perspetiva sobre o estado da Europa, o seu papel no mundo e o lugar de Portugal nesse cenário.

O grupo convidante era constituído, na sua maioria, por figuras conhecidas do nosso meio empresarial, entre os quais alguns antigos responsáveis por pastas governamentais. Era um ambiente saudável e dialogante, onde se cruzavam linhas ideológicas diversas - um ambiente que tenho pena, enquanto cidadão, que não se reproduza ao nível da sociedade política portuguesa, nos tempos de dificuldade que são os nossos.

Durante a discussão que se seguiu às minhas palavras, senti uma generalizada perplexidade quanto ao futuro do projeto europeu, sobre a capacidade de sobrevivência do euro e mesmo algumas dúvidas sobre a nossa possível política de alianças, nesse contexto. Verdade seja que o caráter algo interrogativo da minha intervenção também não foi de molde a proporcionar muitas pistas animadoras. Deixei, contudo, muito claro que entendo que a Europa continua a ser o nosso destino prioritário e inevitável, não obstante também considerar que a situação atual justifica um maior esforço de diversificação de laços e de interesses, no quadro da nossa política externa. Exatamente como está a ser feito.

quarta-feira, janeiro 12, 2011

Tribo peninsular

A cena passa-se nas Nações Unidas, nos anos 80. Foi-me contada, há dias, por um dos  ilustres protagonistas. À luz das convenções mais contemporâneas, pode haver quem a considere "politicamente incorreta". Mas eu arrisco.

Um grupo de trabalho sobre questões africanas suspende os trabalhos por uns minutos. Dois diplomatas, um espanhol e um português, trocam graças e, num presumível "portuñol", demonstram uma cumplicidade que surpreende alguns circunstantes.

Um dos diplomatas africanos, oriundo de um país fortemente dividido por conflitos étnicos, pergunta: 

- Os espanhóis e os portugueses, sendo vizinhos, não têm conflitos?

- Já os tivemos, e bem fortes, no passado. Mas isso já lá vai - responde o português.

- Sabes, nós, no fundo, pertencemos à mesma tribo - adianta o espanhol.

- Ah! São da mesma tribo! Assim já percebo porque é que vocês se dão tão bem! - conclui o africano.

terça-feira, janeiro 11, 2011

FMI (2)

Os efeitos de uma possível entrada do FMI (para sermos mais rigorosos, do "mecanismo de estabilização europeia", associado ao FMI) têm sido algo escamoteados entre nós.

Neste contexto, vale a pena anotar a perspetiva de José Manuel Correia Pinto sobre o "programa" político-económico que estará subjacente à vontade de alguns de verem as "receitas" do FMI aplicadas em Portugal:

"Qual é esse programa? A receita é conhecida. A pretexto de garantir recursos por um determinado período de tempo, aliás a juros bem elevados, o FMI arrogar-se-á o direito de exigir mais despedimentos, inclusive aqueles que agora não são possíveis, como na função pública; baixar os salários, incluindo o salário mínimo; limitar ao mínimo os apoios sociais ou mesmo eliminá-los, como será o caso do rendimento social de inserção, do subsídio de desemprego, etc.; liberalizar e embaratecer os despedimentos; acabar com o serviço nacional de saúde como serviço universal tendencialmente gratuito; onerar pesadamente o ensino, nomeadamente o superior; limitar os descontos das entidades patronais para a segurança social, estabelecendo igualmente um tecto para os descontos dos subscritores e para as próprias reformas, de modo a acabar com o princípio da solidariedade intergeracional e a abrir por esta via o caminho para a privatização da parte “rica”da segurança social; enfim, privatizar tudo que ainda houver para privatizar."

Será verdade?

As colónias e a censura

Nos tempos da ditadura, era estritamente proibida na nossa imprensa qualquer referência ao conceito de "colónias portuguesas". Toda a publicação periódica era sujeita a censura (mais tarde eufemisticamente designada como "exame prévio") e termos como esse eram zelosamente banidos de qualquer texto, pelos "coronéis" da rua da Misericórdia.

Um dia, a revista "O Tempo e o Modo", já numa sua fase politicamente radical, encontrou um método de contornar a proibição e decidiu utilizar o termo "colónias portuguesas" numa área da publicação por onde, seguramente, os censores não passariam os olhos: o preçário das assinaturas. Isso aconteceu apenas num único número (n.º 77, de Março de 1970), como a imagem seguinte documenta:

Desconheço os eventuais problemas que "O Tempo e o Modo" possa ter tido por esta divertida ousadia, que nunca vi referida, mas que aqui deixo registada.

"O Tempo e o Modo"* iniciou a sua publicação em 1963, sob a direção e propriedade de António Alçada Baptista, então uma interessante figura da intelectualidade católica pós-Vaticano II, proprietário da Moraes Editora. Dessa fase do nosso "catolicismo progressista", a revista começou a alargar-se à colaboração de setores socialistas e comunistas, os quais acabam por se tornar predominantes na sua orientação no final dos anos 60, já sob a direção de João Bénard da Costa. Em 1970, uma ainda maior radicalização acaba por colocar "O Tempo e o Modo" sob tutela de militantes maoístas, que conduzem ao desaparecimento da publicação. Com a "Seara Nova" e "Vértice",  contudo bastante mais antigas, "O Tempo e o Modo" integra o grupo das influentes e históricas revistas situadas na área da oposição ao Estado Novo.

*Alcipe revelou ontem, num comentário, uma saudável inveja bibliófica. Por este post fica informado que tem ao seu dispor (apenas para consulta, claro) a coleção completa encadernada de "O Tempo e o Modo". 

Português

"Desculpem, mas vou falar em português. Tenho muito orgulho em ser português" - José Mourinho, ontem, ao receber o galardão de "melhor treinador do mundo", atribuído pela FIFA.

segunda-feira, janeiro 10, 2011

Rocha Vieira

Este é um post que preferia não ter de escrever, mas que, por uma questão de honestidade para comigo mesmo, entendo dever redigir.

O general Vasco da Rocha Vieira é uma personalidade militar e política que, não obstante conhecer mal pessoalmente, há muito me habituei a respeitar e considerar. Prestou elevados serviços ao Estado e tem uma notável folha de atividade pública, que o colocam, definitivamente, num patamar prestigiado da história da nossa democracia.

O jornalista Pedro Vieira é um amigo de há quase três décadas - conhecemo-nos numa passagem sua por Angola -, cujo profissionalismo sempre admirei, desde os tempos de "O Jornal" à "Visão", e com o qual mantenho uma excelente relação pessoal.

Agora, Pedro Vieira escreveu uma biografia de Rocha Vieira. Um livro apresentado numa bela edição da Gradiva, muito bem redigido, bastante documentado, sendo mais do que evidente que o biografado cedeu grande parte da informação ao biógrafo.

Rocha Vieira não necessitava deste livro, Pedro Vieira não necessitava de o ter escrito. Costuma dizer-se que elogio em causa própria é vitupério. E esta obra é elaborada num estilo laudatório que eu pensava já ter desaparecido, por onde perpassam ajustes de contas perfeitamente escusados, remoques que só apoucam o biografado, expressão de ressentimentos que, para mim, são muito pouco consentâneos com a imagem que eu tinha do general Rocha Vieira, a qual procurarei preservar, apesar deste livro. É um livro como uma visão totalmente unilateral, que dispensa, em absoluto, o contraditório, como se o que nele se afirma devesse ser tido como uma incontestável evidência. Em lugar de uma biografia, estamos perante uma hagiografia autorizada do general Rocha Vieira. 

Sei que o Pedro Vieira não vai gostar deste meu post. Mas ele também sabe que eu não escondo nunca o que penso e que, também aos amigos, digo sempre a verdade. E a verdade é que não gostei deste livro.

Diferenças

A televisão pública espanhola decidiu nunca mais transmitir touradas e, no seu livro de estilo, consagrou a tourada como uma forma de violência a que não é legítimo expor as crianças.

A RTP continua a ser a orgulhosa organizadora da "corrida RTP"  e a liderar um forte lóbi de propaganda tauromáquica nos "media" portugueses.

Cada televisão pública da península tem, assim, a sua ética. Diferente.

Coincidências

Ele há cada uma!

Há dois anos, mais ou menos por esta época, fui consultar um médico. Como cheguei cedo, fui para uma pastelaria próxima, fazer horas. Por lá apareceu um velho amigo meu, com quem troquei votos de bom ano. Desde então, só nos voltámos a ver, de raspão, num restaurante, há já muitos meses.

Voltei hoje ao mesmo médico, que, entretanto, mudou de local do seu consultório. No caminho, passei por um café. Lá estava aquele meu amigo*...

Caramba!

*Curiosamente, ele é um dos seguidores deste blogue

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...