Ontem à noite, no hall da residência do embaixador austríaco em Paris, dei de frente com o antigo primeiro-ministro desse país, Wolfgang Schussel. Há mais de uma década que nos não víamos. Conversámos, embora de forma breve – eu estava quase de saída, ele ia a entrar -, sobre coisas comuns de “maratonas” europeias em que havíamos participado, por mais de cinco anos.
Wolfgand Schussel é um homem cordial e agradável, sendo embora um negociador firme e determinado. Uma noite, durante a presidência austríaca da União, era ele ministro dos Negócios Estrangeiros, foi-me difícil preservar interesses portugueses num acordo europeu com a Suíça, que a Áustria teimava em querer fechar, um pouco à nossa custa. Usava então, por regra, um vistoso “papillon”, adereço que largou, vá-se lá saber porquê, quando assumiu a chefia do governo austríaco. E é a propósito dessa ascensão que vou lembrar uma pequena, mas julgo que divertida, história, se bem que ligada a um tempo bastante complexo.
No início do ano de 2000, e após umas eleições legislativas na Áustria, Schussel foi indigitado para formar governo. Decidiu então coligar-se com um partido tido como de extrema-direita, o FPO, dirigido por Jorg Heider. Essa decisão provocou uma celeuma por toda a Europa comunitária, porque, para muitos, funcionava como um perigoso precedente, ao colocar um grupo extremista à mesa democrática da União Europeia. Recordo que esse “branqueamento” preocupava, em particular, os dirigentes franceses e belgas, que viam nisso uma caução à possível subida interna, respetivamente, do Front National e do Vlaams Blok. Mal sabíamos nós, à época, o que estava aí para vir, nos anos seguintes, em matéria de radicalismo conservador em alguns governos europeus…
Portugal tinha acabado de assumir a presidência da União Europeia e, quase imediatamente, fomos chamados a titular a pressão sobre a Áustria, em nome dos restantes “catorze” países, os quais, com “nuances” entre si, não se reviam na opção austríaca. A coligação acabou por concretizar-se, mas o governo de Viena não deixou de ser mantido sob forte pressão dos seus pares. Um dia se contará, com mais pormenor, o que foi esse complexo período e o modo como ele acabou por condicionar todo o arranque da nossa presidência.
A história que agora aqui anoto passa-se em Paris, no palácio do Eliseu, no gabinete do presidente Jacques Chirac, já em Março de 2000, quando a nossa presidência estava a finalizar os preparativos para o Conselho Europeu de Lisboa.
(Por uma mera curiosidade, e para mostrar o que pode ser a “deliciosa” vida negocial europeia, gostava de registar que essa escala em Paris fez parte do seguinte percurso de três dias: na véspera, eu tinha saído de manhã cedo de Dublin, para juntar-me ao nosso primeiro-ministro, António Guterres, na Haia, para uma reunião, à tarde, com o seu homólogo holandês, Wim Kok. Daí, saímos de carro para Bruxelas, para um jantar de trabalho com o primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt. Ainda nessa noite, fomos, de Falcon, dormir a Paris. De manhã, acompanhei António Guterres a um encontro com o presidente Jacques Chirac, onde se passa a cena adiante relatada, e tivemos um almoço oferecido pelo primeiro-ministro Lionel Jospin. A “coabitação” obrigava a esse duplo encontro em França. Depois do repasto de trabalho, zarpámos para Roma, onde reunimos, durante cerca de uma hora, com o chefe do governo, Máximo d’Alema. Logo de seguida, partimos para Madrid, tendo um jantar na Moncloa, com o presidente do governo espanhol, José Maria Aznar. Chegámos a Lisboa, no estado físico que imaginam, cerca da uma hora da manhã. António Guterres, que tem uma imensa resistência, estava “desfeito”, o que não impediu que tivéssemos revisto cuidadosamente, durante os voos, com Maria João Rodrigues e outros acompanhantes, o avanço negocial produzido por cada contacto. À chegada do Falcon ao aeroporto de Figo Maduro, eu disse a Guterres que ainda ia “beber um copo” ao bar “Procópio”: “Você é doido! Não está cansado?”, atirou-me, surpreendido. Respondi-lhe: “Claro que estou, por isso é que preciso de descontrair um pouco…”. E lá fui passar uns minutos pela minha vetusta tertúlia lisboeta.)
Jacques Chirac havia sido dos mais acérrimos defensores do regime de retaliações contra o novo governo austríaco. Desde o fim de Janeiro de 2000, o presidente francês por várias vezes interpelara telefonicamente António Guterres, incentivando-o a radicalizar a atitude dos “quatorze” contra a solução governativa engendrada em Viena. Por isso, apelava a uma grande pressão sobre os austríacos e queria que ela se projetasse em todos os atos públicos em que eles estivessem presentes.
Não nos pareceu, por isso, estranho que, naquela manhã de Março de 2000, nos cadeirões dourados que revestiam a sua sala de visitas do Eliseu, Chirac quisesse saber pormenores do primeiro-ministro português quanto ao modo como este iria gerir a “coreografia” do próximo Conselho Europeu de Lisboa, em especial a inevitável presença do chanceler austríaco Wolfgang Schussel no evento.
António Guterres não desejava, manifestamente, entrar em pormenores, contando, para isso, com a consabida capacidade portuguesa de improviso para salvar as aparências e o acto solene correspondente. Mas Chirac insistia: “António (soava: Antòniô), tu vas pas nous créer l’embarras de nous trouver sur la même photo avec Schussel !?”, como se o primeiro-ministro austríaco não fosse, desde há anos, um dos seus mais antigos companheiros de imagem em todas as cimeiras europeias. Guterres teimava, inteligentemente, em mudar de conversa e derivava para as virtualidades da Estratégia de Lisboa, que pretendíamos ver aprovada no Conselho Europeu. Mas Jacques Chirac teimava e acabou por concluir que, desta vez, não queria a tradicional “foto de família”, que recorda este tipo de reuniões.
Foi então que, a contraciclo com a obstinação presidencial, uma voz surgiu: “Monsieur le Président, il y a une solution très facile: on le met dérrière vous au moment de la photo. Comme ça, il vas sûrement pas aparaître dans l’image”, sugerindo implicitamente a manifesta diferença de altura física entre Chirac e Schussel.
A frase era de um assessor do primeiro-ministro português. Por um momento, a sala bloqueou. Chirac, cara fechada, voltou-se para a zona de onde o comentário surgira e inquiriu, com o olhar, quanto à identidade do respetivo autor. Recordo-me que, nesse curto segundo, olhei para António Guterres, um tanto à procura implícita de instruções sobre como reagir. O primeiro-ministro português deu então uma gargalhada forte e Chirac afivelou um condescendente sorriso, acabando por legitimar a abafada vontade da onda coletiva de riso que se seguiu. O assessor português havia descoberto a fórmula mágica, se não para nos resolver definitivamente o problema, pelo menos para nos vermos livres dele para o resto da reunião com Jacques Chirac.
Para a pequena história, diga-se que as coisas acabariam por correr em Lisboa sem quaisquer sobressaltos, com Jacques Chirac e Wolfgang Schussel a surgirem na mesma fotografia, através de um hábil “truque”, bem lusitano, que consistiu em incluir o presidente mexicano, Ernesto Zedillo, convidado para a abertura da cimeira, a quem Jacques Chirac não faria a "desfeita" da sua ausência. Daí não veio qualquer mal ao mundo... e nem foi necessário aproveitar a sugestão hábil do assessor português.