sexta-feira, agosto 21, 2020

A Torre



A casa é hoje a Fundação Maestro José Pedro. No largo Vasco da Gama, em Viana. Foi dos meus avós, não sei se logo que chegados de Ponte de Lima, em 1912. Olhando agora para o edifício, constata-se que nada mais há sobre o segundo andar. Mas nem sempre foi assim. Por ali ficava a Torre.

A Torre era o nome dado na familia a um sótão. Sempre houve a ideia de que nele haveria ratos. Nunca vi nenhum mas, à noite, se bem interpretava uns ruídos estranhos que, nas minhas madrugadas de leitura (a partir de certa idade, montavam-me uma cama num escritório, no andar imediatamente abaixo da Torre, rodeado de livros), escutava por cima do teto, parecia haver. Aliás, as frequentes idas dos gatos por lá indiciavam um potencial petisco dessa natureza, que também existiria na Loja, mas não os vou maçar mais com a geografia descritiva da casa da minha avó.

O sótão, como todos os sótãos, estava eternamente cheio de poeira. Não me consta que a “Seconceição”(a senhora Conceição, na versão fonética da minha infância) ou a sua filha Arménia, que oficiavam no serviço da casa, alguma vez tivessem passado pela Torre a espanejar aquela confusão de móveis velhos, de malas sem préstimo, de caixas e caixotes, de exemplares repetidos dos livros do Domingos Tarrozo (uma figura interessantíssima de Ponte de Lima), amigo da família: “O Monopólio da Sciencia Official”, “A Poesia Philosophica” e “A Forma de Votar”, sendo estes os títulos de que ainda me lembro - e que nunca li, claro.

A Torre tinha, para a frente, um janeluco voltado para o largo, na direção da doca. Se ainda existisse, desse envidraçado esconso ter-se-ia, nos dias de hoje, uma vista magnífica sobre o Gil Eanes, o navio-hospital que, à época, acompanhava a frota dos bacalhoeiros para as costas da Terra Nova. A doca era então fechada, tinha muro de pedra e um belo gradeamento e um portão (de correr, se bem me lembro), que eu só atravessava para ir “à natação”, acompanhado do meu pai (e imagino que da minha mãe, preocupada), para a escola benévola ali montada, no Verão, por uns carolas da cidade.

Da Torre tembém se avistava, ao longe, o caminho para o Cabedelo, com vista desfogada, ainda sem o mar de coisas industriais e portuárias que lá foi parar, já há anos. Espreitando, à esquerda, ali estavam (e estão), na sua solidez granítica, arquitetura muito Estado Novo, os escritórios do João Alves Cerqueira. Estendendo o pescoço, à direita, por muito que tentasse, não conseguia ver a capela da Senhora das Candeias, e a gorda a assomar no janeluco ao lado, mas tinha-se um olhar sobre o edifício comprido, que parece que é hoje um bingo, e que, ao tempo, foi uma fabriqueta de cordas para barcos, que se prolongava, no exterior, também para os lados da capitania, com grandes rodas de madeira.

Logo em frente da janela da Torre, impante, lá estava (e lá está - milagre numa cidade onde as estátuas costumam andar de um lado para o outro, como agora e em boa hora aconteceu ao Caramuru) a figura do Mercúrio, com casquete e âncora, encimando a taça com água. Nunca lhe achámos muita graça: viráva-nos as costas...

Não se via muito mais, da Torre? Essa agora! Da Torre via-se o mundo! Eu, pelo menos, vi.

(Dedico este texto aos meus primos Filomena e António, comigo, nos Verões, felizes, frequentadores dessa Torre da nossa infância)

quinta-feira, agosto 20, 2020

Pousadas de Portugal


As Pousadas de Portugal existem desde 1942. 

Segundo as minhas contas, desde esse ano e até hoje, foram construídas 67 Pousadas, 16 das quais desde 2003, ano em que o grupo Pestana assumiu a gestão. 

O grupo Pestana, que gere a rede de Pousadas desde 2003, manterá 36 unidades em funcionamento. Neste período de pandemia, algumas dessas Pousadas estão fechadas, presume-se que temporariamente.

Foram encerradas (ou deixaram de funcionar sob a égide das Pousada) 31 unidades, algumas antes do grupo Pestana ter assumido a gestão da rede.

Algumas pousadas funcionam em regime de concessão, sendo a sua gestão feita por entidades alheias ao grupo Pestana.

Na pesquisa que fiz sobre a abertura e desativação das Pousadas - tarefa nada fácil, porque não parece haver nenhum estudo de conjunto - não consegui determinar a data de encerramento, enquanto Pousadas, de algumas dessas unidades. Ficarei grato se os leitores puderem ajudar nesta pesquisa, mas sempre com dados seguros.

Unidades em funcionamento (36): 

1. Alijó (Barão de Forrester) (1944)*
2. Óbidos (Castelo) (1950)
3. Marvão (Santa Maria) (1956)
4. Bragança (S. Bartolomeu) (1959) *
5. Murtosa (Ria) (1960)
6. Valença (S. Teotónio) (1963)
7. Sagres (Infante) (1963)
8. Evora (Lóios) (1965)
9. Caniçada (S. Bento) (1968)
10. Extremoz (Rainha Santa Isabel) (1970)
11. Viana do Castelo (Monte de Santa Luzia). (1979)
12. Palmela (Santiago) (1979)
13. Guimarães (Santa Marinha da Costa) (1985)
14. Alvito (1993)
15. Beja (S. Francisco) (1994)
16. Queluz (Dona Maria I) (1995)
17. Crato (Flor da Rosa) (1995)
18. Arraiolos (Nossa Senhora da Assunção) (1996)
19. Amares (Santa Maria do Bouro) (1997)
20. Vila Viçosa (D. João IV) (1997)
21. Alcácer do Sal (Afonso II) (1998)
22. Ourém (Conde de Ourém) (2000)
23. Belmonte (Convento de Belmonte) (2001) *
24. Horta (Forte de Santa Cruz) (2004)
25. Lisboa (Terreiro do Paço) (2005)
26. 
Tavira (Convento da Graça) (2006)
27. Bahia (Convento do Carmo) (2006)
28. Angra do Heroísmo (Forte São Sebastião) (2006)
29. Estói (Palácio de Estói) (2009)
30. Viseu (2009)
31. Porto (Palácio do Freixo) (2009)
32. Cascais (Cidadela) (2012)
33. Covilhã (Serra da Estrela) (2014)
34. Óbidos (Vila de Óbidos) (2018)
35. Câmara de Lobos (Churchill Bay) (2019)
36. Vila Real de Santo António (2020)

(*) Unidades concessionadas

Unidades encerradas ou já não funcionando como Pousadas (31):

1. Elvas (Santa Luzia) (19.4.1942). Encerrou em 2012
2. Marão (São Gonçalo) (29.8.1942). Encerrou em 2007
3. Alfeizerão (S. Martinho) (24.9.1942)
4. Serém (Santo António) (24.9.1942)
5. Madeira (Vinháticos) (1942)
6. São Braz de Alportel (S. Braz) (11.4.1944). Encerrou em 2010
7. Santiago de Cacém (S. Tiago) (10.2.1945). Encerrou em 2001
8. Manteigas (S. Lourenço) (14.3.1948)
9. Berlengas (S. João Baptista) (1953)
10. Castelo do Bode (S. Pedro) (1.1.1954). Encerrou em 2003
11. Serpa (São Gens) (1960)
12. Miranda do Douro (Santa Catarina) (1962). Encerrou em 2002
13. Caramulo (S. Jerónimo) (1962)
14. Vila do Bispo (Forte do Beliche) (1963)
15. Setúbal (São Filipe) (1965). Encerrou em 2014
16. Póvoa das Quartas (Santa Bárbara) (1971) Encerrada em 2003
17. Santa Clara-a-Velha (Santa Clara) (1971)
18. Torrão (Vale do Gaio) (1977). Encerrou em 2007
19. Guimarães (Nossa Senhora da Oliveira) (1980) Encerrou em 2013
20. Vila Nova de Cerveira (D. Dinis) (VII) (1982). Encerrou em 2008
21. Batalha (Mestre Afonso Domingues) (1985)
22. Almeida (Senhora das Neves) (1987)
23. Santiago de Cacém (Quinta da Ortiga) (1991). Encerrou em 2008
24. Sousel (S. Miguel). (1992) Encerrou em 2010
25. Condeixa (Santa Cristina) (1993). Encerrou em 2019
26. Monsanto (1993). Encerrada em 2011
27. Mesão Frio (Solar da Rede) (1998). Encerrou em 2012
28. Vila Pouca da Beira (Convento do Desagravo) (2003). Encerrou em 2017
29. Proença-a-Nova (Amoras) (2006). Encerrou em 2011
30. Braga (S. Vicente) (2007) Encerrou em 2012
31. Madeira (Pico do Arieiro) (?)

quarta-feira, agosto 19, 2020

Os restos de Yalta


No plano geopolítico, a Bielorrússia, de que se fala por estes dias, configura um caso particular. Se bem se notar, o ocidente reclama, muito justamente, pelo comportamento autocrático do presidente Lukashenko, pelo ambiente fraudulento que envolveu a recente disputa eleitoral, pela violência oficial contra a expressão democrática dos seus cidadãos. Mas, ao contrário do que se verificou nos casos da Geórgia ou da Ucrânia, nenhuma voz sensata veio apelar à ideia de que uma Bielorrússia “livre” venha a integrar a NATO ou a União Europeia. Por que será?

Há resquícios dos velhos acordos de Yalta que ainda subsistem na memória do realismo internacional. E embora, no plano dos princípios, ninguém subscreva a legitimidade da tese das “esferas de influência”, é por demais evidente que prevalece, na racionalidade geopolítica do mundo, a ideia de que um país como a Bielorrússia faz parte de um terreno de tutela russa. 

Se Putin decidisse fazer avançar carros de combate pelas ruas de Minsk, caía “o Carmo e a Trindade”, mas não deixa de haver um entendimento implícito no tocante à aceitação de que Moscovo pode ter uma palavra a dizer quanto ao futuro do país. Se a “soberania limitada” faz ainda sentido para alguns cultores da “realpolitik”, é no caso bielorrusso que isso se aplica de forma bem clara.

Os cidadãos que vieram para as ruas, como alguns bem assinalaram, não parece terem pedido para que o país ingresse na Aliança Atlântica ou faça parte das instituições europeias, da mesma forma que, ao contrário de muitos georgianos e ucranianos, não pareceu emergir nesses movimentos uma atitude hostil para com a Rússia. Provavelmente, isso terá ocorrido assim por mero realismo, pela consciência de que o seu futuro, se fará, quase inevitavelmente, num qualquer modelo de relação íntima com Moscovo.

A alguns chocará a frieza desta análise, que parece conceder bondade àquilo que espelha uma mera relação de forças. Porém, estou apenas a refletir sobre como as coisas são, não como deviam ser. É que não é por acaso que os poderes que contam, na ordem internacional, sempre separam as águas, quando abordam os casos nacionais na periferia russa.

A avaliar pelas reações, Putin não sabe muito bem o que há-de fazer com o seu incómodo vizinho. Já terá percebido que Lukashenko é, cada vez mais, um fardo. Não está disposto a deixar que o ocidente intervenha, mas, muito claramente, também ainda não decidiu como utilizará o seu poder de vizinhança. No meio, impotentes, estão os bielorrussos.

terça-feira, agosto 18, 2020

A vida é assim!


Em 2002, no auge do seu confronto com a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), cuja presidência Portugal então titulava, a Bielorrússia enviou a Viena, por duas vezes consecutivas, um jovem e brilhante diplomata, à frente de uma missão que connosco discutiu a então muito sensível questão da manutenção de um escritório da organização em Minsk. Chamava-se Igor Leshchenya. 

Tive com ele longas horas de trabalho e, também muito graças à pertinácia negocial do meu colega Carlos Pais, meu “deputy” na chefia da nossa missão, levámos a bom porto o nosso objetivo - garantir que a OSCE permanecia na capital bielorrussa, para reportar sobre as insuficiências democráticas do país. 

Muitas vezes, desde então, me tinha perguntado o que teria acontecido àquele diplomata, na complexa vida política bielorrussa.

Tive a resposta há minutos.

segunda-feira, agosto 17, 2020

Estátuas, descobertas e quejandos

Num ato de insuportável arrogância histórica, a atual geração acha-se no direito de ser a julgadora do que de bem ou de mal as anteriores gerações pensaram ou fizeram, contestando-lhes as ideias e destruindo-lhes os símbolos.

Viagens nas terras dos outros


Comem-se uns salmonetes de truz em Bragança, perto das Fontainhas, saindo do Castelo para apanhar o ferry para Gimonde. Aprendi isso com o abade de Baçal, primo do de Priscos. Podia optar por um lombelo, mas não é a mesma coisa, porque se perdem as algas e não dá para ver os golfinhos a saltar, com a Margueira a despontar na estrada para Miranda. Dizem-me, mas não posso confirmar, que a dona Iracema, lá no Geadas, faz uns gambuzinos alimados com arroz do mesmo, coisa que também servem no Christo, na marina do Fervença, mas não aceitam reservas e, sem reserva, só no G. E agora vou a Setúbal, pela ponte nova que sai de Tróia (deixo imagem de ontem), apanhando depois a derivante em direção a Vinhais, terra de sardinhas e de galgas na grelha.

(Ao meu amigo José Luis Seixas e senhora, a banhos em praias de montanha nos mares do Norte, saudáveis terras sem virus e com butelo)

Chipre

Por muitos e bons anos, escreveu-se “em Chipre”. Um dia, um qualquer jornalismo decidiu-se tomar confianças e passou a escrever “no Chipre”. Contudo, em matéria de ilhas mediterrânicas, não vejo essa imprensa inclinada a passar a dizer “na Malta”. Coisas...

domingo, agosto 16, 2020

16 de agosto de 1900



Esta placa está afixada no local em que foi a casa em que Eça de Queiroz morreu, em Neuilly, que entretanto foi demolida.

A placa original, oferecida pela Escola de Belas-Artes do Porto, que havia sido colocada, em 1950, pelo então embaixador português em França, Marcello Mathias, tinha-se tornado quase ilegível, com um desgaste que a tornou irrecuperável.

O queirosiano Luís Santos Ferro, há meses falecido, chamou a minha atenção para a necessidade de ser colocada uma nova placa, assinalando o local da morte do escritor. Optei por mandar fazer (sem encargos para o Estado, diga-se) e colocar uma réplica, em tudo igual à placa original, que se vê na fotografia.

Trouxe de Paris, na minha bagagem, a placa original e entreguei-a à Fundação Eça de Queiroz, em Tormes, Baião, onde está hoje exposta.

Eça de Queiroz


Há precisamente 120 anos, no dia 16 de agosto de 1900, morria em Paris, com 55 anos, um dos mais importantes escritores da língua portuguesa, José Maria Eça de Queiroz. À época, era cônsul-geral de Portugal na capital francesa.

sábado, agosto 15, 2020

Jantar


Tínha passado por lá, há dias, para reservar uma mesa para jantar. Havia uma boa recordação da última visita àquele restaurante. Imagino que apenas nesta época, a casa, pura e simplesmente, não atende o telefone. Leu bem: não aceita telefonemas. Uma imensa deselegância para com os clientes. À hora exata, nem mais um minuto, chegámos. “Vão ter de esperar”. Mau, mestre! As coisas começavam a descarrilar. Se fosse em Lisboa, ter-me-ia ido embora. Há muito que decidi já não tenho idade nem paciência para ficar à espera, à porta de um restaurante, depois de ter sido fixada uma determinada hora, com antecedência. Mas aqui, numa aldeia perto da praia, com tudo o resto, em quilómetros em volta, garantidamente cheio ou sem qualidade, assomou-me uma réstia de paciência comodista, adocicada por um gin tónico (onde terá surgido esta mania de o servir em incómodos copos, que parecem bolas de andebol!), para entreter o tempo. O atendimento, contudo, desde o primeiro momento, havia sido correto, nada arrogante, sem sombra de privilégios de acesso prioritário concedido a clientes conhecidos, como notícias publicadas haviam dado como sendo vício da casa. Pelo contrário: constatou-se um respeito absoluto pela ordem das reservas e até uma abertura imediata para aceitar uma pessoa a mais, face à marcação feita. Por fim, meia hora depois da hora marcada, lá chegou a nossa vez. Síntese: sala simples mas agradável, lista bem construída (e renovada, face ao que conhecia), carta de vinhos apenas razoável, serviço muito delicado e competente, uma comida excelente, preço final nada especulativo e aceitável para a zona e período do ano. A irritação inicial desvaneceu-se, por completo. Saímos muito satisfeitos. Para o ano, comigo furioso, uma vez mais, pela dificuldade no contacto, lá voltaremos. À Dona Bia, na Comporta.

sexta-feira, agosto 14, 2020

Notícias da padeira


Hoje é dia de Aljubarrota. Imagino o sobrolho franzido de alguns, dos que acham que a História tem, nos dias que correm, de ser lida sempre ao contrário, sem o que seremos acusados de alinhar no reaccionarismo da historiografia patrioteira. Salvo os iberistas, uma raça (pode escrever-se raça?) que gostava de poder pagar a bica em pesetas, não vejo que diabo de politicamente correto se pode opor à comemoração da data em que a aristocracia portuguesa, farta de ser mal-tratada por Castela, nomeou um dos seus para gerir este lado da península, com manif ao pé da Ginginha e tudo. Que assim ficou, mais ou menos independente, até hoje. Até sempre, espero.

Deixo aqui uma imagem que me dizem que saiu, no dia seguinte, no “Cavaleiro Andante”, desenhada por Vitor Péon, que passava por ali nesse dia 14 de agosto de 1385.

O estrangeiro próximo


O conceito de “estrangeiro próximo” foi crismado por Moscovo para designar, com assumido paternalismo estratégico, as entidades nacionais vizinhas, resultantes da implosão da antiga URSS, após esta ter sido derrotada na Guerra Fria. São 15 Estados, o maior dos quais é a Federação Russa, sua sucessora no plano internacional.

Com desagrado de Moscovo, em período de enfraquecimento, três desses Estados ingressaram na Nato – Estónia, Letónia e Lituânia. Mas Putin conseguiu evitar, num tempo de maior assertividade, que dois outros viessem a ter um destino idêntico – Ucrânia e Geórgia.

Nestes, a longa mão russa continua a manter uma tutela de influência determinante. No primeiro, na região de Donbass, que rejeita a soberania imposta por Kiev. No segundo, nos verdadeiros “bantustões” que são a Abcásia e a Ossétia do Sul, a que (quase só) Moscovo deu a designação de “países independentes”, após anos de disputa com a Geórgia.

A este tipo de situações convencionou-se chamar “conflitos congelados”, i.e., situações que configuram um “statu quo” de guerra suspensa, por disputas territoriais, que irrompe a espaços.

Dos restantes nove estados resultantes da URSS, cinco estão na Ásia Central, todos com regimes ditatoriais travestidos de democracias – Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Usebequistão. Não é uniforme o modo como a Rússia se relaciona com cada um deles, mas pode dizer-se que Moscovo mantém um “droit de regard” sobre todos, garantindo que eles não confrontam os seus interesses geopolíticos essenciais.

Dois outros Estados, no Cáucaso do Sul, a Arménia e o Azerbaijão, mantêm entre si um outro “conflito congelado”, sobre o território do Nagorno-Karabakh, que Moscovo segue à distância.

Restam ainda dois países.

Um é a Moldova, entre a Roménia e a Ucrânia, com outro “conflito congelado”, a propósito do território da Transnístria, onde uma velha base militar garante um pé à Rússia.

O outro é a Bielorrússia, encravada entre a Rússia, a Ucrânia, a Polónia, a Letónia e a Lituânia. Desde 1994, é dirigida com mão de ferro por Alexander Lukashenko, à frente de um regime que limita as liberdades dos cerca de 10 milhões de cidadãos do país. Agora, o ditador voltou a ser “eleito”. Com a Rússia, tem uma relação algo estranha, mas de objetiva dependência.

O país é hoje um “buraco negro” dentro de uma Europa basicamente democrática. O ditador e o seu regime foram já objeto de sanções. Por muita pressão que a União Europeia possa fazer, perante alguma complacência objetiva da administração americana, Lukashenko não cairá, enquanto a Rússia não quiser.

A Guerra Fria suspendeu a História por algumas décadas. Desde que acabou, num registo de humilhação para Moscovo, a Rússia criou, em seu torno, um mundo de Estados com os quais mantém uma tensa e diferenciada expressão do seu poder. Não havendo condições para regressar ao anterior estado de coisas, Putin é hoje senhor do tempo dos outros. Isso provoca alguns, sossega outros e dá a todos a certeza de quem, na realidade, continua a mandar por ali.

Restos de conversa

- Os teus textos são, cada vez mais, um problema para mim. Concordo com imensas coisas que neles dizes mas, de súbito, em alguns deles, deparo com algo que me abertamente me desagrada. É estranho porque, no passado, as coisas não eram assim. O que escrevias era mais facilmente aceite, no seu todo. E olha que não sou a primeira pessoa a notar isto! Fazes de propósito?

- Faço e não faço. Até posso perceber que te sintas assim, ao ler o que vou escrevendo. A questão é que, com o tempo, optei por ser mais transparente, de não procurar ser consensual a todo o custo. É que, na vida, nem tudo é a-preto-e-branco. Há sempre aspetos das coisas que não "rimam" com o resto. Por isso, digo o que penso, doa a quem doer - e já vi que dói a alguns amigos, como tu. Mas quero fugir àquela frase do Sérgio Godinho: "estar de bem com os outros e de mal contigo". É só isso.

quarta-feira, agosto 12, 2020

Ordem do dia




Mentiria se não dissesse que tenho a certeza de que houve pessoas que, à vista do anúncio do imenso dinheiro que aí virá da Europa, terão exclamado, desanimadas, para si mesmas ou para os seus próximos: “Agora é que ninguém os tira de lá!”. Alguns, no limiar do masoquismo, terão mesmo lamentado que o país tivesse tido essa inesperada bênção, por entenderem que esse choque financeiro contribuirá para a solidificação de um desequilíbrio político que detestam - e que acham tanto ou mais nefasto do que os males económicos do país. Muitas dessas pessoas, que estão a ler-me agora, assumam-no ou não, sabem que o que escrevo é pura verdade.

Não sou politólogo para conseguir explicar como chegámos aqui, a este entrincheiramento, que se tem vindo a agravar na última década, criando dois mundos antagónicos, alimentados por muita acidez, servidos por palavras ofensivas, pela perda de respeito pelos adversários, pelo enfraquecimento da moderação e do bom senso. 

Muito desse confronto já vinha de trás, quase desde o 25 de Abril. Mas data da última crise financeira o acantonamento que colocou aqueles que viram na “troika” uma oportunidade para queimar etapas, para um choque de reforma liberal, frente a quantos recusavam ver subvertida a ordem da sociedade em que se haviam habituado a viver. Perante a arrogância dos primeiros, muitas vezes insensível e cruel, foi-se enquistando, do outro lado do espetro, uma resistência desesperada que, no limite, conduziu a um entendimento à esquerda, que nada fazia prever como possível. A “geringonça” foi a expressão para-institucional dessa realidade, mas todos já percebemos que continua a haver mais vida à esquerda, para além dela.

O que talvez ninguém estivesse à espera é que, na outra margem política, o desvario viesse a tomar conta das hostes. Apoiado num tremendismo que raia a insanidade, campeia por aí um discurso de “finis patriae“, como se o país estivesse à beira da catástrofe. O alarmismo diário dos títulos da imprensa e da demagogia das televisões, somado ao azedume nas redes sociais, tudo isso gera um caldo de imaginária instabilidade e crise, que as sondagens, sempre ingratas, se encarregam de desmentir.

O atual pessimismo do campo conservador sobre o seu próprio futuro esquece, contudo, uma realidade que o passado nos ensinou: nunca devemos subestimar a capacidade da esquerda de dar tiros nos seus próprios pés. Um dia, mesmo sem saber como, a direita lá regressará ao poder. Aliás, chama-se a isso democracia, para os que não saibam.

Interpretações


Ontem, numa conversa de praia, veio à baila, já nem sei bem porquê, a figura do antigo presidente da Guiné-Bissau, Kumba Yalá, que faleceu em 2014. Lembrei-me de uma história que costumo contar.

Um dia de 2001, na ONU, em Nova Iorque, estive presente, em representação de Portugal, numa reunião do “grupo de amigos da Guiné-Bissau". Os “grupos de amigos” são estruturas informais que agregam vários países com o desejo comum de acompanharem uma determinada situação ou prosseguirem um particular objetivo temático, no quadro das atribuições das Nações Unidas.

O novo presidente guineense fora convidado a fazer uma apresentação sobre a situação que se vivia no seu atribulado país, com vista a mobilizar a boa vontade e a ajuda da comunidade internacional. 

O tempo que lhe fora destinado para intervir foi largamente excedido, mas o seu discurso tinha coerência e demonstrava uma determinação no sentido da correção de algumas políticas, tudo envolvido num registo expressivo que lhe era muito típico, desde logo marcado pelo barrete de lã vermelha que nunca o abandonava.

Com o meu colega brasileiro, Gelson Fonseca, e para potenciar o efeito positivo da reunião, combinei duas intervenções sucessivas de apoio à declaração do presidente, procurando dar ênfase à sua declarada vontade de mudança. 

Outros embaixadores, em especial de países "do Sul", seguiram uma linha idêntica e, a meio da reunião, o ambiente podia considerar-se globalmente positivo, quiçá apenas sobrando as tradicionais reticências face à sustentabilidade das políticas anunciadas, que algumas lideranças africanas, em especial oriundas de países mais frágeis, nunca deixam de suscitar.

O delegado de um país do Norte da Europa abordou, entretanto, a sensível questão da corrupção. 

Notei que Kumba Yalá ficou muito atento à intervenção e, no imediato, pediu para responder. Com muita ênfase, marcou a sua firme determinação em pôr fim ao flagelo da corrupção no seu país. E, a certo passo, agarrando firmemente o ombro da ministra dos Negócios Estrangeiros guineense, que estava a seu lado, disse, bem alto:

- Vou ser muito duro, podem acreditar. Por exemplo: aqui a senhora ministra. Se eu vier a descobrir que ela rouba, que é corrupta, podia mandar matá-la. Mas não, não a vou mandar matar! Mas vai levar tanta porrada, tanta pancada, que nunca mais vai querer roubar. Mas ela não rouba, não! - e dizia isto, rindo-se, contemporizador, abanando a constrangida ministra, que afivelava um sorriso que quero crer que seria amarelo...

Kumba Yalá falava em português e, na sala, para além do embaixador brasileiro e de mim próprio, que tínhamos olhado um para o outro algo preocupados com o facto do presidente poder ter "estragado tudo" com aquelas palavras, creio que só a intérprete, que ia traduzindo as intervenções do presidente, se inteirara do teor da embaraçante declaração. 

Contudo, a coreografia e o tom de Yalá tinham criado uma particular curiosidade nas restantes pessoas à roda da mesa, que aguardavam com expetativa a interpretação.

A intérprete, consciente da delicadeza do momento, olhou para mim, em busca de "ajuda" para superar o problema. Fiz-lhe um gesto discreto, a pretender significar a necessidade de "adocicar" fortemente as frases do presidente. 

E foi então que assisti a uma magnífica demonstração de profissionalismo, com a senhora a dizer algo como: "Mr. President wants to emphasize that corruption, in his country, is not punished with death penalty. Nevertheless, under his leadership strong mesures will be taken against those who may incur in such practices, even if they are members of his own government" (O senhor presidente deseja sublinhar que a corrupção, no seu país, não é punida com pena de morte. No entanto, sob a sua liderança, serão tomadas fortes medidas contra quantos venham a incorrer em tais práticas, mesmo que se trate de membros do seu governo).

Olhei para o meu colega brasileiro e demos um suspiro de alívio. No final, dei uma palavra de parabéns (e gratidão) à intérprete. Tinha-nos ajudado a salvar a sessão. Uhf!

terça-feira, agosto 11, 2020

O “Cavaleiro Andante”


Há dias, na estante de uma casa onde passo férias, encontrei o livro “Beau Geste”. Não sei se vou ter tempo para o ler, mas recordei épocas em que, em banda desenhada, devorei aquela magnífica história no “Cavaleiro Andante”.

O "Cavaleiro Andante" moldou para sempre o meu imaginário. Algumas memórias fortes que me marcaram a infância e juventude foram fixadas a partir dessa incomparável revista de banda desenhada (na altura, dizia-se "de quadradinhos"), que acolhia preferentemente os autores tributários da "escola belga" de BD, e que abriu caminho aos primeiros desenhos portugueses dessa natureza.

A revista falava-nos de História, de desporto, de literatura, trazia jogos e promovia a interação com os seus jovens leitores. Quando o "Cavaleiro Andante" nasceu eu tinha eu quatro anos. A revista durou dez anos. Observando alguns números mais antigos e o facto de várias histórias neles inseridas permanecerem bem vivas na minha memória, concluo que, muito provavelmente, eu tenha então lido restrospetivamente toda a coleção.

Durante anos, pela casa dos meus pais, havia números dispersos dessa revista semanal que tão importante fora para a minha formação. Fui assim matutando na possibilidade de vir a reconstituir a coleção completa da revista.

Um dia, em 1986, decidi colocar um pequeno anúncio em "A Capital", onde dizia estar interessado em adquirir a coleção completa do "Cavaleiro Andante". Surgiu uma única resposta. Numa noite, fui a uma cave na avenida Dom Carlos, em Lisboa, onde vivia o vendedor.

Era um homem bastante mais velho do que eu. Tinha à venda uma excecional coleção, a que faltavam apenas meia dúzia de números, o que me satisfazia por completo. A conversa nunca a esquecerei. O homem mantinha as revistas embrulhadas em jornais e deixou claro que desfazer-se delas lhe custava bastante. Os olhos brilhavam-lhe enquanto me contava que, ao longo dos anos, tinha conservado cuidadosamente essa publicação que, também para ele, fora da maior importância. A partir de certa altura, a sua ideia fora completar a coleção para a oferecer ao filho. Porém, para sua grande desilusão, o filho, ao chegar o momento em que o pai se aprestava para lha oferecer, não manifestara o menor interesse. Agora, ele próprio tinha escasso espaço para a manter. Por isso, ao ver o meu anúncio, decidira-se a vendê-la. Não tive coragem para regatear o preço que me pedia: 15 contos. Era dinheiro! Mas valeu bem a pena!

É assim que hoje sou um feliz proprietário da coleção completa do "Cavaleiro Andante". Encadernei-a, preservo-a com cuidado e abro-a com alguma frequência, com um prazer que só aqueles que foram leitores fiéis da revista conseguirão perceber.

segunda-feira, agosto 10, 2020

As horas da Bielorrússia


Um dia de 1996, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português recebeu uma nota da embaixada da Bielorrússia em Londres, cujo titular estava acreditado em Lisboa, pedindo "as melhores diligências" para que, de futuro, em língua portuguesa, o nome do país fosse designado por "Belarus" e não por "Bielorrússia". A ideia, ao que parece, era distanciar o país da imagem da Rússia. Em russo, a palavra "Bielorrússia" significa "Rússia branca". Recordo-me de ter tido cuidado de mandar explicar ao governo de Minsk que, em Portugal, o Estado não se arrogava o direito de controlar a tradução dos topónimos. Não insistiram.

A Bielorrússia é um estado encravado entre a Rússia, a Ucrânia, a Polónia, a Letónia e a Lituânia, com uma democracia de "faz-de-conta", muito típica de alguns Estados que emergiram após a eclosão da União Soviética. Desde 1994, é dirigida com mão de ferro por Alexander Lukashenko, que se mantém à frente de um regime que limita as liberdades essenciais dos cerca de 10 milhões de cidadãos do país. 

Ontem, houve por lá eleições que, sem surpresas, renovaram o mandato do sempiterno presidente. A esta hora, as ruas de Minsk não estão nada sossegadas.

Lukashenko teve artes de conseguir que a sua capital, Minsk, fosse escolhida para os encontros tendentes a discutir a pacificação da Ucrânia e, com alguma regularidade, lá o temos visto, impante, abrir caminho às negociações entre a Alemanha, França, Rússia e Ucrânia. Este papel "mediador" de Minsk já havia sido reconhecido em 1992, quando foi criado o "grupo de Minsk", que tem a seu cargo, no âmbito da OSCE, o acompanhamento da questão do Nagorno-Karabakh, entre a Arménia e o Azerbaijão. Não deixa de ser irónico que seja necessário sediar na capital de um país liderado por um autocrata encontros de paz. Mas é a vida...

Em 2002, a Bielorrússia cruzou-se no meu caminho. No âmbito da presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), ao tempo em que representava diplomaticamente Portugal junto da organização, em Viena, coube-me gerir um caso interessante com a Bielorrússia. Descontente com o teor dos relatórios que a "Missão" (já explicarei porque coloco a palavra entre aspas) da OSCE em Minsk produzia, que punham a nu as arbitrariedades anti-democráticas das suas autoridades, o governo de Lukashenko optou por um procedimento hábil: forçou discretamente os trabalhadores bielorrussos a desvincularem-se da Missão e não renovou os vistos aos elementos estrangeiros que nela trabalhavam. Assim, ao final de alguns meses após esta ação ter sido desencadeada, a Missão deixou de ter condições para funcionar. E o governo de Minsk anunciou unilateralmente a data de 31 de dezembro de 2002 como limite às suas atividades, argumentando que se tinha "esgotado o seu objeto". Para a Bielorrússia, as coisas eram imperativas: a Missão da OSCE em Minsk tinha de encerrar naquela data.

Como presidente do Conselho Permanente da OSCE, em Viena, fiquei com a "batata quente" na mão. Portugal iria ficar na pequena história da organização como o país que "deixara encerrar" a Missão em Minsk, facto que podia vir a ser um precedente muito perigoso para outros Estados membros da OSCE, eles próprios pouco satisfeitos com o que a OSCE reportava sobre as fragilidades da sua vida política interna. Os meus colegas ocidentais - com destaque para os EUA, França, Reino Unido e Alemanha - pressionavam-me para que eu tentasse encontrar uma solução para que a OSCE pudesse continuar em Minsk. A Holanda, que nos sucederia na presidência no dia 1 de janeiro de 2003, preparava-se já para "lamentar" ter o início do seu mandato marcado por esse facto.

Portugal "portara-se bem" com a Bielorrússia até então. Contra a vontade da União Europeia, trabalhara para que o seu ministro dos Negócios Estrangeiros viesse a cimeira da organização no Porto, no início do mês de dezembro, a fim de que fosse possível tentar que os então 55 Estados da OSCE conseguissem acordar conclusões consensuais (isso foi possível, pela última vez, nessa cimeira do Porto, em 2002, e nunca mais o seria na história posterior da OSCE, e já passaram 18 anos). Simultaneamente, eu próprio cuidara em manter sempre uma relação cordial com o meu colega bielorrusso em Viena. Era um homem grande, um cientista feito embaixador, que percebia claramente que a "bofetada"que a Bielorrússia estava prestes a dar à OSCE não deixaria de ter consequências negativas para o seu país, que já se defrontava com sanções por parte da União Europeia e com um ambiente de isolamento e hostilidade crescente. Ser embaixador da Bielorrússia era (e nunca deixou de ser) uma tarefa muito difícil.

Com o meu colega e meu “deputy", embaixador Carlos Pais, embora sem a menor instrução orientadora de Lisboa, decidimos propor ao Secretário-Geral da OSCE e, posteriormente, à Bielorrússia uma saída para a organização manter uma presença em Minsk, com um mútuo "face-saving". Nos termos desse "deal", a "Missão OSCE em Minsk", que tinha um mandato próprio, aprovado anos antes do Conselho Permanente da OSCE, encerraria formalmente, como os bielorrussos desejavam, no fim do ano. Entretanto, Em contrapartida, propúnhamos a instalação de um "Escritório OSCE em Minsk", com um novo mandato, que tentaríamos negociar com Minsk e fazer aprovar pela OSCE até ao final do ano, para entrar em vigor no primeiro dia do ano seguinte.

Depois de alguma hesitação, a Bielorrússia "comprou" a nossa ideia e fez deslocar a Viena, por duas vezes, uma delegação chefiada por um representante pessoal de Alexander Lukashenko, com o qual discuti, durante horas intermináveis, por cerca de quatro dias, o texto do novo mandato, que seria depois vertido num "memorandum of understanding". Posso hoje revelar que os quatro países ocidentais, que, com a Rússia, eram vulgarmente referidos como os "major players" dentro da organização, "fizeram-nos a vida negra" até ao último instante, com exigências nas funções futuras do "Escritório" de que os bielorrussos nem queriam ouvir falar.

No termo de uma presidência que, por razões que não vêm aqui para o caso, já havia sido muito difícil, este trabalho de "go-betweener" revelou-se de extrema complexidade e o ter-se conseguido um resultado positivo muito se ficou a dever ao meu colega Carlos Pais que, com uma "paciência de santo", me ajudou a inventar fórmulas de texto imaginativas que combinassem um mínimo de eficácia operacional futura do Escritório, com uma "ambiguidade criativa" que conseguisse fazer a ponte. E tivemos sucesso: a "Missão" encerrou em 31.12.02 e o "Escritório" iniciou a sua existência em 1.1.03.

A prova provada da eficácia do Escritório seria dada, oito anos mais tarde, pela própria Bielorrússia, que decidiu impor a data de 31.12.10 como data limite para a atividade daquela presença da OSCE, obrigando então, e definitivamente, à saída da OSCE de Minsk, ao que parece descontente com o facto da organização ter denunciado, por intermédio daquele Escritório, mais uma vaga das tradicionais irregularidades eleitorais praticadas pelo governo de Lukashenko. A prazo, veio assim a constatara-se que o mandato que Portugal desenhou foi mesmo incomodamente eficaz.

domingo, agosto 09, 2020

Apenas uma precisão


Michel Barnier e Pierre de Boissieu são duas figuras importantes da vida europeia.

Barnier é o atual negociador do Brexit, em nome dos 27, lugar que tem desempenhado com uma competência unanimemente reconhecida. Foi comissário europeu e, por um breve período, ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país. Em 1996, data em que ocorre a historieta que vou contar, ele era o representante da França, como ministro adjunto para os Assuntos Europeus, na Conferência Intergovernamental para a revisão do Tratado de Maastrich. Eu tinha então essa mesma tarefa, por Portugal.

De Boissieu, hoje aposentado, era representante permanente (nome dado aos embaixadores nas estruturas multilaterais) francês junto da União Europeia. Era um profundo conhecedor das matérias europeias e iria chegar, anos mais tarde, a secretário-geral adjunto do Conselho de Ministros da UE. O seu poder derivava, não apenas da sua inteligência e conhecimentos, mas, dizia-se, da sua pertença à família De Gaulle, que lhe garantia um apoio constante em Paris, independentemente da rotação dos governos. Foi um extraordinário servidor público francês, com quem tive algumas “accrochages”, mas por quem ganhei um imenso respeito.

Entre Barnier e De Boissieu a corrente não passava de todo. Fui testemunha de vários episódios, que muito animaram esses tempos negociais. Apesar de ministro, Barnier não conseguia impedir a impertinência iconoclasta de De Boissieu, que divertia toda a gente à volta da mesa. 

Um dia, durante uma reunião negocial em Bruxelas, o ministro, com o embaixador a seu lado, decidiu citar uma opinião que recolhera de François Mitterrand, que tinha morrido meses antes. Tratava-se de uma qualquer ideia sobre o futuro ou o sobre passado da Europa, já não recordo bem.

Barnier, como era seu timbre, foi algo pomposo ao fazer a confidência. Mitterrand era de um campo político oposto ao seu (e ao de De Boissieu, já agora), o que dava foros de alguma singularidade à sua invocação. A sala estava silenciosa, talvez menos por reverência e mais por curiosidade. Foi enfático, solene, ao repetir: “Mitterrand disse-me isso, na conversa que tivemos, só nós dois, em sua casa”. 

Ora isto era "demais" para o embaixador, o qual, de viés, olhava Barnier com visível ironia, desde o início da intervenção. E não resistiu. Chegou-se à frente, com o seu eterno pullover azul com um furo do cotovelo, inclinou-se para o microfone que partilhava com o ministro, o qual gozava um segundo de pausa, explorando o efeito da sua frase, e "esclareceu", sobre o momento da conversa com Mitterrand:
- “Avant sa mort, bien sûr!”, não fosse alguém suspeitar de qualquer diálogo do governante com os espíritos...

A sala soltou-se em gargalhadas. Todo o efeito pretendido por Barnier se esvaiu, naquele instante. Já ninguém se lembrava mais o que de tão decisivo teria dito o ilustre falecido. 

Olhávamos para a cara furiosa do ministro, que se entaramelava a tentar recolar o discurso perante um fundo sussurrante de risotas contidas, e para o ar divertido do embaixador, ao seu lado, ciente de que tinha ganho o seu dia...


sábado, agosto 08, 2020

Falhado

Por que será que a comunidade internacional, que frequentemente designa a Guiné-Bissau como um “estado falhado”, nunca o faz no caso do Líbano?

Já chegámos à Madeira?

O líder madeirense do PSD defende uma aliança com o Chega, com o argumento de que Sá Carneiro também se associou ao CDS na AD.

Equiparar o Chega ao CDS, partido com o qual o PSD se coligou na Madeira, é um belo “elogio” para o CSD, não é?

Já chega!

Querer um Chega “moderado” é como querer um PCP “moderno” e “aberto”. O PCP ainda existe porque não é nada disso (ao contrário dos seus homólogos noutros países, que desapareceram por completo). Se o Chega se “moderasse”, não era o Chega e o seu líder regressava a Loures...

Juan Carlos

Curiosamente, Juan Carlos passou a ter nas mãos o futuro da monarquia em Espanha. Se acaso lhe passasse pela cabeça refugiar-se num país sem tratado de extradição com a Espanha, o trono de Filipe VI, com o qual pactou o seu exílio, ficaria por um fio.

Desventura

O deputado do Chega quer ser candidato à presidência da República. Está no seu direito. Para isso tem de prescindir, em definitivo, da função de deputado. Nem a mais benevolente interpretação extensiva das exceções para a supressão do mandato permitiria o seu regresso. É a vida!

E se Trump perder?

Não se sabe se Donald Trump vai ou não conseguir manter-se no poder, depois das eleições de novembro. Mas todos sabemos que, no caso de ele vir a abandonar a Casa Branca, isso se terá ficado a dever à gestão caótica que fez da pandemia, que é, visivelmente, a principal causa da forte erosão registada na sua popularidade. A não ter ocorrido esta crise, a probabilidade de Trump ser reeleito era muito elevada - hipótese que, aliás, não pode ainda ser descartada.

Todos também já perceberam, a começar pelos americanos, que, se Joe Biden vier a suceder-lhe, sê-lo-á menos por um entusiasmo popular ao seu projeto alternativo e, muito mais, pelos erros cometidos por alguém que, já é quase uma certeza, a História virá a consagrar como o pior presidente que a América alguma vez teve.

As hipóteses de sucesso de Biden, um político decente sem um brilho particular, assentam na continuidade do processo de desgaste político do seu adversário e na esperança de que, nos próximos meses, a imagem do candidato democrático não vir a degradar-se. Isso passa também por uma boa seleção da sua parceira (será uma mulher) no “ticket” presidencial, a qual também estará, até ao último momento, sob um forte escrutínio.

O lugar de presidente do EUA, como os anos de Trump mostraram à saciedade, é uma fonte extraordinária de poder. Pode dizer-se que, em regimes democráticos, em termos de personalização, o caso americano é quase único. A legitimidade oriunda das urnas (e é uma mera “technicality”, que não olha à singularidade do sistema federal, a questão de um presidente poder ser eleito sem ter sido o candidato mais votado) concede ao chefe do Estado americano uma discricionaridade dificilmente admissível noutros regimes. O modo como Trump tem vindo a exercer essa liberalidade dá ainda mais evidência ao facto. No passado, com presidentes “normais”, com os mecanismos equilibradores do Estado a funcionarem, podiam notar-se alguns exageros. Mas Trump levou tudo isso ao absurdo.

Um presidente americano, contudo, não é apenas presidente do seu país. A expressão global dos EUA converte qualquer gesto do líder americano, com implicações externas, num vetor de influência sobre toda a sociedade internacional. E se, em condições regulares, o mundo sabe que tem de contar com a atitude americana como um fator condicionante, e muitas vezes constrangente, Trump representa uma realidade verdadeiramente nova. Ao colocar em causa a ordem internacional que estava pactuada, Trump provocou uma subversão traumática nos instrumentos de regulação global, abalando equilíbrios que os próprios EUA tinham ajudado a dar por adquiridos.

O caráter “revisionista” (como a teoria política gosta de designar) de algumas das suas posturas abriu sérias feridas e trouxe ao mundo, pela primeira vez em mais de sete décadas, uma América imprevisível, egoísta, abertamente não solidária, que colocou em causa a sua autoridade moral, como maior potência ocidental. Ao rejeitar abertamente o diálogo e o compromisso, como fórmulas reguladoras da estabilidade do mundo internacional, substituindo esse entendimento por uma lógica de pura afirmação do seu poder nacional, esta nova América transmitiu um sinal negativo a outros Estados cujos regimes ansiavam há muito por uma libertação do espartilho multilateral. Nenhuma ordem internacional pode sobreviver se os seus principais atores se considerarem isentos dos mecanismos que a regulam. Esse terá sido um dos aspetos mais nefastos do período Trump.

E se Biden ganhar? Há uma perigosa ilusão de que, se Trump vier a ser derrotado, haverá como que um “reset”, uma espécie de idílico regresso à ordem do tempo de Obama.

Ora política não funciona assim. É claro que é expectável, nesse cenário, uma retoma da atenção face à Europa, uma atitude mais simpática face ao mundo multilateral. Mas não se espere um regresso à “square one”, no jogo internacional. Muitos dos interesses americanos, protegidos por Trump, procurarão acolhimento numa eventual administração Biden. E tê-lo-ão.

sexta-feira, agosto 07, 2020

O chato

- Ó diabo! Vem ali o Castanheira!

O comentário feito pelo chefe de repartição, voltando-se para o diretor-geral, quando ambos saíam para o almoço, alertava para um perfil rotundo, algo bamboleante, que, ao fundo, vindo da rua, se aprestava para circundar o jardim central do pátio das Necessidades.

O Castanheira era um daqueles funcionários, entre o caricato e o patético, que o ministério, para não ter de enfrentar a óbvia inadequação para ocupar lugares de responsabilidade na sede, optava por expatriar em serviço, esquecendo-o em consulados longínquos, na ilusão de que isso os tornaria inóquos para a imagem de uma carreira que, por incompetência e irresponsabilidade, os havia deixado entrar no quadro e, por cobardia e descuidada gestão de recursos humanos, não era capaz de isolar numa prateleira interna, para evitar piores males.

Os "Castanheiras" existem em todos os tempos do MNE, ganham lugares no quadro externo num qualquer "movimento diplomático" que deles acaba por ter piedade ("Coitado! Tem filhos..." ou "O homem já anda por aí há tanto tempo...") e, não raramente, transmitem uma medíocre imagem do país que lhes caberia saber representar. Não são muitos, felizmente, mas, por muitos poucos se sejam, são em número demasiado. Quem conhece bem a carreira sabe do que estou a falar.

Vindo de férias a Lisboa, do lugar distante para onde o "conselho" o tinha mandado já há anos, o Castanheira avançava então, nesse dia de verão do final dos anos 70, com um fato claro de mau corte, que denunciava os tristes trópicos por onde agora pairava, em direção às duas figuras da hierarquia que saíam do palácio. Era um homem conhecido pelo verbo balofo, pelo caráter prolixo dos seus comentários, enfim, para sintetizar, por ser um inenarrável chato, uma lapa oral, daqueles que nos agarram a manga do casaco e colocam a mão sapuda no ombro, que aproximam a cara para reforçar a cumplicidade, fazendo-nos partilhar a riqueza odorífera do seu bafo, coisa agora mais perigosa, em tempos de pandemia.

Ora o diretor-geral, um embaixador da velha escola, era um exemplo conhecido de quantos, na sua consabida snobeira e pesporrência, não tinham a menor paciência para conviver com esse estilo de figuras, algo untuosas e fátuas. Tinha apenas uma vaguíssima ideia do tal Castanheira, fruto de anedotas que dele ouvira, na tradição oral de escárnio em que o MNE é useiro, vezeiro e cruel. Nunca tinha falado com ele e, francamente, não era agora que isso iria acontecer, como desde logo avisou o amigo com quem ia almoçar. Este, por uma infeliz coincidência para o momento, tinha entrado para a carreira no concurso do Castanheira, o que o não dispensava de uma saudação mínima ao colega expatriado e que há muito não via.

- É pá! Vê lá se nos libertas logo do homem! Dizem-me que é um cretino de altíssimo coturno... - sussurrou o embaixador, com o Castanheira já quase à distância de um cumprimento.

O encontro deu-se à saída do pórtico de acesso ao palácio, sob o olhar atento, venerador e obrigado do Matos, o digno porteiro que, à época, por aí oficiava, no lugar onde, nos dias de hoje, pairam umas fardas anónimas da Securitas ou coisa parecida, uma espécie de genérico funcional, em tempos de seca orçamental.

Ao abraço entre o Castanheira e o chefe de repartição, seguiu-se o inevitável:

- ... não sei se se conhecem: o Castanheira, que anda agora pela América Latina, e o senhor embaixador...

O Castanheira nem deixou o amigo terminar a frase:

- O senhor embaixador?! Essa agora! Quem o não conhece?! Tenho imenso prazer em encontrar vossa excelência. O senhor embaixador é uma figura referencial da carreira, é - permita-me que lho diga!- uma das personalidades que mais honra a nossa diplomacia. Tenho por vossa excelência uma incontida admiração e andava, há anos, por ter o ensejo de lho expressar em pessoa. É para mim um imenso privilégio poder conhecê-lo e cumprimentá-lo. E diria mesmo, agradecer-lhe o que tem feito por nós, pela nossa casa, pelo prestígio da nossa profissão. Vossa excelência é um exemplo que todos procuramos seguir.

E o Castanheira, sempre ditirâmbico, continuou numa elegia gongórica sobre a figura do diretor-geral, lembrando os seus postos anteriores e os alegados feitos profissionais relevantes que bem ilustravam esse percurso. O amigo chefe de repartição só a custo conseguiu pôr cobro, ao final de uns minutos, a essa inesgotável verborreia.

Finalmente, lá se descolaram do Castanheira, que anunciou que ia ver umas "senhoras" ao "quarto andar", para tratar do telhado do consulado. "O senhor embaixador sabe, melhor do que ninguém, o que são essas coisas", deixou no ar, profissionalmente cúmplice, afastando-se, não sem uma respeitosa vénia ao superior hierárquico.

O chefe de repartição, aliviado, olhou para o diretor-geral e comentou:

- Ó pá! Desculpa lá teres tido que aturar este tipo. É um chato, nunca mais nos desamparava a loja...

- Essa agora! Até te digo mais: fiquei bem impressionado com o rapaz! Este Castanheira pareceu-me simpático e articulado. Mudei a ideia que me tinham criado dele. Como é que ele está na lista de antiguidade? Não lhe podemos dar uma mão, na reunião do "conselho" para as promoções, para a semana?

quarta-feira, agosto 05, 2020

As cartas de Paihama

Só há pouco soube da morte de Kundi Paihama, uma figura política, e depois militar, angolana que, nos tempos de José Eduardo dos Santos, ocupou diversas e importantes funções ministeriais, tendo também sido governador de várias províncias.

Kundi Paihama era vulgarmente tido por ser de etnia cuanhama (embora ele contrariasse essa ideia), que fugia à tradicional dicotomia entre quimbundos, como José Eduardo dos Santos, e ovimbundos, como Jonas Savimbi, que polarizou a vida angolana.

Acompanhei António Pinto da França, embaixador português em Angola, na visita que este lhe fez, em junho de 1984 (recordo bem, porque comemorávamos o 10 de junho), ao tempo em que Paihama era governador de Benguela.

Recordo-me que o António descreve, com a imensa graça que era a sua, no livro “Diário de Angola”, a audiência que Paihama lhe concedeu no fausto possível do palácio do governo do tempo colonial. Não tendo agora o livro à mão, não registei se ele também fixa a cena que se passou, nessa noite, na casa do nosso cônsul em Benguela, Fernando Coelho.

O Fernando, um bom amigo já falecido há muito, era uma figura extremamente simpática, popular, que conseguira garantir um grau de interlocução muito raro com as autoridades locais. Embora as relações de Angola com Portugal atravessassem então um tempo complexo, em Benguela elas viviam no melhor dos mundos. Fernando Coelho conhecia toda a gente, dava-se lindamente com todas as entidades da província, a começar pelo governador, assim conseguindo resolver muitos problemas. Embora frequentemente pouco ortodoxo, provou ser ali o homem certo no tempo certo.

A confirmá-lo, depois do jantar no dia da nossa chegada, Kundi Paihama bateu à porta da residência do cônsul, onde o embaixador e eu estávamos alojados, dizendo que vinha “beber um copo” com o seu “novo amigo português”. A hipótese dessa visita tinha-me já sido aventada pelo Fernando Coelho, mas não lhe conferi grande plausibilidade.

Mas ali estava o poderoso Paihama, para umas horas de boa conversa, em que nos falou do seu amor acrisolado pelo Futebol Clube do Porto e nos revelou a troca de mensagens que, no “jogo de espelhos” daquela infindável guerra civil, trocava, por vias travessas, com Savimbi, em cuja eliminação - física, militar e política -, duas décadas mais tarde, viria a estar diretamente envolvido.

A imagem mais impressiva que guardo dessa noite é, porém, o momento em que Paihama se volta para o Fernando Coelho e pergunta, com a maior naturalidade: “O senhor cônsul não tem um baralho de cartas, para jogarmos uma partida de sueca? O senhor embaixador sabe jogar sueca, não sabe?” O António Pinto da França sabia e ali formámos nós uma mesa de sueca, bem regada a cerveja.

Não tendo isso registado na memória, de uma coisa tenho a certeza: Kundi Paihama não perdeu aquela partida de sueca. Deixar ganhar o outro em coisas secundárias é uma arte que os diplomatas se habituaram a cultivar.

Destinos


Com a pandemia a colocar nuvens sobre o nosso futuro, dei comigo a pensar que, agora mais do que nunca, há lugares onde já não poderei ir. Nunca fui um viajante compulsivo, nos últimos anos aportuguesei imenso as minhas viagens, mas, claro!, há lugares que tenho pena de nunca ter conhecido. Não falo dos destinos óbvios, do turismo glamoroso. Desse, fiquei bem “servido”!

Há cidades, contudo, que, continuando a existir, deixaram de ser o que eram quando a minha imaginação me motivava para as visitar: Sana, no Iemen, Cabul, no Afeganistão, Cartum, no Sudão, ou Aleppo, na Síria. A vida que hoje por lá se vive deixou de me entusiasmar. Ainda serão visitáveis, há excursões de risco que se podem tomar, mas que graça pode ter ir numa viatura blindada entre um aeroporto e um hotel muralhado, passar a correr, dentro de um carro, por uma rua onde podemos ser assaltados, onde uma bomba pode estourar, um “rocket” pode cair, a qualquer momento? É que uma cidade, para mim, são passeios a pé, são lojas, é olhar a gente, entrar num café, numa casa de velharias, visitar, com calma, igrejas ou monumentos, experimentar (boa) comida local. E, agora, com a pandemia, como irá ser?

Certas paragens, na minha curiosidade contemporânea, deixaram de ter a menor prioridade. Quis ir e nunca fui a Pristina, no Kosovo, nem a Anchorage, no Alasca, nem a Ulan Bator, na Mongólia. Noutros tempos, tive essas cidades no meu potencial mapa de visitas, embora, devo confessar, nunca tenha feito um grande esforço para concretizar esses sonhos. Outras, como Juba, no Sudão do Sul, ou Skopje, na Macedónia, sobre as quais tenho alguma curiosidade, não me animam a uma deslocação.

Durante muito tempo, tive intenções de ir a Alexandria, mas desisti, por ter pouca graça, ao que me dizem, salvo a nova biblioteca. Nada me mobiliza ir hoje a Hanói, que já fez parte da minha mitologia, tal como aconteceu com Katmandu, no Nepal. E admito, sem dificuldade, que já não tenho paciência para ir a Alice Springs, na Austrália, que achava “o máximo” visitar. Mas, estranhamente, e ali ao lado, confesso que ainda gostava de ir a Hobbart, na Tasmânia. E também a Novosibirsk, na Rússia. E a El Aaiun, no Saara Ocidental. E a Stepanakert, no Nagorno-Karabakh. E ainda sonho ir um dia ao Okussi, em Timor-Leste, ou a Tete, em Moçambique, ou a Svalvard, na Noruega, e, talvez ainda, a Thimphu, no Butão, a Salem, no Oregon dos EUA, ou a Punta Arenas, no Chile. Terei tempo? E pachorra? Se calhar, não. Fica a nota, sem qualquer melancolia.

terça-feira, agosto 04, 2020

Ibérico


Olhando esta fotografia, tirada no “El Corte Inglés” de Lisboa, pode entender-se melhor por que razão havia, na diplomacia portuguesa, uma escola de pensamento que sempre se recusou a usar o termo “ibérico”, preferindo-lhe “peninsular”.

segunda-feira, agosto 03, 2020

O menino

Até ter sido colocado na embaixada em Luanda, em 1982, a minha experiência com africanos era muito escassa. Na minha terra, em Vila Real, havia um único negro, jogador de futebol. Na universidade tive vários colegas, negros e mulatos. (Já terão dado conta que não vou enveredar por um léxico politicamente correto). Eram oriundos de famílias das colónias com óbvias posses e, na sua relação com os restantes colegas, nunca detetetei a menor diferenciação ou discriminação. Alguns desses amigos ficaram-me, aliás, para sempre - em Cabo Verde, em S. Tomé, em Angola e em Moçambique. 

Tive o privilégio de viver um ambiente, familiar e social, que, por completo, me imunizou de quaisquer pulsões racistas. Mas mentiria se dissesse que nunca na vida contei anedotas “de pretos” e graçolas congéneres. Claro que contei, como as contei sexistas e de género. Não sou nenhum anjo!

Como diplomata, chegado a Luanda, fiz, entretanto, vários outros bons amigos, muitos dos quais de cor. Alguns conservo-os até hoje e, dentre todos eles, há um, orgulhosamente negro, que permanece como um dos meus mais íntimos amigos, que tenho para a vida. 

Cheguei a essa Angola num tempo tenso, quer na vida política interna, com guerra civil à volta, quer na relação com Portugal, que atravessava um dos seus piores períodos. Por um “milagre” que tem muito a ver com a cumplicidade de uma língua comum, mas igualmente de uma matriz comportamental com muitas proximidades, sendo um diplomata estrangeiro isso nunca me vedou minimamente o convívio com pessoas locais - negros, mulatos ou brancos. Devo aliás dizer, porque é pura verdade, que tive maiores dificuldades com alguns brancos angolanos, que pareciam pretender “fazer esquecer” a sua cor, do que com pessoas de outra cor, que viviam de forma descomplexada a independência do seu país. Às vezes, podia notar-se, aqui ou ali, a emergência de alguma arrogância, mas tudo era superável com diálogo e frontalidade respeitosa.

Com exceção do pessoal diplomático ou com estatuto equiparado, a generalidade dos funcionários da nossa embaixada em Luanda, nesse ano de 1982, era oriunda da administração ultramarina. O mesmo acontecia, aliás, nas restantes embaixadas nas antigas colónias.

Muita dessa gente sofrera o período de transição política, com guerra aberta nas ruas da capital do novo país. A maioria mandara a família para a “metrópole” e ficara para trás, a tentar ainda amealhar alguns tostões. Vivia, às vezes de forma precária, numa Luanda tensa, sem comércio, com “esquemas” para a sobrevivência, numa convivência complexa com o novo poder, muitas vezes titulado por pessoas com quem, menos de uma década antes, esses agora “expatriados” haviam partilhado uma diferente relação de forças. Era gente com sentimentos racistas? Muitos tinham amigos negros, mas em outros detetavam-se reações que relevavam de velhos vícios comportamentais.

Um dia, ao passar junto à sala de espera da embaixada, ouvi um diálogo entre um contínuo, homem já de uma certa idade, com décadas de Angola, e alguém que esperava por uma reunião e que terá inquirido sobre se o encontro ainda estava muito demorado. Foi isto que ouvi: “Ó menino! Tu vais esperar, está bem?” Voltei atrás, olhei de relance para dentro da sala e constatei que o “menino” a quem o contínuo se dirigira era um homem negro, de quarenta e tal anos, que se mantivera impávido.

Fui para o meu gabinete e mandei chamar o contínuo. Perguntei-lhe se conhecia a pessoa que estava na sala de espera. Disse-me que não, que era a primeira vez que a via, que ela estava à espera de ser recebido por outro funcionário. “Então o senhor não o conhece e trata-o por tu?”, perguntei. O contínuo sorriu, olhando para o jovem diplomata que eu era, recém-chegado de uma embaixada num país nórdico, “maçarico” nas questões africanas, e foi “pedagógico”: “Ó senhor doutor! Isto cá é assim! Eles estão habituados, já não estranham”.

Fiz uma cara séria e retorqui: “O senhor fica a saber que se me chega aos ouvidos que volta a tratar desta forma alguém - preto, mulato, branco ou às riscas - que venha à embaixada, participo imediatamente de si. E convém que se saiba que qualquer colega seu, que se comporte dessa maneira, terá uma participação idêntica”. O contínuo embatucou e saiu. Nem era mau homem, ao que vim a constatar nos tempos seguintes. Era, apenas, um produto de outros tempos.

Quando, nos anos que se sucederam, os administrativos, contínuos e porteiros da embaixada constataram que alguns dos amigos dos novo cônsul-geral, do novo ministro-conselheiro e de mim próprio afinal não eram só “caucasianos” (acho uma graça imensa à expressão, que, estou certo, à época ninguém ousava usar, com risco de ter uma gargalhada como reação!), devem ter aprendido alguma coisa. Podem não ter aceite, com sinceridade, o comportamento que lhes era imposto, mas lembro-me que as coisas, a partir dessa altura, melhoraram bastante.

Mas “old habits die hard”, como se viu em Moscavide.

domingo, agosto 02, 2020

Allen


Lembro-me como se fosse hoje, e já lá vão quase duas décadas. O meu pai, com 91 anos, que tinha ido passar uns meses connosco a Nova Iorque, anunciou-me, antes do jantar: “Hoje, com a tua mulher, vimos no Central Park aquele ator cómico de que vocês gostam muito. Como é que ele se chama? Allen, não é?”

Por mais estranho que isso pareça, pensei em Dave Allen, um fantástico intérprete irlandês de “stand-up comedy”, que tinha “sketches” televisivos magníficos e que víramos uma vez num espetáculo em Londres. Se toda a gente ia a Nova Iorque, por que diabo Dave Allen não estaria por lá? E esqueci o assunto, até que, minutos depois, a minha mulher me esmagou de inveja: “Sabes que nos cruzámos esta tarde com o Woody Allen?”

Nos Estados Unidos, por muito tempo, Allen estava longe de ter a popularidade que tinha na Europa. Talvez porque, para muitos americanos, ele fosse demasiado nova-iorquino. Para essas pessoas, Nova Iorque é a cidade mais “estrangeira”, quase europeia, do país. Além disso, aquele autor e ator é conhecido como um “liberal” (palavra que por lá tem o significado contrário ao que por cá tem, isto é, significa progressista e de esquerda), o que está longe de corresponder a um certificado automático de popularidade na América.

Lembro-me de, uma noite, em casa de um médico americano amigo, ter-se falado de Woody Allen. O jantar reunia gente rica (eu era o “pobre” do grupo, tendo apenas o “anel” de embaixador, o que sempre constitui um certificado de acesso conjuntural ao elevador social), na maioria judeus, votantes democratas, que apreciavam Allen. Mas conheciam mal a sua filmografia. Eu atrevi-me a dizer que, muito provavelmente, devia ter visto toda a obra de Woody Allen (o que não é invulgar, para algumas pessoas da minha geração portuguesa). Ficou tudo a olhar para mim, com ar espantado, tomando-me ou por mentiroso ou por um obcecado. Até que um deles “explicou”: “O Francisco é europeu e lá há uma ‘mania’ do Woody Allen.” Era isso mesmo!

Tinha visto Allen ao vivo, pela primeira vez, em 1992, também em Nova Iorque, naquelas que eram, ao tempo, as suas apresentações semanais no Michael’s Pub, tocando clarinete integrado numa orquestra. Sei pouco de música, mas pareceu-me um intérprete banal, o que não impediu, depois de um solo que fez, que a sala tivesse estourado de aplausos. Tenho na memória que, na mesa ao lado da nossa, visivelmente entusiasmado com Allen, estava o intéprete preferido de François Truffaut, Jean-Pierre Léaud. Na noite seguinte, fui encontrar este, de novo, desta vez a jantar no Elaine’s - o que prova que seguia o roteiro de uma Nova Iorque de turismo “intelectual” que estava na moda. Estranhei mesmo, na noite seguinte, não o ver no Blue Note...

Nesses anos mais tarde, em que vivi em Nova Iorque, um amigo português, de visita, quis ir ver Woddy Allen. Os shows semanais já eram então no Hotel Carlyle e lá fomos: para o meu incompetente ouvido de amante de jazz, o clarinetista não evoluíra nada.

Na sua autobiografia, que estou a acabar de ler, Allen reconhece, talvez com esforçada modéstia, que é um músico apenas banal. E conta que um amigo um dia lhe perguntou: “Não tens vergonha?” O amigo referia-se ao facto de, nas “tournées” do conjunto onde Allen se integra, um pouco por todo o mundo, as salas se encherem, não pela qualidade musical do produto oferecido mas, muito simplesmente, pelo desejo das pessoas de irem ver tocar (sofrivelmente) jazz um (genial) autor e intérprete de cinema. Allen não respondeu e, pelos vistos, continua a dar-lhe muito prazer esse vício musical.

Sobre as trapalhadas em que Woody Allen anda agora metido não falo aqui.

sábado, agosto 01, 2020

Europa explicada


Vale a pena ler o artigo de Fernando Neves, no “Público”, onde se explica, com clareza, a questão dos dinheiros europeus.

Jornaleiros

Nos últimos dias, por um conjunto variado e não uniforme de razões, tenho vindo a dar razão a Baptista-Bastos, quando falava de “algumas pessoas injustamente acusadas de serem jornalistas”.

Crise

Antes que as notícias da queda do PIB sejam apropriadas pelo tremendismo de um discurso cuja titularidade se conhece, gostava de lembrar que houve e há por aí uma coisa chamada pandemia. Só lembro isso!

Bom feitio

A prova provada de que tenho bom feitio é não ter emitido imprecações ao constatar que me esqueci dos carregadores do iPhone e do iPad em Lisboa. Talvez o facto da culpa ser minha e de poder carregar um deles no isqueiro do carro possa justificar esta relativa bonomia.

Posso começar a ler?


sexta-feira, julho 31, 2020

Os claustros


Bárbara Reis, jornalista do “Público” que conhece bem os corredores das Necessidades, está a publicar no seu jornal um interessante relato sobre os tempos de mudança, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, com o surgimento da democracia, em 1974. Hoje saiu o segundo desses artigos. Vale a pena ler!

Dê-lhe o arroz!

"O Arroz Português - um Mundo Gastronómico" é o mais recente livro de Fortunato da Câmara, estudioso da gastronomia e magnífico cr...