segunda-feira, agosto 10, 2020

As horas da Bielorrússia


Um dia de 1996, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português recebeu uma nota da embaixada da Bielorrússia em Londres, cujo titular estava acreditado em Lisboa, pedindo "as melhores diligências" para que, de futuro, em língua portuguesa, o nome do país fosse designado por "Belarus" e não por "Bielorrússia". A ideia, ao que parece, era distanciar o país da imagem da Rússia. Em russo, a palavra "Bielorrússia" significa "Rússia branca". Recordo-me de ter tido cuidado de mandar explicar ao governo de Minsk que, em Portugal, o Estado não se arrogava o direito de controlar a tradução dos topónimos. Não insistiram.

A Bielorrússia é um estado encravado entre a Rússia, a Ucrânia, a Polónia, a Letónia e a Lituânia, com uma democracia de "faz-de-conta", muito típica de alguns Estados que emergiram após a eclosão da União Soviética. Desde 1994, é dirigida com mão de ferro por Alexander Lukashenko, que se mantém à frente de um regime que limita as liberdades essenciais dos cerca de 10 milhões de cidadãos do país. 

Ontem, houve por lá eleições que, sem surpresas, renovaram o mandato do sempiterno presidente. A esta hora, as ruas de Minsk não estão nada sossegadas.

Lukashenko teve artes de conseguir que a sua capital, Minsk, fosse escolhida para os encontros tendentes a discutir a pacificação da Ucrânia e, com alguma regularidade, lá o temos visto, impante, abrir caminho às negociações entre a Alemanha, França, Rússia e Ucrânia. Este papel "mediador" de Minsk já havia sido reconhecido em 1992, quando foi criado o "grupo de Minsk", que tem a seu cargo, no âmbito da OSCE, o acompanhamento da questão do Nagorno-Karabakh, entre a Arménia e o Azerbaijão. Não deixa de ser irónico que seja necessário sediar na capital de um país liderado por um autocrata encontros de paz. Mas é a vida...

Em 2002, a Bielorrússia cruzou-se no meu caminho. No âmbito da presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), ao tempo em que representava diplomaticamente Portugal junto da organização, em Viena, coube-me gerir um caso interessante com a Bielorrússia. Descontente com o teor dos relatórios que a "Missão" (já explicarei porque coloco a palavra entre aspas) da OSCE em Minsk produzia, que punham a nu as arbitrariedades anti-democráticas das suas autoridades, o governo de Lukashenko optou por um procedimento hábil: forçou discretamente os trabalhadores bielorrussos a desvincularem-se da Missão e não renovou os vistos aos elementos estrangeiros que nela trabalhavam. Assim, ao final de alguns meses após esta ação ter sido desencadeada, a Missão deixou de ter condições para funcionar. E o governo de Minsk anunciou unilateralmente a data de 31 de dezembro de 2002 como limite às suas atividades, argumentando que se tinha "esgotado o seu objeto". Para a Bielorrússia, as coisas eram imperativas: a Missão da OSCE em Minsk tinha de encerrar naquela data.

Como presidente do Conselho Permanente da OSCE, em Viena, fiquei com a "batata quente" na mão. Portugal iria ficar na pequena história da organização como o país que "deixara encerrar" a Missão em Minsk, facto que podia vir a ser um precedente muito perigoso para outros Estados membros da OSCE, eles próprios pouco satisfeitos com o que a OSCE reportava sobre as fragilidades da sua vida política interna. Os meus colegas ocidentais - com destaque para os EUA, França, Reino Unido e Alemanha - pressionavam-me para que eu tentasse encontrar uma solução para que a OSCE pudesse continuar em Minsk. A Holanda, que nos sucederia na presidência no dia 1 de janeiro de 2003, preparava-se já para "lamentar" ter o início do seu mandato marcado por esse facto.

Portugal "portara-se bem" com a Bielorrússia até então. Contra a vontade da União Europeia, trabalhara para que o seu ministro dos Negócios Estrangeiros viesse a cimeira da organização no Porto, no início do mês de dezembro, a fim de que fosse possível tentar que os então 55 Estados da OSCE conseguissem acordar conclusões consensuais (isso foi possível, pela última vez, nessa cimeira do Porto, em 2002, e nunca mais o seria na história posterior da OSCE, e já passaram 18 anos). Simultaneamente, eu próprio cuidara em manter sempre uma relação cordial com o meu colega bielorrusso em Viena. Era um homem grande, um cientista feito embaixador, que percebia claramente que a "bofetada"que a Bielorrússia estava prestes a dar à OSCE não deixaria de ter consequências negativas para o seu país, que já se defrontava com sanções por parte da União Europeia e com um ambiente de isolamento e hostilidade crescente. Ser embaixador da Bielorrússia era (e nunca deixou de ser) uma tarefa muito difícil.

Com o meu colega e meu “deputy", embaixador Carlos Pais, embora sem a menor instrução orientadora de Lisboa, decidimos propor ao Secretário-Geral da OSCE e, posteriormente, à Bielorrússia uma saída para a organização manter uma presença em Minsk, com um mútuo "face-saving". Nos termos desse "deal", a "Missão OSCE em Minsk", que tinha um mandato próprio, aprovado anos antes do Conselho Permanente da OSCE, encerraria formalmente, como os bielorrussos desejavam, no fim do ano. Entretanto, Em contrapartida, propúnhamos a instalação de um "Escritório OSCE em Minsk", com um novo mandato, que tentaríamos negociar com Minsk e fazer aprovar pela OSCE até ao final do ano, para entrar em vigor no primeiro dia do ano seguinte.

Depois de alguma hesitação, a Bielorrússia "comprou" a nossa ideia e fez deslocar a Viena, por duas vezes, uma delegação chefiada por um representante pessoal de Alexander Lukashenko, com o qual discuti, durante horas intermináveis, por cerca de quatro dias, o texto do novo mandato, que seria depois vertido num "memorandum of understanding". Posso hoje revelar que os quatro países ocidentais, que, com a Rússia, eram vulgarmente referidos como os "major players" dentro da organização, "fizeram-nos a vida negra" até ao último instante, com exigências nas funções futuras do "Escritório" de que os bielorrussos nem queriam ouvir falar.

No termo de uma presidência que, por razões que não vêm aqui para o caso, já havia sido muito difícil, este trabalho de "go-betweener" revelou-se de extrema complexidade e o ter-se conseguido um resultado positivo muito se ficou a dever ao meu colega Carlos Pais que, com uma "paciência de santo", me ajudou a inventar fórmulas de texto imaginativas que combinassem um mínimo de eficácia operacional futura do Escritório, com uma "ambiguidade criativa" que conseguisse fazer a ponte. E tivemos sucesso: a "Missão" encerrou em 31.12.02 e o "Escritório" iniciou a sua existência em 1.1.03.

A prova provada da eficácia do Escritório seria dada, oito anos mais tarde, pela própria Bielorrússia, que decidiu impor a data de 31.12.10 como data limite para a atividade daquela presença da OSCE, obrigando então, e definitivamente, à saída da OSCE de Minsk, ao que parece descontente com o facto da organização ter denunciado, por intermédio daquele Escritório, mais uma vaga das tradicionais irregularidades eleitorais praticadas pelo governo de Lukashenko. A prazo, veio assim a constatara-se que o mandato que Portugal desenhou foi mesmo incomodamente eficaz.

8 comentários:

Anónimo disse...

Pois é... Bielorrúsia, Cuba, Rússia, Coreia do Norte, China, Venezuela...
É que nos EUA e no Brasil e no RU e, calculo, na Hungria e Polónia, quando o povo quiser, os líderes sáo mandados embora mas... nestas "democracias de Esquerda", isso não acontece.

Consequentemente, devotamos toda a nossa atenção a combater os maus líderes democráticos "de direita", enquanto esquecemos os ditadores de Esquerda. Faz todo o sentido. E ainda há quem diga que a comunicação social não está dominada pela Esquerda.

Luís Lavoura disse...

A Bielorrússia é um estado encravado entre a Rússia, a Ucrânia, a Polónia, a Letónia e a Lituânia

Uma escolha capciosa de termos. A Bielorrússia não é um "estado encravado", ela é um país que se situa entre outros.

Jaime Santos disse...

A Rússia e a Bielorrússia, ditaduras de Esquerda? Por favor, não me façam rir. Basta ver a ascendência da Igreja Ortodoxa, ou o poder dos oligarcas domados por Putin (com Yeltsin estavam em roda livre), para se perceber que de Ditadura de Esquerda a Rússia não tem nada.

Custa a crer como o PCP parece que acredita nisso. Aliás, a mesma coisa em relação ao capitalismo selvagem da China. Mas como o Partido do Poder tem o nome de comunista...

E quanto à Hungria, bom, o povo vai ter que correr muito para pôr Orbán na rua, porque ele com 40 e tal por cento consegue sistematicamente maiorias constitucionais. E isto enquanto os seus amigos dominam a comunicação social. Com batotas destas, quem precisa das chapeladas de Lukashenko?

Na Polónia, a conversa é mais ou menos a mesma...

Sabe, caro anónimo do costume, o problema com estes Estados é que eles providenciam um padrão para a tomada de poder pela Direita à socapa. O Chega deve ser um fã, já que advoga um neo-sidonismo musculado...

E quanto à liberdade de expressão cara a Ventura, bastou levar uma abada do Quaresma para o querer logo calar. Um governo de Direita é uma hipocrisia organizada...

E quem diz que a comunicação social não liga ao que se passa na Nicarágua (uma ditadura obscurantista que já foi de Esquerda), na Venezuela (um Estado que era corrupto antes de Chavéz e que agora é corrupto mas também falido) ou na China? Tem-se ouvido muito falar de Hong Kong ou até da repressão do povo uigur.

O anónimo é que anda distraído porque lhe convém, para depois lançar estas provocações a fazer de conta que é mais ignorante do que o que é...

dor em baixa disse...

A Bielorrússia a centralizar as negociações sobre os conflitos entre a Arménia e o Azerbaijão?! Idem para o problema da Ucrânia?! Então a Alemanha e a França estão a dormir na forma.

Anónimo disse...

O anónimo Jaime Santos, para além da estafada historieta do anonimato (continuamos sem saber quem ele é, provavelmente por cobardia), não tem muito mais para nos dar. É um fastio aturar esta gente que se deleita, não com o debate de ideias mas com quem as tem. Pobreza de espírito.

Anónimo disse...

Carlos Pais além de ser pelas suas qualidades humanas e pela sua modéstia, um competente diplomata que como,funcionário da OSCE deixou um bom nome de Portugal. Como Secretário Geral do MNE fiz tudo o que pude para o promover, mas esbarrei com um muro de indiferença.
Quanto ao anónimo das 9:17 de ontem está um bocado baralhado. Mas é de prezar a frontalidsde com esconde o seu nome e critica quem o põe
O que aqui assino é mesmo o meu
Fernando Neves

Anónimo disse...

Por cá, achei interessante a reflexão neste artigo:

“A segunda maior rede de TGV do mundo, depois da China, está na Espanha, mas transporta apenas 4,8% de todos os passageiros ferroviários daquele país.
Com exceção da China, em nenhum lugar do mundo a rede ferroviária de alta velocidade é mais extensa do que na Espanha. Mas, de acordo com o regulador tributário espanhol AIReF (Autoridad Independiente de Responsabilidad Fiscal), há pouca razão para se alegrar...”
https://fr.businessam.be/apres-la-chine-le-2e-reseau-tgv-le-plus-etendu-au-monde-se-situe-dans-lue-mais-il-transporte-tres-peu-de-personnes/

Anónimo disse...

Sinto a falta do Freitas nos comentários a este artigo. É preciso alguém que nos explique que este dinossauro herdeiro da escola soviética e apoiado pelo camarada Putin, na realidade, é um combatente da liberdade que se recusa a aceitar a trumpização do mundo. Aposto que meia dúzia de referências ao racismo nos EUA, ao desemprego nos EUA e à política externa dos EUA fariam toda a gente encarar este ditadorzeco como um verdadeiro homem de bem!

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