quarta-feira, maio 04, 2011

Ser primeiro-ministro

Jean-Louis Debré, presidente do Conselho Constitucional, é filho do antigo primeiro-ministro de De Gaulle, Michel Debré.

Ontem, numa entrevista na televisão, contou uma história curiosa, passada na sua adolescência. 

Um dia, ao chegar a casa (curiosamente, bem próxima da nossa embaixada aqui em Paris), encontrou-a cheia de flores, com caixas de chocolates abertas e amigos com garrafas de champanhe, num ambiente bem festivo. A sua mãe explicou-lhe, então, a razão de tudo isso:

- O teu pai acaba de ser nomeado primeiro-ministro!

Alguns anos passaram. Uma certa tarde, chegado de novo a casa, deparou-se com um ambiente de euforia: chegavam ramos de flores, abriam-se garrafas e reinava um estado de grande alegria na família. O que é que se passa?, perguntou:

- O teu pai acaba de deixar o lugar de primeiro-ministro!

China

O meu colega luxemburguês, Georges Santer, um diplomata com grande experiência da China, apresentou hoje um trabalho, num determinado contexto, do qual achei curioso citar dois elucidativos extratos:

"Os que acreditam que a China acaba de instalar o seu poderio na cena internacional não apreenderam realmente o fenómeno que o planeta vive no atual momento. A China não emerge, a China retoma o seu lugar como primeira nação da Terra. Eis o que faz vibrar a alma de todo o chinês".

"Para a China, os Estados Unidos são o único país que ela respeita verdadeiramente: um país capaz de dar sequência aos seus anúncios de atos concretos, bastante fácil de apreender do ponto de vista cultural face à diversidade extrema das culturas europeias e face a países cujos cujas posições conduzem à frequente emergência de situações de conflitualidade".

Interessante! 

terça-feira, maio 03, 2011

Memória

Há dias, o "Público" deu forte destaque, em primeira página, à morte de Vitorino Magalhães Godinho. Tratando-se de uma figura cimeira da historiografia e da nossa vida cívica (demitido da função pública pela ditadura, ministro da democracia) nada era mais justo. Porém, a notícia era ilustrada com uma fotografia... do irmão do historiador, o advogado José Magalhães Godinho.

No dia seguinte, o jornal não retificou o seu erro, Só o veio a fazer posteriormente. O que leva a presumir que aqueles - apesar de tudo, deverá ter havido alguns - que deram conta desse erro crasso já nem se terão dado ao cuidado de alertar o jornal. Ou -  pior ainda! -, se o fizeram, o jornal manteve-se indiferente na sua edição imediata, o que também é grave.

Os jornais são, cada vez mais, importantes arquivos da nossa memória coletiva, agora ajudados pelas suas versões "on line". Pensar-se que é normal que os seus redatores, só porque pertencem a gerações mais novas, não estão obrigados ao extremo rigor histórico-cultural é entrar num inaceitável caminho de facilitismo. Se aqui, em França, o "Le Figaro" ou o "Libération" trouxessem uma imagem de Simone Signoret em lugar de Simone de Beauvoir, ou de Simone Weil em lugar de Simone Veil, garanto que caía  "o Carmo e a Trindade"!

Pois há dias, um jornal português, que me passou pelas mãos, trazia fotografias ilustrativas do período do "marcelismo". Numa delas via-se Américo Tomaz rodeado de representantes de "forças vivas" de qualquer localidade de província. A legenda era: "Marcelo Caetano com alguns dos seus ministros"...

Este é - felizmente! - um défice que escapa à "troika".

Esforços

O humor de oportunidade é uma conhecida caraterística dos portugueses.

Hoje, numa parede junto ao Liceu Francês, em Lisboa, lá estava escrito, em grandes letras: "Agora é hora de se fazer esforços e, por isso, há que treinar".

Era propaganda a um ginásio...

Depois de Bin Laden

Ontem, durante o noticiário das 19.00 da SIC Notícias, conversei com Teresa Dimas sobre o caso do dia: a morte de Bin Laden. Limitei-me a dizer algumas coisas óbvias, nesta fase em que apenas nos é possível avançar suposições.

Devo dizer, que ao ver as peças que antecederam a entrevista, senti alguma incomodidade com as imagens de celebrações alegres em torno daquela morte. Bin Laden era um criminoso, autor moral de milhares de mortes. Os mesmos valores que me levam a apoiar empenhadamente a luta anti-terrorista obrigam-me a não poder comungar um júbilo público por uma morte. Mas, porque não vi muita gente preocupada com isso, deduzo que devo ser eu quem está equivocado.

A saída de cena de Bin Laden, sendo uma notícia que pode prenunciar tempos de esperança na atenuação das tensões no Médio Oriente e Ásia Central, não pode deixar lida em conjugação com a instabilidade em todo o mundo árabe, tornando a equação geral com um resultado de muito difícil antecipação, em especial para atores que se atribuem responsabilidades à escala global, como é o caso dos Estados Unidos. 

Talvez por esse motivo se compreenda melhor a frase que João Vale de Almeida ontem nos dizia ter ouvido a Brent Scowcroft, o antigo "National Security Advisor" de administrações republicanas, procurando caraterizar o delima americano, em face do estado geral do mundo árabe: "Sentimo-nos como um malabarista que, ao mesmo tempo que procura circular e manter no ar as bolas que manipula, tem a necessidade de ir preparando um "souflé" ". Ou, lido por outros modos: alguma coisa pode falhar.

Em tempo: sobre este tema, publiquei hoje no "Diário de Notícias" um curto artigo.

Diálogo transatlântico

Não faço ideia se nos Estados Unidos as pessoas se preocupam tanto com a relação transatlântica como nós, europeus, o fazemos. Mas, francamente, não me parece mal. A capacidade da Europa para fazer passar e executar, com eficácia, a sua agenda política depende, em muito, do modo como conseguir articular-se com o seu parceiro do outro lado do Atlântico - com o qual partilha muitos princípios comuns, embora dele pontualmente divirja. Mas continuo convicto que, entre a Europa e os EUA, e para utilizar uma terminologia maoísta, só haverá "contradições não antagónicas".

Ontem, em Lisboa, durante várias horas, numa excelente iniciativa do Observatório de Imprensa, em articulação com o gabinete da Comissão Europeia em Portugal, dirigido por Margarida Marques, o embaixador europeu em Washington, João Vale de Almeida, e eu próprio lançámos um debate com jornalistas portugueses especializados em temas económicos (com a curiosa presença de um membro da delegação do FMI, incluído na "troika" que negoceia com o governo português o programa de ajuda financeira). O convite foi-nos formulado por Joaquim Vieira e Teresa Moutinho, tendo Nicolau Santos e Helena Garrido como condutores da discussão.

O "menu" tinha por título: "Relações Europa-América: veja as diferenças". Três tópicos essenciais serviam de base às nossas intervenções, bem como ao período de questões que se lhes seguiu:
  • Reação da UE e dos EUA à crise financeira e económica. As diferentes formas de abordagem do problema e a posição do euro perante a disputa cambial sino-americana.
  • Relações com os países emergentes. Prioridades das políticas externas de Bruxelas e de Washington.
  • Perspetivas sobre as mudanças no Mediterrâneo sul. Como enfrentar as revoltas árabes e qual o papel da NATO em caso de intervenção. A relação entre os dois lados do Atlântico continua firme ou é hoje menos sólida?
Foi muito interessante ouvir a visão privilegiada do chefe da missão europeia em Washington, decantando analiticamente, com grande lucidez, a forma como a América nos "lê" e revelando o modo como a diversidade/unidade europeia é oficialmente explicada do outro lado do Atlântico.

Pela minha parte, entre algumas outras coisas que por ali disse, procurei "trabalhar" o estado atual da União, quer no tocante à sua relação com o mundo, quer na tentativa de nela desconstruir a diferente proeminência dos 27 no processo comum de ação externa.

Mas de muito mais se falou naquelas mais de três horas, desde a Líbia à Rússia, das agências de "rating" à reforma do Conselho de Segurança, da posição do Brasil à atitude alemã. O euro, o dólar e a crise, bem como os números do mundo, foram estudados e debatidos. E falou-se da França, evidentemente. Porque a notícia era "fresca", as perspetivas abertas pela desaparição de Bin Laden foram também especuladas.

Tive um grande gosto em colaborar, uma vez mais, com o Observatório de Imprensa. Recordei que, a primeira vez que o fiz havia sido já em 1994, num debate sobre a Europa, lado a lado com Paulo Portas. Como o tempo passa...

domingo, maio 01, 2011

Condecorações


As condecorações têm uma importância muito diferenciada em cada país. Em França, os cidadãos têm por regra usar, no seu dia-a-dia, as condecorações de que são detentores. Se se olhar para a botoeira dos casacos dos homens, e também de certos vestuários femininos, notar-se-ão os pequenos símbolos redondos (com ou sem uma pequena tira por detrás, que revelam graus mais elevado) ou uma espécie de ligeiras bordaduras alongadas da mesma cor. 

Regularmente, a imprensa francesa dá nota pública da atribuição desses títulos de nobreza republicana, os quais, por regra, devem significar vidas ou atos feitos ao serviço da comunidade. Às vezes, algumas escolhas são um tanto mais polémicas, mas a relevância do cidadão é aqui claramente acrescescida com a exibição dessas distinções. Como me dizia um meu antecessor, para um francês, sair à rua sem a condecoração que lhe foi atribuída, é quase como "sair nu".

A "Légion d'Honneur", de cor vermelha, é a mais prestigiada das condecorações francesas, mas a "Ordre du Mérite" é também aqui muito importante, em especial nos seus graus mais elevados. Como ironia - mas com verdade -, costuma-se dizer que uma boa condecoração francesa "arranja mesas" em restaurantes cheios. Posso testemunhar que assim é, de facto. A consideração automática que suscita em muito locais é evidente.

Os diplomatas, um pouco por todo o mundo, têm, por vezes, acesso mais fácil a condecorações estrangeiras. Seja porque estiveram no serviço do Protocolo, seja porque as obtiveram pelos "pacotes" de trocas de condecorações que se trocam em visitas de Estado, acontece-nos, com frequência, sermos detentores, sem qualquer esforço especial, de insígnias que um nacional do país que as atribui passa uma vida a ambicionar. No meu caso pessoal, tenho algumas condecorações estrangeiras por motivos exclusivamente "ex officio", nalguns casos sem que nenhuma razão especial o justificasse. Digo-o com total sinceridade, embora não deixe de ficar grato pelo gesto da sua atribuição.

Com os portugueses, passa-se, em França, uma circunstância curiosa. A "Légion d'honneur" francesa é, na sua insígnia para uso quotidiano, exatamente idêntica à Ordem de Cristo portuguesa, que é a mais prestigiosa condecoração que, entre nós, um civil pode ambicionar obter. Existe, por isso, uma lei francesa, do século XIX, que proíbe o uso público, em França, da nossa Ordem de Cristo (e de uma condecoração idêntica da Santa Sé), para evitar confusões com a sua mais prestigiosa ordem.
Muitos diplomatas têm histórias ligadas a condecorações, tema que faz parte de abundante anedotário da nossa carreira. Um dia, na Noruega, como encarregado de negócios na ausência do meu embaixador, tive o ensejo de ser apresentado, com o meu colega espanhol, ao rei Olavo V, durante uma cerimónia de gala no palácio real. O soberano, que era um homem de uma grande bonomia e simpatia, quis colocar-nos à vontade e, numa inesperada cumplicidade, disse-nos: "Não olhem agora, mas vão notar que, atrás de vocês, está um embaixador - que não sei de que país é - cheio de condecorações, dependuradas na sua casaca. Devem imaginar que eu, como rei, já recebi imensas. Tenho a sensação de que, se decidisse usá-las todas no mesmo dia, caía ao chão..."

Conta-se que Salazar dizia que "as condecorações não se pedem, não se recusam e não se usam"*. Contudo, há, pelo menos, uma fotografia em que ele é visto usar condecorações. Uma única certeza tenho: não era a Ordem da Liberdade, que nem a título póstumo alguma vez terá. Espero bem!

* Pessoa amiga chamou a minha atenção para o facto dessa citação ser atribuída a François Mauriac, a propósito da "Légion d'Honneur". Terá Salazar citado o escritor? Ou o contrário?

Feira do livro

Era assim a Feira do Livro de Lisboa, precisamente há 50 anos. Em contraste, hoje à tarde, notei ser das poucas pessoas com gravata, entre as muitas que passeavam pelo parque - cujo nome, seguramente, ninguém ligou ao recém-casado príncipe britânico, de quem Eduardo VII era trisavô.

Já não "apanhava" uma feira em Lisboa há alguns anos (problema de quem vive, há uma década, no estrangeiro). Fez-me bem passar por lá, perceber os novos públicos e o ambiente que hoje rodeia os livros, em tempo de "iPad's" e de outros "gadgets" alternativos de écran.

Ao olhar para os stands, dei-me conta de que, durante muitos anos, e relativamente a certos temas, tinha a sensação de que ia adquirindo tudo o que sobre eles se editava em Portugal. Hoje, tenho que ser realista: não há bolsa, nem estante, nem horas livres que aguentem a imensidão do que se publica -estudos cada vez mais pormenorizados e aprofundados. O mundo da investigação (e, por essa via, da edição) mudou e mudou para bem melhor. Além de que os livros estão cada vez mais bonitos.

Com este post, também satisfaço o pedido daquela senhora anónima que, numa banca de livros, depois de olhar para mim com alguma insistência, me lançou: "Não se esqueça de falar da feira, hoje, lá no seu blogue". Não prometi nada, mas aqui estou a "obedecer". Com gosto.

sábado, abril 30, 2011

O recoveiro

"Podias fazer de recoveiro e trazer-me isso de Paris", pediu-me, há pouco, um amigo que sabe que vou hoje a Lisboa.

Só alguém com uma certa idade, e "da província", se lembraria do conceito de "recoveiro", uma figura da minha infância que se deslocava de terra em terra, normalmente de comboio, e que, na sua mala, trazia e levava "coisas", por um módico custo, num tempo em que o transporte de objetos pelo correio não ainda era muito vulgar. 

O meu pai contava-me que era o recoveiro quem trazia, "do Porto", no final dos anos 40, a então muito rara penicilina, que permitiu "safar-me" de uma doença grave, que me ia levando desta para melhor. Desde então, tenho uma gratidão eterna para com os desaparecidos recoveiros.

Por isso, hoje, farei, com gosto, o papel de recoveiro aéreo para esse meu amigo.

Vinho inglês

A propósito do bioetanol ecológico que servia de carburante ao belo Aston Martin que o príncipe britânico ontem conduzia, à saída de Buckingham, o "Libération" esclarece que o mesmo é feito à base de vinho inglês. Para logo acrescentar: "si, ça existe..."

sexta-feira, abril 29, 2011

Os cheiros da Europa

Um amigo português, inteligentemente sensível às coisas da vida, perguntava-me, há dias, numa rua de Paris, "o que era feito" daquela diferença de cheiros que, por muitos anos, nos identificava cada grande cidade europeia e lhe atribuía uma certa especificidade. Nesse momento, dei-me conta que já havia esquecido essa forte e impressiva realidade, que marcou bem quem viajava pelo continente, a partir dos anos 60 do século passado.

Hoje, prevalece por aí uma espécie de "franchising" de odores, feito de um ambiente de "mc'donaldismo" generalizado e do carbono dos motores, apenas compensado pelos aromas "standardizados" da (falsa) desodorização dos lugares públicos e de alguns perfumes sociais mais sofisticados, que ao lado nos passam "ao sol poente" (O'Neill dixit). Até a restauração comum, salvo algumas exceções mais étnicas (o outro lado da imigração), parece exalar para o exterior o mesmo "template" de cheiros, misto de fritos e abafados fumos, numa perspetiva benévola.

Embora presuma que não haja ainda nenhuma "diretiva comunitária sobre aromas públicos" (haverá?), a verdade é que a aproximação dos estilos de vida e de consumo acabou por conduzir a uma quase uniformização neste domínio, a qual, podendo fazer com que possamos ser tentados a nos sentir "em casa", em qualquer parte desta Europa, acaba por diluir, em muito, a graça que sempre terá a nossa inapagável diversidade.

Irei perguntar ao amigo que me suscitou este tema qual era o aroma predominante na Abadia de Westminster, no dia de ontem. Ele que foi o único português com assento por lá.

David Lopes Ramos (1948-2011)

Morreu David Lopes Ramos. 

Fui instrutor militar do David em 1973, na Escola Prática de Administração Militar, em Lisboa. Dei-lhe então aulas de "Acção Psicológica" (isso mesmo!). Vimo-nos fugazmente nos corredores da Revolução. Cruzámos histórias divertidas desses tempos nas poucas vezes que nos voltámos a encontrar - lembro, em particular, uma longa conversa numa esplanada no Funchal, ainda nos anos 70, onde descobrimos que ele era dois dias mais velho que eu, e uma noitada em Lamego, no final dos anos 90, num debate jornalístico-político, sob um pretexto vinófilo. Nunca cheguei a responder a um convite que me formulou para escrever um certo texto para o "Público", durante o tempo em que eu estava no Brasil. 

David Lopes Ramos era, para mim - e para muita gente com uma opinião bem mais qualificada que a minha -, sem a menor sombra de dúvida, o maior crítico gastronómico português.

Tradução automática

Leitor amigo chamou a minha atenção para algumas barbaridades a que a tradução automática dos textos deste blogue pode levar.

As vantagens de poder dar uma perceção do que aqui se escreve em inglês ou francês parecem, de facto, muito inferiores ao risco de ver ocorrer algumas distorções graves do conteúdo dos textos.

A tradução automática fica, assim, suspensa.

Quem dera que tudo na vida se pudesse corrigir de forma assim tão simples.

quinta-feira, abril 28, 2011

Marcos de Azambuja

O embaixador Marcos de Azambuja é um diplomata brasileiro de grande mérito e com uma graça pessoal infinita. Representou o Brasil em postos tão importantes para o seu país como a Argentina, a França ou junto das instituições internacionais, em Genebra. Conhecemo-nos, pela primeira vez, aqui em Paris, já há muitos anos e, pela última vez, coincidimos lado a lado, num voo da ponte "Rio-S.Paulo", creio que em 2008. Nunca terminámos uma conversa então iniciada.

Ontem chegaram-me, por mão brasileira amiga, os artigos que publicou em dois números da "Piauí" (uma revista que vivamento recomendo, a quem quer conhecer o melhor do Brasil). Os textos não são curtos (raramente são, na "Piauí"), mas trata-se de um impressivo mosaico de memórias, um olhar irónico sobre a vida diplomática, que muito bem se liga com o espírito deste blogue.

Leiam essas "Memórias pouco diplomáticas", com prometido gozo, aqui e aqui

Cortiça

A vinha de Montmartre é uma conhecida curiosidade agrícola no centro de Paris, de onde anualmente sai um vinho tinto que já faz parte da história da cidade. Nela foi plantado, no mês de Outubro, um sobreiro alentejano, como que a simbolizar o velho "casamento" entre o vinho e a cortiça.

Esta manhã, o "maire" local, o antigo ministro Daniel Vaillant, e eu próprio descerrámos um placa comemorativa desta implantação, ocasião que serviu para lembrar a importância da França como o mais importante destino comercial das rolhas de cortiça portuguesa.

Correndo embora o risco de desencadear algumas reações adversas por parte dos cultores da rolha de plástico, disse, na minha curta intervenção, que, no fundo, estávamos ali a celebrar o longo "casamento" da cortiça com o vinho, uma vida em comum que não prenuncia qualquer separação, não obstante a tentação recente do vinho por produtos mais novos...

Em tempo: devo declarar, para os efeitos patrimoniais devidos, que fui brindado com uma das 1500 garrafas que, no ano passado, a vinha de Montmarte produziu.

Morte

Hoje, mais uma vez, a A10 provou ser a estrada que tanto serve para conduzir os portugueses à alegria do encontro com as suas famílias como pode servir de cenário onde, nas últimas décadas, a vida de muitos terminou abruptamente. Seis cidadãos de origem portuguesa, bem como um francês, morreram esta noite, perto de Bordéus, num terrível acidente rodoviário. Que se pode dizer mais?

Em tempo: sobre o assunto, publiquei, em 29.4.1, no "Correio da Manhã". um artigo.

quarta-feira, abril 27, 2011

Marcel Gauchet

Uma "habituée" das sessões do centro cultural Gulbenkian, aqui em Paris, interveio para dizer que se tratara da mais interessante conferência-debate a que por ali assistira. Não sei se estava certa, mas a verdade é que quem ontem, ao final da tarde, ouviu Marcel Gauchet falar das "Metamorfoses da democracia" não perdeu o seu tempo.

O filósofo fez um curioso bosquejo da evolução da prática democrática, concordando com quantos colocam a nossa Revolução de abril na abertura da terceira vaga de libertação, que haveria de descer à América Latina, para retornar à Europa da centro e leste. Repetindo que "os homens fazem a História, mas não sabem a História que fazem", Gauchet singularizou o mítico "homem novo" como a tentativa de criar um ator que sabia a História que protagonizava. Nos debates, falou-se, entre outras coisas, da vitória do individualismo, com a "autodestruição doce" do poder coletivo. E a questão da legitimodade, em torno dos modelos de representação política, com as suas contradições e deceções, foi também abordada.

Saí da conferência "como uma seta": tinha à espera o Real-Barça... A filosofia era outra.

Ideias

A propósito de algumas patetices que, nos tempos que correm, aparecem por aí como soluções miraculosas no plano internacional, Laurent Fabius, antigo primeiro-ministro francês, com quem hoje estive num almoço, relembrava uma frase de François Mitterrand: "Il ne faut pas prendre toutes les mouches qui volent pour des idées" ("não devemos confundir todas as moscas que voam com ideias").

É bem verdade.

Hortaliças

Ontem, surgiu na televisão o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Roland Dumas, a propósito de um livro de memórias que acaba de lançar. 

Nesse instante, veio-me à ideia um episódio que teve lugar nos nossos primeiros tempos nas instituições europeias, numa reunião que decorria sob a sua responsabilidade, durante uma presidência semestral francesa.

O debate prolongara-se já muito pela noite dentro, nessas horas que a Europa guarda para as grandes decisões. A temática eram concessões em matéria de produtos agrícolas, incluídas num acordo com países terceiros, menos desenvolvidos. Tratava-se de matéria de grande sensibilidade, porque o peso do lóbi agrícola em vários Estados condiciona muito a liberdade dos governos para poderem fazer gestos de sentido político. Ao mesmo tempo, porém, esse era, como sempre é, o setor onde a abertura de facilidades por parte da Europa se revela mais interessante para esses países. O que estava em causa, naquele caso particular, era aquilo que em Portugal se designa por "produtos hortícolas".

A Espanha era, do lado europeu, o país com maiores dificuldades para aceitar o acordo, nos termos em que este era proposto pela Comissão Europeia. Com eleições dois dias imediatamente após essa reunião, o governo de Madrid entendia que permitir aberturas no seu mercado com impacto na economia agrícola do país poderia ser aproveitado pela oposição para acusar de fragilidade a sua nóvel política europeia. O representante espanhol na reunião, o embaixador Carlos Westendorp, estava "de mão atadas". Por um lado, toda a então CEE já tinha dado luz verde ao pacote de concessões, o que se traduzia numa grande pressão sobre a sua delegação. Esta, por seu turno, embora revelasse uma vontade para se juntar ao consenso, sentia que fazê-lo naquele momento poderia configurar um suicídio político.

Roland Dumas utilizou toda a sua habilidade de advogado para colocar os espanhóis face à responsabilidade política de serem eles a boicotar a decisão europeia, tanto mais que esta era aguardada com ansiedade pelos países contrapartes. Destacou que esta singularização negativa ia refletir-se, com toda a evidência, no modo como Madrid passaria a ser visto pelos Estados potenciais beneficiários das concessões.

Lembro-me que Portugal acompanhou a Espanha tão longe quanto foi possível. Mas, a certo ponto, o facto da Comissão Europeia ter acedido a colocar de fora da lista de concessões alguns produtos que, para nós, eram os mais sensíveis, bem como a importância política do acordo para o nosso quadro de relações externas, deixou-nos sem argumentos para continuarmos a nos opor ao entendimento.

A Espanha estava, assim, completamente isolada. Roland Dumas apelou a uma derradeira flexibilidade política dos espanhóis, dando a palavra a Westendorp. Este ensaiou um discurso dramático, perante o silêncio pesado e tenso que envolvia toda a sala. As 12 delegações nacionais (viviam-se então os tempos da Europa "a doze"), a Comissão Europeia e o secretariado-geral do Conselho bebiam as palavras do representante de Madrid, esperando uma cedência no último minuto, o que permitiria a todos regressarem ao descanso nos seus hotéis.

Como mandam as regras dos Conselhos de Ministros europeus, Westendorp falou em espanhol, com a delegação portuguesa a não necessitar, naturalmente, de tradução. Não mostrou qualquer flexibilidade. Pelo contrário, fez uma chamada à compreensão de todos pela difícil posição em que se encontrava.

A certo passo desse discurso, disse: "Ustedes deben entender que en España la cuestión de las hortalizas es una cuestión de Estado". A pausa que Westendorp fez suceder a esta frase, aguardando o impacto da interpretação simultânea que ia chegar aos ouvidos das restantes delegações, foi subitamente interrompida por risos surdos, oriundos da nossa delegação, assim como da meia dúzia de técnicos portugueses que faziam parte das delegações da Comissão e do secretariado.  

Para nós, portugueses, ouvir a expressão "hortalizas" (que é palavra espanhola para designar "produtos hortícolas") ligada ao conceito de "questão de Estado" havia desencadeado uma imparável e embaraçante epidemia de risadas, que se ia agravando à medida que olhávamos uns para os outros. Essa atitude, que soou pela sala como uma nota de desprezo pelo problema espanhol, tornava-se tanto mais grave quanto era muito difícil de explicar - desde logo aos espanhóis, que nos miravam com um fácies furioso, mas igualmente às outras nacionalidades, que tinham recebido com naturalidade a tradução de "produtos hortícolas". Ficámos, assim, sob um perplexo olhar coletivo, tentando, de modo esforçado, atenuar o nosso contágio de risadas. 

Já não me lembro como aquilo tudo acabou, apenas sei que nunca mais esqueci aquela madrugada europeia de risota lusa. Porque há leitores regulares deste blogue que estavam nessa nossa delegação, deixo-lhes a tarefa de confirmarem ou infirmarem os pormenores desta minha recordação. Talvez o (então) jovem chefe da delegação portuguesa, que ora circula pelos mais altos corredores de Bruxelas, tenha entretanto sido confrontado por alguém com as razões por que comandou esse pelotão imparável de riso, já lá vai quase um quarto de século.

terça-feira, abril 26, 2011

Politicamente correto

Ao rever o Tim Tim no Tibete (onde está um texto muito interessante sobre o 26 de abril), descobri esta imagem do "Almoço do trolha", um quadro que Júlio Pomar pintou, um ano antes de eu nascer, e onde está quase tudo o que o neo-realismo (eufemismo luso para realismo socialista) quereria significar. Recordo ter visto o quadro na exposição retrospetiva de Pomar, na presença do autor, na Pinacoteca de S. Paulo, em 2008.

A pintura de Júlio Pomar - ele que é, a meu ver, o maior pintor português vivo, e que agora "transita" entre Portugal e a França - segue hoje por outras vias. Imagino, porém, o que seria se ele decidisse dar, nos dias que correm, esse nome a um quadro. Com toda a certeza, logo surgiria um comunicado dizendo que chamar "trolha" a alguém representava uma inaceitável desqualificação profissional. Quando, na realidade, esse é talvez o maior elogio que a arte portuguesa fez àquela profissão.

Enfim, histórias do politicamente correto.

Adeus, "Expresso"!

O "Expresso" considera que declarações "mesmo que feridas de ilegalidade" têm "um fundo de justiça". Estava à ...