A derrota de Nicolas Sarkozy, nas eleições primárias da direita francesa, ontem realizadas, terão significado o fim da sua carreira política? A forma como se despediu dos seus adeptos não deixa isso totalmente claro.
No fundo, isso não tem a mais pequena importância: em 6 de maio de 2012, depois de ter sido rejeitado nas presidenciais francesas, em favor de François Hollande, tenho bem presente a frase que proferiu na Mutualité, perante os seus apoiantes: "Je ne ferai plus jamais de la politique!". Depois, foi o que se viu: aproveitou a conflitualidade entre Fillon e Copé, tomou conta do partido, mudou-lhe o nome e aí surgiu ele, de novo, a tentar o "remake". Voltará? Sabe-se lá!
Pertencemos a um país onde um dirigente desportivo dizia que "o que é hoje verdade, pode não sê-lo amanhã", onde um político regressou às lides horas depois de considerar "irrevogável" a sua demissão. E isso era num tempo em que ainda era desconhecido o "trumpiano" conceito de "pós-verdade", que veio consagrar teoricamente as cambalhotas com as palavras e essa coisa despicienda que são os factos.
Estive várias vezes com Sarkozy, em reuniões privadas e públicas. Do que se passou nas primeiras serei para sempre obrigado, por dever profissional, a guardar algum recato. Mas, nesta nota, gostava de falar sobre o momento público em que, no Palácio do Eliseu, fiz, com outros embaixadores, a apresentação das minhas cartas credenciais, como novo representante diplomático português em França.
A apresentação de credenciais por um embaixador, junto de um chefe de Estado estrangeiro, é um ato protocolar que difere bastante de país para país, dependendo dos usos e costumes locais. Em frequentes casos, o próprios chefes de Estado introduzem alterações às práticas nacionais, de acordo com os seus humores e com a sua personalidade.
Foi o que sucedeu com Nicolas Sarkozy, quando assumiu funções como presidente francês. Sendo Paris uma das capitais do mundo com maior número de embaixadas, e tendo alguns países a propensão para não deixarem os seus embaixadores "aquecer o lugar", o ritmo de apresentação de credenciais ao chefe de Estado acaba por ser muito intenso.
Ao que me dizem, o presidente Jacques Chirac, que antecedeu Sarkozy, não obstante o peso desse formalismo, fazia questão de falar uns minutos com cada novo embaixador, deixando perguntas ou comentários que tocavam as relações bilaterais. François Hollande, ao que julgo, terá retomado o mesmo método. É um pouco assim, aliás, que as coisas se passam entre nós.
Nicolas Sarkozy, optou, desde o início, por um fórmula mais "leve", menos simpática para os novos embaixadores, mas bastante expedita. Foi a que me coube em sorte, em 2009.
Cerca de uma vintena de novos embaixadores foi colocada, lado-a-lado, numa grande sala do Palácio do Eliseu, numa certa manhã. O presidente entrou, acompanhado do secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do seu conselheiro diplomático, deu os bons-dias a todos em voz alta e, sem mais perda de tempo, dirigiu-se ao primeiro dos embaixadores, alinhados pela ordem da respetiva data de chegada a França.
Fiel às práticas que a profissão ensina, esse primeiro diplomata, tentou dizer a frase clássica: "M. le Président, j'ai l'honneur de vous présenter les lettres de créance qui me (...)". E preparava-se para transmitir-lhe os cumprimentos do seu chefe de Estado e, talvez, a honra que ele próprio sentia pelo privilégio de poder servir o seu país junto da França e coisas assim!
Era não conhecer Sarkozy! Não deixou sequer o homem acabar a primeira frase e quase que lhe arrancou da mão as cartas credenciais, que logo passou para trás, ao secretário-geral, avançando para o embaixador seguinte.
Tratava-se do meu colega de Marrocos, país com o qual a França tem relações fortíssimas e complexas. Com naturalidade, ele tentou passar uma mensagem de "Sa Majesté le Roi". Pois isso! Sarkozy cortou a conversa, nem dez segundos era decorridos (o homem, um velho amigo meu, ficou lívido e furioso).
E chegou a minha vez. Simplifiquei ao máximo a mensagem: "Mes respects, M. le President. Je suis le nouvel ambassadeur du Portugal" e passei-lhe as "cartas", assinadas por Aníbal Cavaco Silva. Sarkozy olhou-me por um segundo e disse: "Soyez le bienvenu, M. l'Ambassadeur!", e passou à frente.
A próximo chefe de missão era uma senhora africana. Sarkozy, que acelerava o processo, saudou-a num segundo e avançou. Notei alguma agitação física na embaixadora, que me segredou: "Esqueci-me de entregar as cartas credenciais!" - e mostrou-me, angustiada, o envelope com a carta do seu chefe de Estado para Sarkozy, que lhe conferia o título de embaixadora em França. A cena fora tão rápida que o presidente nem notara que, além do cumprimento, não recebera o documento que oficializava a qualidade da embaixadora. Sosseguei-a: "Não se preocupe, dá isso depois a alguém...". E tudo se resolveu, acabada a cerimónia, com a discreta entrega do envelope ao chefe do protocolo, que sorriu, divertido, perante o relato do sucedido.
Entretanto, Sarkozy "aviara" já todo o grupo e com ares de alguma impaciência, convidou a colocarmo-nos frente a ele, em semi-círculo. Vi-o gesticular para que uns empregados, de casaco branco e botões dourados, expectantes ao longe, com tabuleiros com flutes de champagne, se aproximassem dos embaixadores. Quando verificou que todos estavam servidos, ergueu o seu copo, felicitou-nos pela nossa "entronização", nem sequer fingindo que bebia (Sarkozy não bebe álcool).
O presidente singularizou então no grupo o embaixador de um país que, na antevéspera, tinha sido atingido por um grave sismo ou inundação, e lembrou-lhe: "Espero que na sua capital tenham notado que a França foi o primeiro país a prestar-vos ajuda!". O homem, ultrapassando com garbo a deselegância, que se estendia aos outros Estados cujos embaixadores tinham acabado de apresentar credenciais e que não tinham sido tão lestos no gesto humanitário, balbuciou alguns agradecimentos.
Tinham passado menos de dez minutos desde o início da cerimónia. Visivelmente "morto" por lhe pôr termo, o presidente disse estar certo de que todos compreendiam que as suas responsabilidades o obrigavam a sair. Em jeito de compensação, explicou que ali deixava o secretário-geral do MNE e o seu conselheiro diplomático, com os quais poderíamos falar "do que vos interesse".
Disse "Rebonjour à tous!" e encaminhou-se para a saída da sala. Ao passar por mim, deu-me uma palmada no ombro e disse, de forma audível por todos: "Mes amitiés à Sócrates!". Os meus colegas ficaram visivelmente admirados ao ouvir aquilo. Quase tanto como eu. Nem tive tempo de assegurar a Sarkozy que não deixaria de transmitir a sua saudação ao então primeiro-ministro português - uma figura que, até ao último dia do respetivo mandato, manteve com o presidente francês uma forte empatia e uma relação de extrema cordialidade pessoal.