quinta-feira, novembro 17, 2016

Tropas


Já lá vão 43 anos. Mas não esqueço. Estávamos em Mafra, no primeiro ciclo do curso de oficiais milicianos. O 25 de abril seria um ano depois, mas então ninguém podia prevê-lo. A possibilidade de irmos parar "com os costados" à guerra colonial era muito elevada. 

O meu pelotão - trinta marmanjos - era uma mescla engraçada. Ia desde gente madura, casada, com filhos, curso superior e profissão interrompida, até uns miúdos quase imberbes. O ambiente induzia a algum infantilismo, brincadeiras, com muitos de nós a tentarmos, por via do humor, da ironia e de uma controlada indisciplina, não nos deixarmos tomar pelo formalismo daquele mundo pintado a fardas verdes e ordens irracionais. Um dia contarei um pouco da minha leitura dessa experiência, comum a muitas centenas de milhar de portugueses.

Para o que aqui hoje me interessa, anoto que, quase no final do curso, tinha lugar a chamada "semana de campo". Eram uns dias passados algures nos arredores de Mafra, para onde marchávamos longas horas, montando tendas para noites incomodíssimas. No dito acampamento, havia lugar a exercícios, um dos quais consistia num "ataque" noturno de surpresa ao nosso "bivaque", feito por soldados, com tiros de bala simulada, operação à qual nós deviámos reagir, montando um "dispositivo", em posições "defensivas", previamente definidas.

Eu e um pequeno grupo de colegas, politicamente mais motivados, pouco disponíveis para alinharmos num "script" de uma peça em que éramos relutantes atores, gizámos um plano para fazer abortar o "teatro" em que nos queriam como comparsas. Entre nós, combinámos levar todo o pelotão a não reagir, quando fosse "atacado", respondendo com gargalhadas, palmas e apartes, com pedidos de "bis", por ocasião da operação. Não foi fácil convencer alguns "chicalhões" (mais dados a levar a "tropa" a sério), bem como os temerosos (com o argumento de que a noite os protegeria) e outros tíbios, preocupados com as eventuais consequências disciplinares do ato. Mas a nossa "contra-operação" fez-se, com pleno êxito. E escândalo.

A reação da oficialagem do quadro foi a esperada: raiva, berros e um imenso furor. Porque nestas coisas há sempre uns "bufos", o meu nome e de um outro dos mais ativos promotores do "levantamento" chegou ao ouvido do comando da companhia. E, já tarde na noite, vieram buscar-nos a ambos às tendas. Durante mais de meia hora fomos interrogados, num ambiente pretendidamente intimidante, com focos de luz na cara e (não esqueço!) pistolas nas mãos de um tenente e de um alferes - cujas caras e nomes anotei para sempre. Queriam saber das motivações do ato, pretextaram "subversão", ameaçaram com desgraduação, processo disciplinar e coisas assim. Só faltou chamarem a Pide. Nenhum de nós fraquejou e, sob a raiva evidente dessas figuras, regressámos às tendas de madrugada. Nada aconteceu, mas até ao final do ciclo essas duas figuras olhavam-nos pela parada de Mafra com ar grave, ameaçador.

Um ano depois, veio o 25 de abril. Os dois interrogadores, sem surpresa, vieram a revelar-se zelosos seguidores da nova ordem. Um deles, o tenente, destacou-se a prender legionários, acabando na indústria automóvel. O outro, passeou-se com gravidade pela 5ª divisão nos idos do PREC e viu-se por aí. Por uma qualquer, mas bem concreta, razão, lembrei-me há pouco deste último. E mais não digo.

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