sexta-feira, setembro 03, 2010
Ainda o Iraque
quinta-feira, julho 15, 2010
Novas Fronteiras
sexta-feira, junho 18, 2010
A nova ordem europeia
(Este texto foi publicado no jornal "Público" em 19.6.10)
segunda-feira, março 29, 2010
Europa
Este artigo é tanto mais importante quanto se sabe que, no último Conselho Europeu, algumas das propostas da Comissão Europeia para a nova "estratégia" Europa 2020 sofreram grandes resistências, pelo seu caráter constrangente. Talvez assim se percebam melhor os obstáculos de percurso por que passou a Estratégia de Lisboa.
sábado, janeiro 09, 2010
Diplomacia e empresas
terça-feira, janeiro 05, 2010
Diplomacia e economia
terça-feira, dezembro 08, 2009
Brasil - um ano depois
Previsões (2)
segunda-feira, novembro 30, 2009
Olhar o futuro
quarta-feira, novembro 11, 2009
Arafat
Estávamos em Gaza, em 5 de Novembro de 1995, após um jantar oficial, regressados à "guest house" da Autoridade Palestiniana, numa inédita visita do Presidente da República portuguesa iniciada nessa tarde, que eu acompanhava em substituição de Jaime Gama. A simpatia por Portugal e o imenso respeito de Arafat por Mário Soares ficaram patentes em vários gestos, desde a nossa chegada. O líder palestiniano fazia questão de recordar a atitude corajosa e solidária de Soares quando, anos antes, este fora visitá-lo a Beirute, sob fogo, durante o cerco sofrido pelas forças da Al Fatah.
A comitiva portuguesa saíra de Jerusalém, nessa manhã, após uma visita oficial de três dias a Israel. A presença do presidente português ficara marcada pela contínua expressão da amizade e admiração de Itzhak Rabin e de Shimon Peres, que viam em Mário Soares, simultaneamente, um sólido amigo de Israel e um militante pela reconciliação no Médio Oriente, defensor dos direitos do povo palestiniano. Viviam-se os tempos de esperança posteriores aos Acordos de Oslo e Washington e, a avaliar pelas medidas de segurança excepcionais que rodeavam Rabin, que haviam obrigado a súbitas mudanças do programa, pressentiam-se os riscos que o primeiro-ministro israelita estaria a correr para forçar, de uma vez por todas, as portas da paz possível. Mas estávamos muito longe de pressentir a tragédia. Arafat despediu-se de nós, nessa noite, com uma sombra triste no olhar que não perderia na manhã seguinte, quando abreviámos a visita, para nos deslocarmos ao funeral de Rabin. Acto a que ele, contudo, não pôde assistir, como desejaria. Recordo as palavras trocadas por Soares com Arafat, no momento da nossa saída de Gaza. Do pesar que ambos sentiam pela desaparição de Rabin ressaltava a consciência mútua de que nada voltaria a ser igual no destino daquilo a que então se chamava o Processo de Paz do Médio Oriente.
Voltei a encontrar Arafat algumas outras vezes - em Barcelona, em Malta, em Bruxelas e em Nova Iorque. Sem excepção, perguntava-me sempre pelo seu "amigo Mário Soares" e teimava em relembrar, na sua voz cada vez mais trémula, aquela noite em Gaza, que lhe deve ter ficado na memória dos seus sonhos perdidos de uma Palestina livre.
Yasser Arafat cometeu, nos anos que se seguiram, uma imensidão de erros políticos, imerso numa conjuntura em que se deixou enredar, em que o radicalismo tomou conta dos acontecimentos, de um lado e do outro de uma barricada de ódio, hoje ironicamente simbolizada num muro real de incompreensão. O conflito israelo-palestiniano converteu-se, entretanto, numa imolação de inocentes, numa bola de neve de violência e de terror, com que já convivemos sem espanto, à vista do cinismo estratégico dos feiticeiros da realpolitik, da cobardia complacente de alguns e da fraternidade hipócrita de outros. O mundo tarda em perceber que, graças à aliança objectiva de messianismos contraditórios, alimentados pelo desespero e pelo fanatismo, se ateou a partir das margens do Jordão, à vista de todos, um incêndio imenso, que não pára de estender-se e que está, cada vez mais, longe de ser debelado, ardendo como o petróleo que lhe alimenta as raízes.
Em 5 de Novembro de 1995, morreu Itzhak Rabin. O ocaso de Yasser Arafat terá começado na mesma data, precisamente nove anos depois. Esta coincidência sela o destino trágico dos dois homens que mais perto estiveram de obter a paz para os seus povos."
Apetece-me perguntar: mudou, entretanto, alguma coisa?
segunda-feira, novembro 09, 2009
Muros
Há mais de três décadas, atravessei pela primeira vez o “checkpoint Charlie”, em Berlim, entre as duas Alemanhas. Fi-lo como interessado turista, naquela curiosidade de observador distante de uma Guerra Fria que apenas conhecia no preto-e-branco dos filmes e dos livros de espionagem. Tal como me iria acontecer em outros contactos com o “socialismo real”, a experiência deixou-me um sabor amargo e triste, como se consagrasse a despedida definitiva de uma ilusão residual – a mim, que nunca tinha cultivado nenhum fascínio pelo modelo que, para alguns, foi o “sol da terra”. Porém, pertencente a uma geração política de quantos, cada um à sua maneira, acreditaram na possibilidade dos “amanhãs” poderem vir a cantar, via-me forçado, pela força da realidade, a concluir que, no passado, o futuro era bem melhor…
Porque à época da queda do muro ainda alimentava algumas dúvidas sobre o que a Alemanha iria fazer com a sua nova unidade, não fiz parte daqueles que saudaram, com grande euforia, a festa de Berlim, embora percebesse bem a alegria dos que a partilhavam. Sei que hoje não é popular escrever isto, mas assumo-o sem o menor pejo, porque é pura verdade. Como é igualmente verdade que não verti nenhuma lágrima de nostalgia pelo fim daqueles regimes feitos de tristeza e de tom cinza que a tutela moscovita conservara como cómoda almofada entre si o Ocidente.
O fim da Guerra Fria, para quem, como eu, assume não ser, por natureza, um desbravador obsessivo das incógnitas do futuro, não me sossegava muito, principalmente porque sentia algum incómodo ao pensar que uns Estados Unidos “à solta” poderiam ser tentados a algumas aventuras, basicamente concentradas no egoísmo dos seus interesses, para as quais, de uma forma ou de outra, acabaríamos por ser arrastados.
Enganei-me numas coisas, acertei noutras.
Enganei-me no que pensava sobre os riscos que a Alemanha podia fazer correr à Europa. A unidade alemã foi extremamente positiva para o desenvolvimento do processo de reconciliação política do continente e (agora) Berlim constitui um dos factores em que assento a residual esperança de que o projecto integrador possa suplantar as tensões que hoje tendem a desagregá-lo.
Noutras coisas acertei. Deixada sem contrapoder, uma certa América fez-nos correr uma aventura cujo saldo está ainda hoje por apurar e que adubou, de forma trágica, alguns conflitos para que foi arrastada. A circunstância de uma “outra” América ter, entretanto, reaparecido, no mercado das forças políticas com expressão à escala global, pode ajudar-nos a tentar atenuar essas derivas, mas as hipóteses de retoma do curso normal das coisas estão, em definitivo, já afastadas.
O mundo que hoje vivemos, goste-se ou não, é ainda um mero produto da Guerra Fria. O modelo das nossas instituições multilaterais mais não é do que uma projecção dos equilíbrios saídos do final da Segunda Guerra Mundial. A prova provada é que ainda andamos às voltas para tentar dar à NATO uma finalidade diferente daquela para que havia sido criada. Verdade seja que, do lado de Moscovo, sente-se uma filosofia de acção externa muito tributária de uma mentalidade tradicional de cerco, que rigidifica posições e provoca contra-reacções do mesmo sinal. Para nos recordar que esses tempos não estão mortos, regressou recentemente a temática do Tratado CFE (sobre forças convencionais na Europa) e mantêm-se os “frozen conflicts” de antanho (Transnístria, Nagorno-Karabasch), alguns com afloramentos muito pouco saudáveis (Ossétia do Sul, Abcásia).
A Europa que aí temos, a União Europeia alargada, mais não é do que uma filha directa da Guerra Fria, embora agora liberta das antigas peias dos pais geradores. Algumas atitudes que detectamos em certas capitais europeias face a Moscovo trazem consigo os germes dos traumatismos passados e tornam-nos a todos reféns involuntários dessa História regional.
Ora o mundo mudou, o 11 de Setembro deu um forte sinal que parece não ter sido entendido, mesmo por quem o sofreu dramaticamente na pele. As lições do Iraque, os riscos novos no Irão, os impasses no Afeganistão, bem como o barril de pólvora no Paquistão parece não serem suficientes para nos fazer acordar para a necessidade de mudança de paradigma do nosso quadro das relações internacionais.
Nesta cegueira estratégica, a atitude de uma certa Europa perante a questão turca prova que vivemos ainda no mundo do passado e que alguns teimam em não perceber que, pedra a pedra, estamos a colocar as fundações para um novo muro.
(Texto publicado hoje num suplemento especial do Diário Económico sobre a queda do Muro de Berlim)
quarta-feira, outubro 14, 2009
Ainda a solidão
Pode ser lido aqui.
segunda-feira, agosto 31, 2009
Cultura Europeia?
E permito-me a imodéstia de juntar um artigo meu, sobre o mesmo tema, que proximamente será publicado numa obra colectiva a editar pela Fondation André Malraux. E que, se alguém tiver paciência, pode ler aqui.
terça-feira, agosto 18, 2009
Sérgio
“Você sabe, Francisco, só me aparecem desafios que não consigo recusar!” – foi a frase que retive da última conversa com Sérgio Vieira de Mello, quando lhe telefonei para Genebra a desejar sucesso para a sua nova missão em Bagdad. Ironizámos então com o facto de Paul Bremer, o primeiro "administrador" americano no Iraque, com quem Sérgio teria que se articular, ter coincidido comigo em posto diplomático na Noruega, nos idos de 70: prontifiquei-me para "meter uma cunha", se ele precisasse…
Só conheci pessoalmente Vieira de Mello em Setembro de 1999, quando o protocolo nos sentou lado-a-lado, num almoço em Nova Iorque. Acabara, há pouco, a sua missão nos Balcãs e entre nós passou, de imediato, uma corrente de empatia luso-brasileira, logo cimentada pelo mútuo culto do humor. Recordo-me de termos falado da possibilidade de ele chefiar a nova missão da ONU em Timor, ainda semanas antes de Kofi Annan lhe propor o lugar. Eu não tinha a pretensão de estar a ser presciente: limitava-me a ecoar o nome prestigiado que circulava já por alguns corredores, afirmando-lhe a certeza antecipada de que o Governo português o acolheria com muito agrado. Na altura, Sérgio retorquiu-me, com o seu sorriso confiante, que não, que “ia precisar de algum tempo para descansar”. Felizmente, isso acabou por não acontecer.
Sérgio Vieira de Mello fez em Timor um trabalho notável, como várias vezes tive ocasião de referir, em nome de Portugal, em intervenções no Conselho de Segurança da ONU. E – confesso – fi-lo com uma sinceridade que nem sempre é regra nos discursos oficiais. Com ele combinei, nas derradeiras fases do processo pré-independência, o tom comum das nossas intervenções em Nova Iorque, por forma a garantir o apoio que o secretário-geral da ONU e o Governo português entendiam necessário que fosse dado aos timorenses pela comunidade internacional, nos difíceis anos que se seguiriam. Recordo também os pedidos que fez, por meu intermédio, para que Portugal “deixasse cair”, a nível adequado, palavras de acalmia e bom-senso junto de responsáveis políticos de Timor, a fim de atenuar alguns litígios menores, mas que ameaçavam a estabilidade do processo interno.
Em Novembro de 2002, convidei Sérgio Vieira de Mello para ir a Viena, falar ao Conselho Permanente da OSCE, já na sua qualidade de Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos. Foi uma sessão memorável, que gerou um debate interessantíssimo, em que o à-vontade diplomático de Sérgio sublinhou o seu profundo conhecimento da situação internacional. Mas que também revelou a firmeza das suas convicções. No almoço em minha casa que se seguiu, e perante uma observação mais tensa avançada pelo meu colega americano, não deixou de lhe recordar que os prisioneiros de Guantanamo “não vivem na Lua” e que, também a eles, se deviam aplicar, em pleno, “todos os Direitos Humanos devidos aos cidadãos da Terra”.
Foi há precisamente seis anos, no dia 19 de Agosto de 2003, que Sérgio Vieira de Melo morreu, de forma violenta, em Bagdad.
(Este texto reproduz grande parte de um outro que inseri no meu livro “Uma Segunda Opinião”)
quinta-feira, agosto 13, 2009
Ibéria?
O iberismo acabou por fundar-se, historicamente, no sentimento de finis patriae que nos adveio do declínio posterior à perda do Brasil, marcado pela dificuldade em gerirmos o nosso papel intraeuropeu, no ácido confronto cruzado de ambições coloniais, que nem o carácter de algumas alianças vetustas conseguiu disfarçar. Desde então, esse tropismo, derrotista e derrotado, tende a renascer sempre que surgem conjunturas que alguns identificam com a crise, não necessariamente do país, mas da ideia atormentada que dele alimentam. Tudo isto vale o que vale, mas devo confessar que começa a tornar-se irritante a sua reiterada emergência, com alguns inocentes úteis a dar-lhe foros de dignidade, por vezes mesmo com tentativas de teorização pseudo-intelectual.
Faço parte de uma geração educada "contra a Espanha", na magnificação do papel das batalhas que nos garantiram a independência, das figuras hagiografadas de recorte heróico quase caricatural, tudo se saldando na gestação de uma desconfiança atávica face aos "ventos" que sopravam de Madrid. Os livros de um Matoso anterior e de alguns outros "genéricos" da historiografia portuguesa defendiam essa espécie de doutrina patriótica incontornável, a que a própria diplomacia portuguesa não escapou. Esse culto quase paranóico da História, hiperbolizado ao ridículo pelo Estado Novo, gerou uma espécie de "inimigo nacional" obrigatório. Ainda hoje, alguns iluminados tendem por aí a esquecer uma meridiana realidade: quase nove séculos decantaram uma identidade portuguesa bem clara que, em todas as dimensões, se distingue hoje das "Espanhas" - de todas elas. E essa distinção já nada tem a ver com antagonismo.
A comum entrada de Portugal e Espanha nas instituições europeias fez com que se atenuasse, de um modo natural e num movimento de elementar racionalidade, essa doentia obsessão anti-espanhola, tornando natural o relacionamento dos dois Estados que coexistem na península. O modo como os temas de contencioso bilateral passaram a ser tratados, de que são exemplo os casos das pescas ou da gestão dos rios comuns, provou o carácter altamente benéfico da mútua convivência dentro do quadro formal europeu. Além disso, devo confessar que, para mim, foi uma verdadeira lição ver as novas gerações portuguesas começarem a entusiasmar-se com a "movida" madrilena ou desejosas de aproveitar a riqueza de vida das Ramblas de Barcelona.
A Espanha contemporânea, na sua diversidade e complexidade, é hoje uma realidade pujante, onde um sentimento colectivo de salutar orgulho fixou uma matriz que conseguiu federar autonomias e nacionalismos muito diferentes. É um país magnífico, com uma cultura interessantíssima, um povo optimista e que, em algumas décadas, deu ao mundo a lição de como foi possível desenvolver uma sólida democracia, uma sociedade de bem-estar e de franca modernidade, que conseguiu firmar-se sobre as memórias trágicas da Guerra Civil, as pulsões nacionalistas e as ameaças da barbárie terrorista.
A serena relação com a Espanha constituiu hoje um dos pilares importantes da nossa política externa. Com Madrid, encontramos, dia-após-dia, áreas para uma acrescida cooperação internacional em imensos domínios, definindo cada vez mais linhas comuns de trabalho em instâncias multilaterais. Como disse, há dias, o rei Juan Carlos, Portugal e Espanha são “duas nações antigas, vizinhas, amigas, sócias e aliadas”.
quinta-feira, julho 02, 2009
Rui Paula
O livro premiado foi "Rui Paula - Uma Cozinha no Douro", com textos de Celeste Pereira e fotos de Nelson Garrido, obra que foi igualmente seleccionada para a "short list" do prémio "Melhor Fotografia".
Parabéns à equipa portuguesa, que esteve em peso no palco da Comédie Française, com o apoio moral do embaixador de Portugal na assistência.
Ah! Resta dizer que o livro traz um artigo da minha autoria, que pode ser ligo aqui.
quarta-feira, junho 17, 2009
Brasil e França
quarta-feira, junho 10, 2009
"A Europa não nos divide"
sexta-feira, junho 05, 2009
Necessidades
segunda-feira, março 16, 2009
Manuel Alvess (1930-2009)
Morreu Domingo, em Paris, Manuel Alvess, aquele a quem Daniel Ribeiro (num sentido artigo publicado no site do Expresso, que aqui se reproduz, com a devida vénia) chamou "o mais secreto dos pintores portugueses":
"Cultivava o que os franceses chamam um humor "décalé". Solitário, vivia num mundo à parte, parecia uma pessoa fria, mas não era. Habitava num pequeno estúdio no bairro da Bastilha, em Paris, e era o que o que se poderia chamar um "tipo extraordinário". Mostrava aí as suas obras aos amigos com entusiasmo e, sempre, com um sorriso irónico. A ironia era um sinónimo dele próprio e também da sua obra. Gostava de chapéus de abas e adorava Fernando Pessoa, com quem aliás se parecia fisicamente. A Fundação Serralves tirou-o do anonimato há cerca de um ano com um retrospectiva da sua obra que surpreendeu o mundo da arte em Portugal. Era um intelectual. Natural de Viseu, disse um dia a este correspondente que fazia um trabalho burocrático de contabilista. Fazia muito mais do que isso, evidentemente. Trabalhou sobre o papel selado da sua infância, sobre os pesos e medidas, perfurou minuciosamente telas, jogou com as matérias, o vazio, as cores, os pincéis e os objectos. Deixou uma obra de rara originalidade, longe, muito longe das modas e do mundo VIP da pintura. Foi amigo dos colegas Lourdes Castro e René Bertholo, que já viviam em Paris quando ele aí desceu, em 1963, do famoso comboio dos emigrantes portugueses - o Sud-Expresso, na estação de Austerlitz. Até ao fim, esta manhã, às 9 horas, manteve uma relação especial com outro pintor português, igualmente residente em Paris - José David. Encontrámo-nos diversas vezes no ateliê deste último, em Montparnasse, onde Zé David nos servia carinhosamente os melhores pratos de bacalhau cozido e frango com gengibre do mundo. Foi José David que me deu a notícia, a chorar, da morte de Alvess. "Era um irmão, um amigo, mais do que isso", disse. Muito afectado pelo seu desaparecimento, não quis acrescentar mais nada. Alvess, o solitário, adorava esses encontros no ateliê do amigo. Era de uma inteligência rara e, por vezes, parecia até um pouco extravagante. Viveu livre e procurou a sorte de conseguir ter tido uma vida vertical e digna, como uma obra de arte. Sempre com dificuldades financeiras, sem compromissos com críticos ou galerias - raramente vendeu um quadro antes da exposição em Serralves - foi feliz. O trabalho dele foi a arte. Viveu para ela e confundia-se com o seu trabalho - algumas das suas mais belas telas são soberbos e inconfundíveis auto-retratos. Nunca se preocupou por vender pouco ou nada. Foi um ser humano e habituou-se a reduzir as necessidades que a vida impõe. Pôde, assim, ser independente e viver em paz. Acrescentara um S ao nome de família. Manuel Nogueira Alves contou-me um dia a historia desse S a mais no apelido. Foi mais uma das suas ironias: os franceses teimavam em acentuar a ultima sílaba do seu nome, e ele fez-lhes a vontade, para acabar com as confusões. Fez "performances" que chocaram Paris. O jornal conservador, le Fígaro, não gostou de um dos seus primeiros happenings na capital francesa, nos anos 60 - à porta do Museu de Arte Moderna, o português despejava e limpava lixo, mecanicamente, horas a fio, como os seus compatriotas, emigrantes miseráveis, faziam, na época, durante todo o dia. O jornal reprovou a ironia do artista. Alvess foi mais do que um pintor. Na realidade foi um artista completo. Uma outra vez, noutra "performance", criou a "primeira imagem": fabricava em público um espelho e depois chamava alguém da assistência para ver o trabalho. O espectador via-se ao espelho e ele oferecia-lhe o objecto, cuja primeira imagem fora a do seu feliz primeiro proprietário. Construiu uma obra ao longo de décadas, repito, de singular originalidade. Exactamente à sua imagem de homem sincero, cheio de humor, a um tempo extremamente inteligente, simples e tímido. Paris e sobretudo os bairros da Bastilha, de Saint-Germain de Prés e de Montparnasse, onde adorava passear, não serão mais os mesmos. Vai faltar-lhe a figura fugidia de um artista português, um verdadeiro parisiense vindo da Beira Alta que aí viveu como uma sombra, mas que, no convívio como os amigos, ria com um sorriso luminoso e gargalhadas francas. Manuel Alvess foi um grande pintor e um homem sem nada na manga. "Tive sorte, vivi como um artista", disse há poucos dias, a um dos seus últimos visitantes. Nem o cancro que o vitimou lhe conseguiu apagar a ironia."
O outro 25
Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...