segunda-feira, março 16, 2009

Manuel Alvess (1930-2009)


Morreu Domingo, em Paris, Manuel Alvess, aquele a quem Daniel Ribeiro (num sentido artigo publicado no site do Expresso, que aqui se reproduz, com a devida vénia) chamou "o mais secreto dos pintores portugueses":

"Cultivava o que os franceses chamam um humor "décalé". Solitário, vivia num mundo à parte, parecia uma pessoa fria, mas não era. Habitava num pequeno estúdio no bairro da Bastilha, em Paris, e era o que o que se poderia chamar um "tipo extraordinário". Mostrava aí as suas obras aos amigos com entusiasmo e, sempre, com um sorriso irónico. A ironia era um sinónimo dele próprio e também da sua obra. Gostava de chapéus de abas e adorava Fernando Pessoa, com quem aliás se parecia fisicamente. A Fundação Serralves tirou-o do anonimato há cerca de um ano com um retrospectiva da sua obra que surpreendeu o mundo da arte em Portugal. Era um intelectual. Natural de Viseu, disse um dia a este correspondente que fazia um trabalho burocrático de contabilista. Fazia muito mais do que isso, evidentemente. Trabalhou sobre o papel selado da sua infância, sobre os pesos e medidas, perfurou minuciosamente telas, jogou com as matérias, o vazio, as cores, os pincéis e os objectos. Deixou uma obra de rara originalidade, longe, muito longe das modas e do mundo VIP da pintura. Foi amigo dos colegas Lourdes Castro e René Bertholo, que já viviam em Paris quando ele aí desceu, em 1963, do famoso comboio dos emigrantes portugueses - o Sud-Expresso, na estação de Austerlitz. Até ao fim, esta manhã, às 9 horas, manteve uma relação especial com outro pintor português, igualmente residente em Paris - José David. Encontrámo-nos diversas vezes no ateliê deste último, em Montparnasse, onde Zé David nos servia carinhosamente os melhores pratos de bacalhau cozido e frango com gengibre do mundo. Foi José David que me deu a notícia, a chorar, da morte de Alvess. "Era um irmão, um amigo, mais do que isso", disse. Muito afectado pelo seu desaparecimento, não quis acrescentar mais nada. Alvess, o solitário, adorava esses encontros no ateliê do amigo. Era de uma inteligência rara e, por vezes, parecia até um pouco extravagante. Viveu livre e procurou a sorte de conseguir ter tido uma vida vertical e digna, como uma obra de arte. Sempre com dificuldades financeiras, sem compromissos com críticos ou galerias - raramente vendeu um quadro antes da exposição em Serralves - foi feliz. O trabalho dele foi a arte. Viveu para ela e confundia-se com o seu trabalho - algumas das suas mais belas telas são soberbos e inconfundíveis auto-retratos. Nunca se preocupou por vender pouco ou nada. Foi um ser humano e habituou-se a reduzir as necessidades que a vida impõe. Pôde, assim, ser independente e viver em paz. Acrescentara um S ao nome de família. Manuel Nogueira Alves contou-me um dia a historia desse S a mais no apelido. Foi mais uma das suas ironias: os franceses teimavam em acentuar a ultima sílaba do seu nome, e ele fez-lhes a vontade, para acabar com as confusões. Fez "performances" que chocaram Paris. O jornal conservador, le Fígaro, não gostou de um dos seus primeiros happenings na capital francesa, nos anos 60 - à porta do Museu de Arte Moderna, o português despejava e limpava lixo, mecanicamente, horas a fio, como os seus compatriotas, emigrantes miseráveis, faziam, na época, durante todo o dia. O jornal reprovou a ironia do artista. Alvess foi mais do que um pintor. Na realidade foi um artista completo. Uma outra vez, noutra "performance", criou a "primeira imagem": fabricava em público um espelho e depois chamava alguém da assistência para ver o trabalho. O espectador via-se ao espelho e ele oferecia-lhe o objecto, cuja primeira imagem fora a do seu feliz primeiro proprietário. Construiu uma obra ao longo de décadas, repito, de singular originalidade. Exactamente à sua imagem de homem sincero, cheio de humor, a um tempo extremamente inteligente, simples e tímido. Paris e sobretudo os bairros da Bastilha, de Saint-Germain de Prés e de Montparnasse, onde adorava passear, não serão mais os mesmos. Vai faltar-lhe a figura fugidia de um artista português, um verdadeiro parisiense vindo da Beira Alta que aí viveu como uma sombra, mas que, no convívio como os amigos, ria com um sorriso luminoso e gargalhadas francas. Manuel Alvess foi um grande pintor e um homem sem nada na manga. "Tive sorte, vivi como um artista", disse há poucos dias, a um dos seus últimos visitantes. Nem o cancro que o vitimou lhe conseguiu apagar a ironia."

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Embaixador,
Quero agradecer-lhe a sensibilidade de postar o maravilhoso, sentido e íntimo texto do nosso amigo comum Daniel Ribeiro.
Neste momento é a melhor homenagem que podemos prestar ao Manuel Alvess.
Atentamente,
Paulo Correia

Anónimo disse...

Acordei hoje a pensar no Alvess e fui procurar um prospecto da sua retrospectiva que trouxe no ano passado da Fundação de Serralves. Fiquei entusiamadíssima ao observar e apreciar os trabalhos de Alvess. Como se sentisse cócegas no córtex cerebral...ou talvez ainda mais fundo.
Só agora soube da sua morte, creio que por nesse terrível mês de Março me encontrar tão embrenhada em trabalho que nem sequer tinha tempo para ler os jornais. Fico muito triste com a sua morte. Era um artista total, muito à frente da sua época, muito à frente do seu país, talvez por isso tenha optado por viver em Paris. Espero que em breve surja uma retrospectiva de Alvess em Lisboa e tudo farei, ao meu alcance, para que isso aconteça. Sei que é triste procurar as homenagens aos mortos, mas Alvess é um artista incontornável da nossa história e a sua obra, e o seu nome, devem ser conhecidos e reconhecidos por todos os portugueses. Esta é uma das responsabilidades que as instituições, que representam os bastiões da chamada arte contemporânea do nosso país, devem cumprir. Serralves já deu o exemplo.
Alvess morreu. Viva Alvess!

Anónimo disse...

caro embaixador,

acabei de deixar o meu comentário, o qual não consegui identificar por pura inaptidão, e lembrei-me de que talvez não seja difícil apresentar uma retrospectiva de alvess em paris, dado ter sido a cidade onde escolheu viver e de aí ter sido bolseiro da Gulbenkian. Porque não estabelecer contacto entre a embaixada e a Fundação Calouste Gulbenkian?

Carla Bolito

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